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Entrevista com o Cineasta Cacá Diegues
Entrevista com o Cineasta Cacá Diegues

COM A PALAVRA CACÁ DIEGUES

 

Cineasta, 78 anos. Diretor de clássicos como A GRANDE CIDADE (1966), XICA DA SILVA (1976) e BYE BYE BRASIL (1979), apresentará seu novo filme, O GRANDE CIRCO MÍSTICO, na abertura do 46º Festival de Gramado, na próxima sexta-feira (17/08).

 

O ARTISTA DEVE CONTESTAR SEMPRE. NÃO ACEITAR O LUGAR COMUM DO PENSAMENTO CONSERVADOR.”

 

Na sexta-feira, quando uma grande equipe circense desembarcar na serra gaúcha, terá início o 46º Festival de cinema de Gramado. O tradicional evento tem como filme de abertura O GRANDE CIRCO MÍSTICO, adaptação da obra do poeta Jorge de Lima que esteve no Festival de Cannes, em maio, e estreará no circuito comercial brasileiro em 6 de setembro. Seu diretor, Cacá Diegues, é um dos nomes mais importantes do cinema nacional desde que integrou o núcleo fundamental do Cinema Novo, nos anos 1960. Na entrevista a seguir, ele fala sobre o mercado, a televisão e o grande público, sobre seu interesse pelo “Brasil profundo” e, ainda, sobre o lugar do artista no atual movimento político do país.

 

 

O universo do circo costuma ser retratado no cinema de maneira romântica, mas também com humor, de Chaplin e Fellini a O PALHAÇO (2011), de Selton Mello. Hoje, diante da decadência do modelo dos circos tradicionais, parece ser difícil abordar o tema sem nostalgia. Como o senhor construiu sua visão desse universo em O GRANDE CIRCO MÍSTICO?

O GRANDE CIRCO MÍSTICO não é propriamente um filme sobre circo, mas um filme que se passa no circo. O circo é um pano de fundo. O que me interessou foi contar a história de uma família durante um século – as relações internas entre seus componentes e a presença do mundo externo em suas aventuras. É isso o que está no poema de Jorge de Lima (A Túnica Inconsútil, de 1938) que me fez fazer o filme.

 

 

Jorge de Lima é alagoano como o senhor e tem como um de seus trabalhos mais conhecidos Invenção de Orfeu, sobre o mesmo mito que originou seu filme ORFEU, de 1999. Qual a relação entre ele e sua obra?

Não o conheci pessoalmente, ele era bem mais velho do que eu – quando morreu, em 1952, eu ainda era uma criança. Mas eu o li desde a minha adolescência, e sempre admirei tanto a sua poesia quanto a sua prosa. Jorge de Lima é um dos maiores poetas da língua portuguesa, não entendo porque ficou tão relegado a segundo plano em nossas letras. Quando eu tinha uns 18 anos, conheci Mario Faustino, outro grande poeta, pensador e crítico literário moderno, que me reensinou a ler Jorge de Lima e me deu a chave para pensar tudo o que hoje penso do poeta alagoano. Faustino também morreu cedo, aos 32 anos (em 1962). Eram dois raros gênios brasileiros.

 

 

Com BYE BYE BRASIL (1979), o senhor fez da viagem de um grupo de artistas pelo interior do país sob a ditadura militar um painel que iluminava uma transformação social que parece nunca se concluir. O GRANDE CIRCO MÍSTICO reflete de alguma forma o Brasil contemporâneo?

Sim, mas de um modo bem diferente de BYE BYE BRASIL. A partir dessa comparação, acho que posso dizer que O GRANDE CIRCO MÍSTICO é um épico interior, uma aventura de comportamento s privados ao longo do tempo – o século 20 como um todo.

 

 

O senhor disse, no Festival de Cannes, que o cinema brasileiro vive o melhor período de sua história. Que elementos positivos o senhor destaca para essa avaliação, em um quadro geral em que os filmes nacionais, exceto por êxitos pontuais, dentro do gênero da comédia, têm dificuldade para chegar ao grande público?

Há coisas diferentes aí. Além de estarmos fazendo 150 longas-metragens por ano, uma quantidade que nunca fizemos antes (foram 158 em 2017 e 142 em 2016, segundo a Agência Nacional do Cinema). Esses filmes têm sido revelações significativas da cultura de diferentes gerações e regiões do Brasil. A diversidade é, portanto, sua principal virtude – como o próprio país é diverso; trata-se de um retrato de um país que é muito diverso. E não é que os filmes têm dificuldades para chegar ao grande público. O que acontece é que, numa economia cinematográfica de qualidade, não há necessariamente nem 10% de obras-primas e grandes sucessos. É o nosso orgulho que sente falta de mais obras-primas e grandes sucessos brasileiros. Na França, um dos centros de produção cinematográfica mais desenvolvida do mundo moderno, foram produzidos entre 250 e 300 filmes no ano passado. Só cerca de 150 deles encontraram espaço para serem exibidos nas salas de cinema do seu próprio país.

 

 

Mas há um abismo entre os filmes mais populares (que levam mais de 1 milhão de pessoas aos cinemas) e os pouco vistos (menos de 1 mil pessoas, em alguns casos). Os chamados “filmes médios”, que ficam nesse meio-termo, encolheram. Por quê?

O que levou a isso foi, em primeiro lugar, a televisão. O chamado “filme médio” migrou para a TV na forma de séries, minisséries e especiais, inclusive novelas. E, mesmo nesse seu novo habitat, ele começa a escassear por falta de público. O espectador de hoje em dia é mais seletivo, até porque tem mais opções. Não se fala sobre todos os seriados que as pessoas veem na televisão, assim como não se fala sobre todos os filmes, mas apenas sobre aquelas que todo mundo vê. Em suma, essa ideia de “filme médio”, ou do “produto médio”, começa a desaparecer na economia do audiovisual. Isso é um fenômeno geral, me parece.

 

 

Essa queda é uma questão do mercado ou tem a ver com o conteúdo e a proposta autoral dos filmes?

Não acho que isso seja um problema a que temos que dar muita atenção. Hoje não há mais demanda para um só gênero de filme; há sempre lugar para todos os filmes. Um filme pode ser mostrado em grande circuito e o outro nos circuitos de festival, com um alcance mais restrito. Cada projeto serve a um tipo de público especial. O problema é que os realizadores precisam reconhecer o destino presumível de seu filme, e aí organizar sua produção em função disso – elenco, equipe, valores de produção etc. Essa obsessão pelo sucesso em todos os meios de exibição é uma obsessão do passado, do tempo em que o cinema era uma pequena economia cara, destinada a um mesmo circuito de uma mesma e única plataforma de exibição. Não é mais assim. Por exemplo, hoje estamos vendo esse conceito mudar mais uma vez com o crescimento espantoso de uma nova plataforma: o streaming.

 

 

A internet e o streaming de fato indicam uma reorganização do sistema. Isso mudou sua forma de planejar um filme? Não só o lançamento, mas o filme em si?

É claro que tudo é afetado. São raros os filmes que podem ser exibidos em todas as plataformas. Mas acho que todos os cineastas devem pensar em todas as plataformas quando estiverem fabricando sua obra.

 

 

Nesse contexto, qual é a sua estratégia para o lançamento de O GRANDE CIRCO MÍSTICO? Há uma previsão de estreia em cinemas de países europeus antes do Brasil. Por quê?

O GRANDE CIRCO MÍSTICO é uma coprodução internacional, envolvendo produtores e distribuidores europeus. Eles não precisam esperar o lançamento no Brasil para estreá-lo em outros países. Depende de cada possibilidade nesses países. Em Moscou, Paris e Lisboa, o filme estreará antes do Brasil. Quanto ao lançamento brasileiro, espero que o público do país venha ver o filme e se comunique com ele, independentemente de quantos espectadores forem. Tenho certeza de que isso vai acontecer.

 

 

Por que o senhor escolheu o Festival de Gramado para a primeira sessão do filme no Brasil?

Fui convidado pelos organizadores do festival, e achei que essa era uma boa escolha para O GRANDE CIRCO MÍSTICO. Vi Gramado nascer e respeito o festival como o mais diverso e dinâmico no Brasil atual. Tenho muito orgulho de estar abrindo Gramado com esse filme.

 

 

Com a atual turbulência política do Brasil, a produção cultural, assim como a ciência e a tecnologia, têm sofrido cortes de verbas e até mesmo a perseguição de setores mais conservadores da sociedade. Qual o papel do artista nesse contexto?

O artista deve contestar sempre. Não pode aceitar o lugar comum do pensamento conservador. Nunca. Nem o exercício de sua censura. Todo artista deve estar sempre à frente de seu tempo, como um radar do futuro. Só assim ele dará sentido a sua atividade.

 

 

Como o senhor tem procurado participar do debate público na realidade de polarização atual? É um dos usuários das redes sociais?

Não uso as redes sociais. Não sou contra elas, acho até que as redes sociais apontam para um futuro diferente, onde a sabedoria pode ser melhor distribuída. Mas, por enquanto, elas constituem apenas as arenas onde os histéricos distribuem seus petardos irracionais, cheios de ódio e preconceitos, sem reflexão alguma. Por isso prefiro manter alguma distância.

 

 

O senhor é um dos diretores de CINCO VEZES FAVELA (1962), um dos marcos embrionários do Cinema Novo e também do seu início de carreira. Como avalia o papel do cinema para além da sua função de entretenimento e reflexão, também expor temas como desigualdade social e dar rosto e voz aos excluídos e marginalizados?

Todo filme que presta é sempre uma reflexão sobre o estado de coisas no mundo. Um filme pode não mudar a realidade, mas ele pode fazer com que a vejamos de um modo diferente e, assim, a compreendamos melhor. Desde o início e sempre, esse foi o projeto e o desejo do Cinema Novo em relação ao Brasil.

 

 

Os grandes festivais internacionais de cinema costumam balizar a força e o prestígio de cinematografias consagradas e emergentes. Como o senhor vê a presença do Brasil nesses certames, sobretudo em relação à força que mostram outros países latino-americanos, como Argentina e Chile?

Não gosto dessas comparações. Elas costumam apontar para conflitos que não existem entre países tão diferentes e solidários um com o outro. O Brasil é hoje uma nação que tem uma economia cinematográfica própria, que não tem nada a ver com as dos outros países latino-americanos, mesmo que estes sejam países próximos em diversos sentidos. Devemos nos orgulhar do sucesso de filmes argentinos ou chilenos, com devemos aplaudir o sucesso de outros vindos do Peru, da Colômbia ou do México. Muitos anos atrás, meu primeiro longa-metragem, GANGA ZUMBA (1963), foi recebido com emoção por cineastas africanos presentes a um festival europeu, entre eles o Souleymane Cissé, que era da minha idade. Eles diziam que era como se aquele filme tivesse sido feito no Senegal, no Mali ou no Congo. Isso me convenceu da solidariedade internacional entre povos que têm problemas parecidos com os nossos.

 

 

Como o senhor avalia o trabalho da Agência Nacional do Cinema (ANCINE) como fomentadora e reguladora do setor audiovisual brasileiro? Um setor dependente da política de editais de financiamento? O que o senhor destaca como positivo e negativo no trabalho da agência?

Tenho a sensação de que a Ancine é um serviço público que ainda está em desenvolvimento, organizando-se e adaptando-se ao modo brasileiro de fazer cinema.

 

 

Fala-se em abertura de espaços, via políticas de incentivo, para cineastas mulheres, cineastas negros, produções de estados periféricos do país, entre outras demandas. Como o senhor vê essa questão?

O sistema de cotas, a chamada política positiva contra os preconceitos, deu muito certo em outros países. Não vejo porque não experimentá-lo também no Brasil. Mas é preciso ter paciência: as desigualdades e injustiças históricas em nosso país não deixarão que essa política seja vitoriosa e reconhecida da noite para o dia.

 

 

O que espera do futuro do Brasil neste ano de eleição presidencial?

Não sei, não sei. Detesto o pessimismo. Acho que ser pessimista é uma forma de justificar a impotência e o fracasso. Mas sinto que ainda não são essas eleições que farão o Brasil deixar a crise maldita em que estamos e que nos faz tanto mal. Torço para que isso não aconteça e que, de alguma forma, comecemos a reconstruir o país com essas eleições. Não aguento mais as ruínas do Brasil caindo sobre nossas cabeças.

 

 

 

Fonte: Zero Hora/Caderno DOC/Daniel Feix (daniel.feix@zerohora.com.br) e Marcelo Perrone (marcelo.perrone@zerohora.com.br) em 12/08/2018