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Teoria Literária: Personagens em Crise?
Teoria Literária: Personagens em Crise?

PERSONAGENS EM CRISE?

 

NARRATIVAS

 

Seria ingênuo escrever sobre a construção do personagem e refletir sobre a tipologia de grandes personagens que se afirmaram ao longo da história da literatura?  No âmbito de artistas e críticos intelectualizados, o assunto é hoje quase um tabu.  Afinal, diriam eles, estamos em tempos pós-modernos, e a própria ideia do personagem relevante (representativo de valores e ideais compartilhados), da figura emblemática que capte a atenção do público e cumpra uma função ética e social no imaginário coletivo tornou-se duvidosa.  A teoria reza que estaríamos vivendo uma época pluralista que relativiza todos os critérios e desloca o juízo para uma pluralidade de grupos que pouco se reconhecem mutuamente – o que inviabilizaria construções típicas.

 

Mas diante do ressurgimento de estruturas imaginárias regressivas e arcaicas ativadas na última década e meia, é quase uma urgência falarmos de novo do panorama histórico no qual o personagem literário tomou forma ao mesmo tempo que deu forma(s) às nossas expectativas e reações.  Tentemos, portanto, esboçar algumas conjeturas a respeito dos grandes tipos históricos do personagem épico e romanesco que entrou em crise.  E lembremos que essa crise é recente, ela começou somente ao longo do século XX!  Essa crise do personagem, que coincide com a crise (da filosofia) do sujeito, é válida apenas em obras intelectualmente exigentes, ao passo que a arte e a comunicação voltadas para o grande público continua a operar com nomes tradicionais: obra (prima), autor, herói, personagem...

 

E isso tem boas razões, que remontam a hábitos hoje quase inscritos nos genes da humanidade.  Durante milênios prevaleceu o privilégio não só do herói fundador, mas também de outros tipos necessários para erguer e sustentar uma cultura que dure: ao lado do jovem conquistador de terras e mulheres férteis, surge o instaurador da cidade, da lei e da civilização.  O que chamamos de literatura, alimenta-se, até hoje, dos modelos dos mitos Babilônios e greco-romanos, dos relatos indígenas e das lendas: vemos os heróis literários emergir das figuras míticas – deuses, semideuses e homens – que conquistam bens agindo no mundo exterior.  Mas mesmo nas fases iniciais da mitologia já se forma uma diferenciação de múltiplos caracteres – uns se distinguem pela ação da com quista através da força e do combate sangrento (guerreiros), outros pelo ardil e a inteligência inventora (tricksters e magos como Hermes, Dédalo), um terceiro tipo brilha pela capacidade de ordenar e conservar os bens conquistados (reis) em conjunto com figuras que abrem o acesso aos poderes sobre e subumanos (sacerdotes).  Ao lado desses tipos superiores, há o grande número dos personagens miúdos que se sujam as mãos com o trabalho e com o registro fiel da experiência e sabedoria acumulados ao longo do tempo: dependendo da fase evolutiva, esses personagens aparecem como caçadores ou domadores de animais, agricultores, navegadores ou artesãos.

 

O cristianismo mudou pouco nessa distribuição de funções dos personagens relevantes para a civilização.  Apenas moralizou as três funções da elite (verter o sangue, governar, rezar) e o trabalho dos humildes súditos.  Importante para o imaginário literário é, no entanto, a supressão sumária dos dois grandes tipos que tornam as literaturas antigas tão interessantes.  A sensibilidade cristã elimina, de um lado, os magos e tricksters (que se tornam personagens demoníacos), de outro, a rica gama de qualidades femininas que os mitos atribuíam às deusas.  É interessante observar que as mitologias pagãs têm um imaginário generoso, que concede às mulheres – pelo menos ao nível idealizado dos deuses – a mesma inteligência e força, destreza, coragem  e sabedoria que possuem os deuses homens.  O cristianismo é mais opressivamente patriarcal, de forma que personagens femininas interessantes começam a se desenvolver tardiamente (a partir do século XII) e sempre sob a pressão de intervenções laicas e mundanas, que tiveram de se apoiar em modelos lendários e míticos pagãos para a reinvenção do personagem feminino diferenciado.

 

Talvez seja plausível a hipótese de que a ironia romântica, que reinventou a ambivalência como figura dominante, recupera, num novo contexto a qualidade ardilosa dos tricksters míticos.  Seja como for, as narrativas – literárias ou ideológicas – parecem sempre retornar aos grandes tipos ancestrais mapeados ao longo da história das nossas mitologias e literaturas ancestrais.  Em particular na América latina, os tipos do imaginário indo-europeu renasceram nas narrativas engenhosas do século passado – pensemos apenas em Simões Lopes Neto ou em J. Guimarães Rosa, em “Martin Fierro” ou “Antonio Chimango”.

 

Importa ver que essas narrativas da família patriarcal e dos clãs – comentam e perpetuam o apego às armadilhas imaginárias do “sertão que é o mundo”: a esperança messiânica de um líder (ou partido-clã) carismático, a aposta num bom pai que coloque ordem na família-Estado – uma esperança tão forte que tudo o que sabemos racionalmente é esquecido. – Os cientistas que investigam o cérebro explicam: 98% das atividades do nosso cérebro escapam ao controle racional e responde aos apelos forjados por narrativas muito antigas, pela memória arcaica e inconsciente da humanidade.  E em tempos difíceis isso significa: fortalecer a família, a figura patriarcal (ou a matriarca-substituta), apostar no bem estar material, no poder e na riqueza.  Sem espaço para sutilezas modernas ou pós-modernas.  O exercício da razão, de cálculos e considerações conscientes, é um hábito humano muito recente e muito pouco enraizado, comparado com as reações filogenéticas da humanidade, que remontam a uma tradição narrativa de dezenas de milhares de anos: nas narrativas literárias, como nas ideológicas o(s) personagem(ns) devem ser construídos segundo os antigos figurinos.

 

Fonte:  Correio do Povo/CS/Kathrin Rosenfield (Professora de literatura da UFRGS) em 06/8/2016.