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Ponciá Vicêncio: de Conceição Evaristo
Ponciá Vicêncio: de Conceição Evaristo

A TEORIA DAS JANELAS INTACTAS

 

Doutor em Teoria e História Literária analisa a obra-prima da autora mineira: PONCIÁ VICÊNCIO.

O segredo do texto de Conceição Evaristo é seu estilo austero que não teme as espantosas semelhanças com a vida.

 

Por Luiz Maurício Azevedo

Escritor. Doutor em Teoria e História Literária pela UNICAMP

 

Dizem que Conceição Evaristo nasceu na zona sul de Belo Horizonte; que veio de família pobre, com quase uma dezena de irmãos, que trabalhou como empregada doméstica, mas que concluiu o ensino superior na Universidade Federal do Rio de Janeiro, tendo feito mestrado na PUC-Rio, e Doutorado na Universidade Federal Fluminense. Dizem também que PONCIÁ VICÊNCIO, sua obra-prima, foi publicada em 2003, e lançada nos Estados Unidos em 2007.

 

Não são mentiras, são apenas verdades socialmente aceitas; narrativas cuidadosamente montadas para oferecer analgesia de situações sociais que nos incomodam. Verdades socialmente aceitas são, afinal, consolos que nós, meros mortais, construímos com o objetivo de adiar o inevitável acerto de contas com nossos próprios traumas históricos. Em sua história recente, a sociedade brasileira possui uma verdade socialmente aceita chamada Ditadura Militar. Para esconder a vergonhosa atuação da sociedade civil, conta-se uma meia-verdade: a de que fomos cooptados por militares maus que, a despeito de nossa boa índole, nos governaram com raiva, rancor, violência e nacionalismo tacanho. Não é mentira, mas não é exatamente uma verdade-real. Pesquisas como as dos professores da PUCRS, Juremir Machado da Silva e Camila Kieling, demonstram, de forma clara, didática e acachapante, que aquilo o que meu avô chamava de revolução militar foi, na verdade, um golpe civil-midiático-militar, construído com cuidado, inteligência e certa dose de sadismo e cimentado por um acordo social envolvendo vários setores da sociedade civil que, posteriormente iria se considerar a vítima principal desse período odioso.

 

Bem mais distante na memória dos brasileiros, a escravização dos negros é outra verdade socialmente aceita. Dizem que em 13 de maio de 1888 a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea, considerando livres todos os negros do território nacional e banindo, com sua pena mágica, a exploração dos negros deste país. Não é exatamente uma mentira, é uma verdade instrumentalmente necessária para aqueles que desejam esconder a imensa dívida histórica que o Brasil escravagista possui com a comunidade negra. Pois bem, Conceição Evaristo, que nasceu na zona sul de Belo Horizonte; que veio de família pobre, com quase uma dezena de irmãos; que trabalhou coo empregada doméstica, mas que concluiu o ensino superior na Universidade Federal do Rio de Janeiro, tendo feito mestrado na PUC-Rio, e Doutorado na Universidade federal Fluminense; Conceição Evaristo, o maior nome da literatura afro-brasileira contemporânea, une essas duas narrativas, esses dois modelos de verdade: as socialmente aceitas e as verdades-reais. Em seu bildungsroman, os negros continuam escravos das condições, como se vê nessa passagem: “Há tempos e tempos, quando os negros ganharam aquelas terras, pensaram que estivessem ganhando a verdadeira alforria. Engano. Em muito pouca coisa a situação de antes diferia da do momento. As terras tinham sido ofertas dos antigos donos, que alegavam ser presente de libertação. Uma condição havia, entretanto, a de que continuassem todos a trabalhar nas terras do Coronel Vicêncio.”

 

Contudo, essa escravização disfarçada, sem data para terminar, em nenhum momento desabona a trajetória dos indivíduos negros, em fraca luta contra aquilo que cotidianamente os ameaça destruir. Eles avançam heroicamente por onde outros fracassaram. Eles precisam conviver com a suspeita palpável de que, além das barreiras comuns a todos os seres humanos, existe para eles uma outra, um pouco diferente, com o aspecto de uma porta da lei, feita para uso exclusivo deles. É contra essa barreira kafkiana que o negro se volta, porque talvez Jean Baudrillard – o gênio francês, morto há dez anos – tenha razão e nossa missão seja apenas lutar para que a vida não se transforme na “velha história de uma mosca que se choca contra a evidência incompreensível do vidro”. Talvez. Na literatura, as moscas querem contornar as janelas, mas não podem. Na vida real, as moscas podem contornar as janelas, mas não querem.

 

O segredo do texto de Conceição Evaristo é seu estilo austero que não teme as espantosas semelhanças com a vida.

 

Fonte: Correio do Povo/Caderno de Sábado em 16/12/2017