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Pascal Quignard: por Luiz Antonio de Assis Brasil
Pascal Quignard: por Luiz Antonio de Assis Brasil

O AUTOR QUE MARCOU MINHA VIDA

 

Não falarei de nenhum clássico.  Não falarei de minha infância, nem da adolescência, nem da biblioteca escolar.  Falarei de um autor meu contemporâneo – sou levemente mais velho do que ele – e que marcou minha vida literária, mas não só.  Falarei de Pascal Quignard.  O nome, entre nós, é quase desconhecido.  Dele se traduziram no Brasil dois ou três livros que não esgotaram suas edições, e a crítica pouco se interessou por eles.  No entanto, Quignard foi vencedor do prestigioso prêmio Goncourt e – agora talvez surja algo reconhecível – é autor de TODAS AS MANHÃS DO MUNDO, que inspirou o belíssimo filme homônimo de Alain Corneau, com Jean-Pierre Marielle e Gérard Depardieu, e diálogos do mesmo Pascal Quignard.

  

Comecei a ler esse autor por volta dos cinquenta e poucos anos – uma idade bastante adiantada, quando se pensa que nada mais pode marcar a vida de ninguém, mesmo suas opções literárias.  Se há algo que prezo é minha liberdade de escolher o que me parece melhor, e se tiver de mudar, mudo, mesmo que tenha setenta, oitenta ou noventa anos.  Naquele período, eu me atascava numa escrita que me parecia vagamente rebarbativa, algo longa, plena de circunstâncias, que me fazia lembrar, com um sorriso, do que escreveu Eça acerca do estilo de um orador que usava “períodos moles, gordos, movendo-se surdamente, como um lento rolar de odres mal cheios.”  Eu possuía algumas das obras de Pascal Quignard em casa, edições da Gallimard, compradas em viagens, com aquela ideia de “um dia vou ler”.  E esse dia veio.  Abri Le Salon du Wurtemberg [O SALÃO DE WURTEMBERG.]  Com grotesco exagero, foi como se a literatura mundial começasse ali.  Tudo o mais se coagulou num universo desbotado e pobre.  O outro livro, lido com entusiasmo, foi o TOUS LES MATINS DU MONDE, já referido, quando me convenci que  estava não apenas ante um grande escritor, mas um escritor que reinventava a escrita literária.

        

Quignard consegue duas proezas ao mesmo tempo: histórias sedutoras por seu leve arcaísmo – algo, digamos, clássico – e seu estilo sintético, cortado a navalha, construído em grande parte por curtas frases declarativas que, entretanto, não soam como primárias por força do intenso drama e poderosa carga poética que carregam.  Aqui um exemplo, em AS SOLIDARIEDADES MISTERIOSAS, de 2011, numa tradução livre: saboreava um morango bastante insípido, quando escutou uma voz que a afetou de forma indescritível.  Sentiu que o interior de seu corpo se dilatava, sem entender muito bem o que acontecia.  Abriu os olhos. Voltou-se.  Um pouco mais distante, à esquerda, uma vendedora de verduras ecológicas mantinha uma animada conversa com uma senhora de idade.  Lentamente se aproximou.  A voz procedia de uma dama muito pequena que estava ante as verduras.  Usava um avental branco e na cabeça um lenço com um motivo rosa de “florezinhas” sobre fundo negro, muito pequeno para a massa de seu cabelo.  A senhora perguntava como estavam os alhos-porós.  Claire gostava daquela voz, que escutava a dez passos de distância.  Adorava aquela voz.  Buscava que nome dar àquele timbre tão claro, àquela espécie de ondular de frases rítmicas que a atraíam.  A voz ascendia das alfaces romanas e beterrabas pretas.  Registrei meu evidente exagero ao dizer que a literatura começa como Quignard; de fato, a fonte está bem mais distante, está nas novelas de cavalaria da Idade Média, está na Chanson de Roland, por exemplo, em que várias ações estão condensadas em capítulos essenciais de dez a 20 linhas, escritas em frases breves.  Eis aqui o 138, também numa tradução artesanal: “Altos são os montes, e tenebrosos os vales profundos e as águas violentas.  Os clarins soam à frente e à retaguarda, e todos respondem a sua chamada.  O imperador cavalga com grande fúria, os franceses estão raivosos e sofridos.  Não há quem não chore e se lamente.  Rezam a Deus que preserve Rolando, para que todos juntos cheguem ao campo de batalha.  Então, todos com ele, atacarão.  Mas rezar, para quê?  Nada disso adianta: demoraram muito, agora é impossível chegar a tempo. 

     

O jogo das influências é matéria para muitas discussões – que não levam a nada.  Vimos que a essencialidade textual não é coisa de hoje, e poderíamos acrescentar, ainda, que a Bíblia narra toda a Criação num único parágrafo de frases precisas, ou que Matsuo Bashô construiu uma obra imperecível com seus poemas de três versos; mas o fato é que Pascal Quignard foi o autor que me marcou porque me fez ver a possibilidade de recuperar, nos dias que correm, esses recursos narrativos esquecidos, e isso me permitiu ir em frente e mudar.  Não sei por quanto tempo seguirei nesse caminho; é possível que outro autor ganhe a mesma força de Pascal Quignard.  Esse então passará a ser o autor que marcou a minha vida.  Os anteriores foram Montaigne, Flaubert, Balzac, Henry James, Schnitzler, Eça de Queirós, o Machado dos romances, Autran Dourado, Graciliano, numa lista que já vai grande.  Cada qual em seu turno.

 

Fonte:  Correio do Povo – CS Caderno de Sábado/Luiz Antonio de Assis Brasil (escritor) em 26 de dezembro de 2016.