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Entrevista com o escritor Daniel Galera
Entrevista com o escritor Daniel Galera

OS GÊNEROS LITERÁRIOS CONTINUAM OS MESMOS

 

Entrevista DANIEL GALERA

 

Um dos nomes mais importantes da nova geração da literatura brasileira, Daniel Galera, 37 anos, nasceu em São Paulo, mas cresceu em Porto Alegre, cidade que escolheu para viver depois de temporadas em São Paulo e Garopaba.  Porto Alegre é também o cenário de MEIA-NOITE E VINTE, romance que sucede BARBA ENSOPADA DE SANGUE (2012), livro que teve boa recepção do público e da crítica e conquistou o prestigiado Prêmio São Paulo de Literatura.

 

A trama do novo livro de Daniel galera se inicia nos primeiros meses de 2014, quando uma intensa onda de calor e uma prolongada greve do transporte público atormentam os moradores da Capital.  A morte de um jovem escritor, mais uma vítima da violência urbana, promove o reencontro de três amigos que, no final dos anos 1990, mantinham um cultuado fanzine eletrônico.

 

Na entrevista a seguir, Daniel Galera conta como foi voltar a escrever depois do sucesso do seu livro anterior, avalia como a internet influenciou (ou não) a literatura e explica certa sensação “pré-apocalíptica” que o acompanha cotidianamente e se tornou tema central de sua obra.  O escritor fala também sobre Porto Alegre, cidade que teve papel central em livros anteriores como ATÉ O DIA EM QUE O CÃO MORREU (2003) e MÃOS DE CAVALO (2006).

 

Leia a seguir os principais trechos da entrevista.

 

 

Você voltou a morar em Porto Alegre em 2009, depois de passar cinco anos em São Paulo e um ano e meio em Garopaba.  Esse reencontro com a cidade foi uma das motivações para escrever MEIA-NOITE E VINTE?

Não. Quando voltei a Porto Alegre, escrevi O BARBA ENSOPADA DE SANGUE, pois só o início escrevi em Garopaba.  Na verdade, estava com muitas ideias para o MEIA-NOITE E VINTE.  Demorei até encontrar o oco do que seria o romance.  Tinha vários personagens, temas,. Pedacinho de histórias.  Foi bem confuso por um período.  Só no início de 2014, no meio daquele verão quente e com a paralisação do transporte público, comecei a vislumbrar o que seria o MEIA-NOITE E VINTE.  Mas o processo de escrita começou efetivamente no início de 2015.

 

 

O sucesso do livro anterior pesou?

Já me perguntaram se a boa recepção do BARBA... gerou ansiedade para escrever algo novo.  Creio que não foi isso, embora possa ter acontecido em algum momento.  Mas eu sempre me senti livre para errar.  Era mais a demanda de tempo e de energia que o livro anterior exigia na prática.

 

 

Você falou que tinha outras ideias para o MEIA-NOITE E VINTE. Quais seriam?

Gosto muito de narrativas pós-apocalípticas, desde sempre. E elas começaram a se proliferar recentemente, por uma série de razões, entre elas as questões ambientais.  Achei que poderia ser o momento de fazer algo assim, mas não senti que tinha uma versão de história pós-apocalíptica que pudesse ser interessante ou original o suficiente para ser escrita.  Entendo o MEIA-NOITE E VINTE como um livro pré-apocalíptico.  É um livro um pouco sobre essa sensação de fim do mundo iminente que está nos noticiários, na filosofia, na conversa cotidiana entre as pessoas, e, ao mesmo tempo, é um fim que não chega.  Essa ideia de um apocalipse muito próximo, mas que jamais se consuma, é uma imagem que cultivei para esse livro.  É um fim que fica transcorrendo sem terminar efetivamente, um presente muito rápido, uma sensação que não tem nome, que chamo de pré-apocalíptica.  Parece que os futuros que a gente consegue imaginar hoje não são mais didaticamente históricos como os que imaginávamos há algumas décadas.

 

 

Depois daquele verão de 2014, muita coisa aconteceu.  Você ainda sente o presente do mesmo modo?

Totalmente.  Aquelas semanas, com aquela onda de calor, greve dos ônibus, episódios de violência próximos, como um homem assassinado dentro de um carro na frente da minha casa... Todas essas coisas estavam me impressionando muito.  Foi a primeira vez que tive a sensação emotiva de que o mundo estava acabando.  Racionalmente talvez eu não acreditasse nisso, mas sentia isso emocionalmente.  Fiquei me questionando se aquele momento não era um marco, um momento de transição.  Não vivo desde então com a sensação de urgência que experimentei naqueles meses, mas o resíduo disso continua, não teve nenhuma interrupção até agora.  E suspeito que não terá.  Acredito que essa é uma sensação com a qual vamos ter que conviver daqui em diante. Talvez teremos que nos acostumar que seja assim.  Tu começa a buscar de onde vem, acha que está na política, na questão ambiental, na violência, na superpopulação, na tecnologia, na ansiedade gerada pelo uso da internet e de celulares... É um fenômeno impossível de apreender na atualidade, há dezenas de focos.

 

 

Se não é possível encontrar a fonte dessa sensação, também parece impossível encontrar saída.  Você se considera um niilista?

Não se trata disso.  Pensei muito a respeito do niilismo, se estava me encaminhando para algo assim.  Acredito que não é por aí.  É um cenário em que as soluções consolidadas já não fazem mais tanto sentido, mas novas maneiras de conviver e atuar politicamente estão surgindo.  Acho muito positivo esse movimento de ocupação de espaços públicos, por exemplo.  E as manifestações de 2013 também deixaram isso aparente, a demanda e a possibilidade de atuar de outra maneira.

 

 

No entanto, depois daquelas manifestações gigantescas de 2013, houve uma retração.

Os movimentos sociais que organizaram as manifestações pelo passe livre reclamaram depois, com alguma razão, que os protestos acabaram sequestrados por outras reivindicações, partidos políticos e grupos conservadores.  O aumento da passagem foi temporariamente cancelado em muitas cidades, mas por outro lado a resposta do governo às manifestações oi tímida e oportunista, o que gerou certa sensação de ressaca.  Essa ressaca, combinada com os ultrajes do marketing eleitoral nas eleições de 2014, gerou uma exasperação terrível na população.  De todo modo, me parece que houve um saldo positivo no processo, que consiste na renovada disposição de vários setores da sociedade de ir às ruas protestar, a despeito da repressão violenta da polícia.  Ao mesmo tempo em que o apoio popular ao impeachment contribuiu para as condições do afastamento juridicamente frágil e traumático da presidente, vemos crescer iniciativas como as ocupações de espaços públicos por manifestantes em geral.

 

 

A recente ocupação das escolas públicas poderia ser também considerada uma consequência daquele movimento?

É um ótimo exemplo.  A ocupação das escolas por alunos extremamente politizados, com uma visão de mundo que me parece muito animadora.  As reivindicações dos alunos que ocuparam as escolas aqui em Porto Alegre eram impecáveis, justas e realistas.  Em vez de4 performance ideológica, o que se via ali era um desejo muito informado de mudar as coisas para melhor.  Há formas de ativismo inspiradoras nascendo e crescendo no tumulto desses dias, e isso me dá esperança de que surjam daqui a alguns anos ideias e grupos políticos capazes do tipo de mudança que o país precisa, mudanças que transcendam o binarismo fisiológico de nossa esquerda e direita.

 

 

No seu livro, ex-companheiros de um fanzine eletrônico se reencontram, referência evidente ao Cardosonline, zine em que você começou a publicar textos literários.  Naquela época, havia muita esperança sobre o papel da internet na renovação da literatura.  Isso se confirmou.

Na época do Cardosonline (COL) se falava que a internet mudaria a literatura de forma radical, que o romance morreria e os contos se proliferariam porque são mais curtos.  E tinha também a coisa do hipertexto, se dizia que isso desfiguraria os gêneros literários conhecidos, que a ficção faria uso extensivo de links, imagens, textos de outros autores, que a autoria iria desaparecer... Embora todas essas coisas tenham rendido experiências bacanas e, em alguns casos, práticas que persistiram, na essência, ou ao menos na maior proporção da literatura que é publicada hoje, não houve mudança.  Os gêneros literários continuam os mesmos.  Os livros que continuam sendo best-sellers e premiados continuam sendo romances não muito diferentes de outros de 10, 20, 50 ou até mesmo 100 anos atrás.  Então, parece que todas essas mudanças pegaram um desvio e deram sua vazão nas redes sociais, blogs, aplicativos, e a literatura seguiu mais ou menos intocada.

 

 

Talvez a literatura impressa vá na direção contrária do que se esperava, sendo o espaço justamente para as narrativas mais longas.

Autores como Jonathan Franzen, por exemplo, defende que a literatura segue sendo um oco de resistência para um tipo de fruição artística que envolve foco e concentração por longos períodos.  Esse tipo de história, hoje em dia, estaria em poucos lugares, e o romance continua sendo o principal.  Por isso, as pessoas valorizariam o romance, pois se deram conta que esse tipo de narrativa, que exige uma imersão prolongada.  Apesar dos leitores estarem o tempo todo na internet consumindo informação de outro modo, o romance seria a âncora de um tipo de narratividade mais longa.  Acho que isso é verdade.  No entanto, 15 ou 20 anos depois de iniciativas como o Cardosonline, talvez seja importante questionar mais uma vez o romance.  Como leitor, tenho sentido um novo cansaço dos formatos antigos e pensado que uma nova literatura possa estar surgindo.

 

 

Que literatura é essa?

Como leitor, tenho me interessado por formatos de ficção que buscam coisas novas, tentativas de cruzar a literatura com artes visuais, outras formas de intertextualidade com mídias e gêneros.  Acho que a literatura que explora a mídia da internet de maneira interessante ainda não oi feita.  A internet mudou tanto nos últimos 15 anos que se pode pensar em formatos novos para fazer ficção.  Falei há algum tempo com o (escritor) Daniel Pellizzari sobre isso, e ele me chamou atenção para uma plataforma chamada Twine, que serve para as pessoas criarem narrativas alternativas, com múltiplas escolhas.  Não é exatamente novo, mas ter uma ferramenta que facilita isso, como facilitou fazer um blog há 15 anos, é significativo.  Quem sabe essa gurizada que está usando isso agora para criar joguinhos de texto daqui a 10 ou 15 anos estará escrevendo romances que incorporam essa novidade.  É vibrante pensar nisso.

 

 

As redes sociais têm sido palco de opiniões cada vez mais agressivas.  É um fim triste para uma ferramenta que se mostrava promissora?

Acho que tem dois lados, como quase tudo.  Concordo que a forma como se dão os debates nas redes sociais, por não ser presencial e ser muito espontânea, exime as pessoas de interagirem umas com as outras de forma significativa.  É muito mais fácil falar sozinho e reiterar opiniões repetitivamente e de forma cada vez mais agressiva na internet do que seria trocando artigos em um jornal ou no debate público.  Isso torna as discussões muito polarizadas.  Mas também tenho amigos que discutem agressivamente na rede e, quando se encontram, se abraçam na hora, e depois voltam a discutir na internet.  Se, por um lado, há muito ruído, uma porcentagem de debate que não vai a lugar algum e só gera agressividade e rancor, por outro lado, há debate como nunca houve, sobretudo.  Acho que isso é parte de uma renovação que engloba desde o modo de exercer política até o de produzir arte.

 

 

Talvez uma nova etiqueta esteja se constituindo.

Não sei.  Acho que é essa bagunça mesmo.  Nós teremos que aceitar que é assim.  As pessoas terão disposições individuais diferentes sobre até que ponto vão querer ficar imersas nisso.  Eu, por exemplo, se começar a entrar no Facebook e bater boca com as pessoas, acabo com o resto da minha vida.  Pelo meu temperamento, ficaria muito irritado e pensando nisso de forma obsessiva, me neutralizando para fazer outras coisas.  Não escreveria nunca mais linha alguma de ficção.  Por outro lado, tem gente que entra nisso e se sente energizada para produzir arte ou textos maravilhosos, com base justamente nessa bagunça, nessa troca de acusações.  Concordo um pouco com a crítica de que o debate ficou mais agressivo, polarizado e meio sem sentido, mas não demonizaria o debate na internet.  Ele veio para ficar, e sai coisa legal disso também.

 

 

Você é natural de São Paulo, cresceu aqui, mas viveu por algumas temporadas na capital paulista, além de Garopaba.  Como avalia Porto Alegre em relação a outras capitais brasileiras?

Quanto mais velho fico, mais viajo e mais tempo passo aqui, menos entendo Porto Alegre.  Não sei se a cidade vem mudando ou é o meu olhar.  Ao mesmo tempo em que é um povo, na média, extremamente conservador em termos de costumes, é também o lugar onde foram criados o Orçamento Participativo e o Fórum Social Mundial, foi o palco das primeiras manifestações contra o aumento da passagem, que acabaram se tornando aquele fenômeno maior em 2013.  É uma cidade em que a esquerda é militante, muito forte, mas tem uma elite conservadora que se expressa de forma muito veemente.  Nada disso mudou, já era assim quando eu era mais novo, só que agora a cidade expressa essas tendências dentro do que é o momento contemporâneo, que é bem mais confuso.  Mas não acho que Porto Alegre é única em nada disso.  É uma cidade cada vez mais cosmopolita, inclusive no sentido de perder um pouco de sua identidade e se fundir com a identidade de várias outras cidades que têm coisas semelhantes acontecendo.  Nosso movimento de questionar o tipo de revitalização a se fazer no Cais do Porto é muito parecido com o Ocupe Estelita, de Recife, por exemplo.  Estamos perdendo um pouco daquela sensação de que somos únicos, o que é bom,   porque não é uma erradicação da personalidade da cidade, mas a inserção dessa personalidade dentro do Brasil, do mundo, e das questões que estão afligindo todo o mundo ao mesmo tempo.  É uma cidade mais difícil de colar um perfil redondo e estável, como tinha antigamente.

 

 

É a cidade que você escolheu para viver.

Sim, por questões afetivas e econômicas.  Acho que a cidade tem, apesar da violência e de vários problemas, alguns elementos de qualidade de vida que valorizo muito.  Acho que a Redenção simboliza isso.  Ter um parque dessa dimensão em uma cidade grande como a nossa, que ainda não é cercado, a que se tem livre acesso...

 

 

Mas há iniciativas para cercá-lo...

Querem cercar há muito tempo.  Entendo alguém que defende o cercamento, mas sou contra porque se perde algo que não é materialmente mensurável, mas é algo que para mim representa qualidade de vida.  É sair do Bom Fim, do Santana, do Rio Branco e de outros bairros, atravessar um par de ruas e estar dentro de um parque sem ter que procurar aquela entrada.  Se formos colocar no papel, não é muito clara qual seria a vantagem, mas nem tudo cabe no papel.  Precisamos zelar por segurança, por ordem até um certo ponto, mas depois desse ponto, entra com um controle excessivo, uma sanitização que não gera uma vida melhor.  O que entendo por uma vida boa tem certas zonas de sombra, ruído, atritos.

 

 

Você citou a revitalização do Cais do Porto.  Qual é a sua opinião a respeito?

Sou a favor de revitalizar o Cais do Porto, porque não é uma região utilizada, a não ser em momentos e locais bem específicos, mas concordo que o atual projeto tem alguns problemas que poderiam ser resolvidos, então sou a favor desse movimento de resistência.  Pelo menos aquele shopping que colocaram no projeto tem que sair fora, mas o resto, beleza.  Não sou um purista, de dizer que não se pode mexer em nada, e Porto Alegre às vezes sofre um pouco com isso, com pessoas que não querem nenhuma intervenção.  Deve ser feita de uma maneira que leve em conta todas essas vontades.  Estou procurando pessoas que pareçam estar alinhadas com uma visão como essa nessas eleições.  Vamos ver o que isso Vai me fazer decidir.

 

Fonte:  Zero Hora/Alexandre Lucchese (alexandre.lucchese@zerohora.com.br) em 18/09/2016.