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A Música e o Coração do Mundo
A Música e o Coração do Mundo

O CORAÇÃO DO MUNDO

 

As palavras têm os seus limites, e um analista deve escutar também a música da voz do paciente.

 

O coração do mundo é invisível” é uma metáfora com vários sentidos: a vivacidade pura do amor, o entusiasmo de viver, a alegria de uma conquista sonhada. Diferentes caminhos podem levar a esse coração, como o saber brincar, o erotismo, as viagens, o humor. Para Nietzsche, são as artes, em especial a música, que conduzem ao coração do mundo.

 

As músicas são formadas por sons que são anteriores à vida dos homens na Terra. Há os sons da natureza, como o vento e a chuva, ou os sons emitidos pelos animais. Já na própria comunicação humana há musicalidade no jeito de falar. O coração do mundo é um estado de plenitude, como revela a história a seguir. Um casal de namorados, estando distante, se enviava fitas gravadas. Um dia, o jovem recebeu uma fita em que a namorada gravou seu banho de banheira. Os ruídos da água e o som alegre da voz dela, ele nunca esqueceu. Há aqui algo de arcaico, de um imaginário, pois cada um de nós nasce em meio líquido. Falou-me do erotismo que viveu ao escutar os sons do corpo da amada na água. Escutando a fita, viajou no coração do mundo.

 

As crianças, antes de começarem a falar, vão sendo marcadas pelos sons. Tudo começa nos ritmos do que falam as mães, tanto que foi criada a palavra manhez. É como a mãe se dirige ao bebê, através de frases sonoras, curtas e com alongamento das vogais. Os sons e a música configuram a sensibilidade do substrato mais arcaico da cultura desde o nascimento.

 

Há numa canção notas que emocionam, acertam na mosca. O psicanalista francês Alain Didier-Weill nomeou essa nota de Nota Azul devido a Chopin. Escreveu também que as palavras tê os seus limites e um analista deve escutar, além das palavras, a música da voz do paciente. Relata um exemplo clínico: “Um dia, um paciente me contava uma história que era muito triste, mas ao meso tempo ele me fazia ouvir, através da música da sua voz, uma grande alegria. E eu ri. Com o riso, que obviamente não era de zombaria, a pessoa ficou aliviada. Quando eu ri, restituí ao analisando uma alegria que ele tinha e não sabia”. Fiquei impressionado com a valorização da musicalidade da voz e da alegria. Música e alegria fazem bem a todos. Hoje, já há trabalhos de analistas sobre a música, talvez a última das artes a despertar o interesse do mundo psi. E também impressionam as pesquisas da neurologia quanto aos efeitos cerebrais das músicas.

 

Concluo com uma história musical. Um jovem sempre dizia que estava mais ou menos. O trabalho ia mais ou menos, assim como seu casamento. Gostava de música, era baterista, mas era mais ou menos. Um paciente mais ou menos, fazendo um tratamento mais ou menos. Falava pouco, mais menos do que mais, e perguntei-lhe, um dia, já não sabendo o que fazer, se não brincava quando criança. Aí contou que tinha muita alegria com um carrinho, explicando como se divertia. Perguntei-lhe, então, por que quando criança inventava e não podia fazê-lo agora. Foi um silêncio, mas algo havíamos tocado. Um dia me contou, temeroso, que comprara a melhor caixa para bateria à venda na cidade. Ficou a me olhar para saber qual seria a minha reação. Disse a ele: “Compraste a melhor caixa, não foi uma mais ou menos. Parabéns, pois agora desejas o melhor”. Rimos, ele aliviado com a decisão, e eu porque via agora seu entusiasmo de viver. A música revela o espetáculo que é a existência, ela permite a transcendência; é a leveza que permite voar. Estava certo Nietzsche ao escrever que a música nos leva ao coração do mundo.

 

Fonte: Zero Hora/Abrão Slavutzky/Psicanalista (abraoslavu@gmail.com) em 03/06/2018.