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Virtuosismo Passional, Luiz Fernando Verissimo
Virtuosismo Passional, Luiz Fernando Verissimo

VIRTUOSISMO PASSIONAL

 

Os textos de Julio Cortázar são para ser lidos como jogo de armar.  Cortázar seria um pioneiro do pós-modernismo, definido como uma literatura autoconsciente ao extremo, uma literatura com os andaimes à mostra, em que o leitor é convidado a ser cúmplice dos seus artifícios.  Italo Calvino descreveu o pós-modernismo como a “tendência de usar, ironicamente, imagens padronizadas da cultura de massa ou da tradição literária numa narrativa que acentua o seu artificialismo”.  Segundo essa definição, o pós-moderno é a continuação do moderno como paródia.  Ou, no caso de Cortázar e outros, como jogo.  Parafraseando o que Marx disse sobre a História, na literatura o convencional também só se repete como farsa.

 

Pode-se, com alguma boa vontade, identificar o começo do pós-moderno no pré-moderno, na origem da tradição literária de que fala Calvino:  o Dom Quixote de Cervantes já era uma literatura autoconsciente e parodística – no começo do século 17.  A segunda parte de Dom Quixote acontece num mundo em que já aconteceu a primeira, e as aventuras malucas de Quixote são conhecidas de todos.  Cervantes incorpora sua fantasia e seu personagem fictício à realidade do dia, confiando na indulgência do leitor com o truque.  E pode dizer, antes de todos os pós-modernistas que virão:  “Primeirão!”

 

Outro precursor, este no século 18, foi A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy, do irlandês Laurence Sterne.  Publicado em nove volumes, é a história, contada na primeira pessoa, de um personagem rocambolesco, Tristram, que recorre a todas as convenções literárias da época, fazendo pouco delas, para narrar sua vida.  E, quando as convenções e as palavras não bastam, recorrendo a grafismos como o desenho no meio do texto de uma linha em espiral para descrever o movimento de uma bengala no ar.  O que deve ter sido um desafio para os tipógrafos da época.  Sterne também foi um pós-moderno antes do moderno.

 

O americano John Barth, este um pós-moderno de hoje, escreveu sobre dois pós-modernos contemporâneos que admira, Calvino e Jorge Luis Borges.  E tomou emprestado de Borges uma definição de dois valores que, combinados, descrevem a arte da dupla, Álgebra e Fogo.  Álgebra (a “árdua álgebra” de Borges) significando a engenhosidade formal na construção de uma obra, o truque que surpreende ou desafia o leitor, ou pleiteia uma cumplicidade intelectual.  Fogo significando o que comove, o que toca fundo.

 

Álgebra sem fogo acaba em malabarismo técnico sem alma, fogo sem álgebra acaba em literatura enjoativa, porque alma demais também enjoa.  Para Barth, Calvino e Borges são os dois grandes escritores do nosso tempo porque, na sua ficção, atingiram como ninguém mais a fusão de álgebra e fogo.  Barth descreve o que eles fazem – ou fizeram, pois os dois já se foram – como “virtuosismo passional”.  Perfeito.

 

Fonte:  L.F.Veríssimo (veríssimo@zerohora.com.br) em 19/07/2015