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Na Sala dos Espelhos, da sueca Liv Strömquist
Na Sala dos Espelhos, da sueca Liv Strömquist

A TIRANIA DA BELEZA

A sueca Liv Strömquist discute vaidade, inveja e a obsessão pelo corpo em "Na Sala dos Espelhos"

Livro:  NA SALA DOS ESPELHOS de Liv Strömquist. Tradução de Kristin Lie Garrubo, editora Quadrinhos na Cia, 168 páginas

 

O título é quilométrico – NA SALA DOS ESPELHOS: AUTOIMAGEM EM TRANSE OU BELEZA E AUTENTICIDADE COMO MERCADORIA NA ERA DOS LIKES & OUTRAS ENCENAÇÕES DO EU.

 

A narrativa vai do mito bíblico de Jacó às últimas sessões de foto de Marilyn Monroe, da obsessão da imperatriz Sissi, no século 19, pela magreza, à obsessão do mundo, no século 21, por Kylie Jenner.

 

E o texto está repleto de citações de filósofos, sociólogos, escritores e historiadores como os franceses René Girard e Simone Weil, o polonês Zygmunt Bauman, o alemão Hartmut Rosa, o sueco Martin Hägglund, as estadunidenses Stephanie Coontz e Susan Sontag, o sul-coreano Byung-Chul Han e a marroquina Eva Illouz, que discorrem sobre temas como a teoria do desejo mimético e a estética do liso, o casamento nos tempos dos caçadores-coletores e o estado permanente de insegurança da modernidade líquida.

 

Mas lê-se num fôlego só a terceira HQ de Liv Strömquist publicada no Brasil, após A ORIGEM DO MUNDO: UMA HISTÓRIA CULTURAL DA VAGINA OU A VULVA VS. O PATRIARCADO e A ROSA MAIS VERMELHA DESABROCHA: O AMOR NOS TEMPOS DO CAPITALISMO TARDIO OU POR QUE AS PESSOAS SE APAIXONAM TÃO RARAMENTE HOJE EM DIA.  Porque a autora sueca de 46 anos sabe dosar profundidade com leveza, seriedade com humor; cotejar suas fontes teóricas com suas personagens; encadear ideias com clareza e num ritmo harmônico; e engajar o leito, fazendo perguntas que nos convidam a refletir juntos, dando exemplos práticos de conceitos, espelhando o passado com a contemporaneidade, o conto de fadas (é a madrasta da Branca de Neve que ilustra a capa) com a realidade não raro nua e muitas vezes crua.

 

NA SALA DOS ESPELHOS começa justamente em tom de fábulas, apresentando a mais nova das "cinco irmãs mais lindas do mundo", as Kardashian.  O perfil de Kylie Jenner no Instagram origina a primeira das discussões propostas: "Por que as pessoas/garotas que olham uma foto da Kylie, com sua cinturinha de academia, suas maçãs do rosto esculpidas em marfim e sua bunda de perfeição celestial, não sentem apenas a alegria e a gratidão que sentem ao ver, digamos, um pôr do sol glorioso ou uma praia paradisíaca?  Por que, paralelamente ao fascínio, também são tomadas por emoções negativas e difusas?  Algo dói no peito. Um sentimento de inferioridade, um sentimento de derrota?  Um anseio inflamado que sabem ser irrealizável?  Frustração, quem sabe até raiva?".

 

Quem ajuda explicar é Girard: as pessoas sempre desejam o que os outros desejam.  A tempestade perfeita, que nos empurra para confiar ainda mais em modelos (os famosos ou os nossos amigos) e copiar ainda mais os desejos alheios, é que, libertos de tantas restrições e condutas impostas pela religião e pela tradição, ficou mais difícil saber o que de fato queremos.  E quando nosso desejo é despertado por outra pessoa, essa se torna um obstáculo, uma rival.  Imitamos e competimos simultaneamente, "sum misto de admiração submissa e rancor intenso".

 

O segundo capítulo parte do relato bíblico sobre Jacó, Lia e Raquel para discorrer sobre "uma dolorosa realidade: pessoas atraentes têm mais chance de serem amadas".   O mergulho na história traz momentos brilhantes, como quando Strömquist justifica por que cabelos longos, unhas compridas e sapatos de salto alto são considerados atributos de sedução em uma mulher.

 

Depois, ela recorre a Bauman para abordar a "vida de vigilância constante" dos casais contemporâneos: não há como saber quem será o primeiro a romper "tendo se cansado de compromissos entediantes e das promessas de uma lealdade difícil de cumprir ou tendo identificado em outro lugar ligações mais promissoras e menos incômodas".  A única coisa a que podemos nos agarrar, nossa segurança contra a solidão, a proteção contra a morte metafórica do abandono, passa a ser a beleza.  E como vivemos na era da produção explosiva e do consumo maciço de fotos e vídeos, via Instagram e TikTok, a aparência se torna "infinitamente mais importante".

 

A sociedade das selfies também é decorrente de um desejo de congelar o tempo. Strömquist ilustra os depoimentos de cinco mulheres que encaram ou já lidaram com o envelhecimento.  Nina, 53 anos, sempre conseguiu qualquer cara que quisesse; agora, diz que ainda pode ser bonita, se estiver cercada de pessoas mais velhas ou num ambiente à meia-luz.  Karin, 73, lembra que, quando tinha 52, o marido a trocou por uma mulher de 22.  Lena, 53, assume: "Usei e abusei do charme.  A beleza pode ser uma arma de destruição em massa. Uma mulher bonita consegue convencer um homem de qualquer coisa".  Ela vai além, enxergando "algo de democrático": "Qualquer moça bonita, independentemente da classe social, pode subir na sociedade".

 

Daí que muita gente queira controlar a beleza.  Mas a beleza não pode ser possuída ou poupada, ela é efêmera por natureza. Strömquist filosofa: "Não é precisamente a efemeridade da beleza que a torna bela, assim como um arco-íris é belo porque desaparece, ou uma flor é bela porque murcha?".  Da mesma forma que a morte é uma condição para a vida, a beleza precisa da efemeridade para ser percebida.

 

Foi por não aceitar a transitoriedade de tudo que a imperatriz Isabel da Áustria (1837-1898), a Sissi, tornou-se, primeiro, uma figura que deslumbrava a todos, depois, uma mulher para quem a própria beleza virou um fardo.  No capítulo final, a autora rememora os esforços dessa personagem para esconder certas imperfeições, a ponto de, após completar 32 anos, se recusar a ser retratada ou fotografada novamente.  Mas, em segredo, Sissi não parou de cultuar a si mesma, de lutar pela preservação de sua beleza.  Sissi antecipou um dilema e um sofrimento muito atuais, o da divisão entre o eu privado e o eu público, estudado pelo sociólogo Chris Rojek.

 

"No exato momento em que Franz Winterhalter finaliza o retrato perfeito de Sissi, aquele com as estrelas de diamante no cabelo, o quadro se torna rival de Sissi", escreve Strömquist.  "O quadro (o eu público) é celebrado, admirado, adorado.  No entanto, existe uma pessoa real que envelhece, tem dentes amarelados, pode ganhar peso.  Uma pessoa que talvez ame a imagem, mas a imagem não a ama de volta.  A imagem suga todo o amor e toda a aprovação que desejo.  A imagem me ofusca, me humilha, ameaça me aniquilar.  Os elogios ao quadro fazem o eu privado sentir: tudo em mim que não seja o quadro é uma merda e não deveria existir.  A imagem se torna uma tirana".

 

Fonte: Zero Hora/caderno DOC/Ticiano Osório [ticiano.osorio@zerohora.com.br] em 16/04/2023