LORCA NAS LEMBRANÇAS DA INFÂNCIA
A poesia e o teatro de García Lorca estão ligados para mim às lembranças da minha infância em Madrid, nos anos 1980, tanto na escola pública, com as suas aulas de literatura e recitais de poesia, em que aprendíamos a declamar versos, quanto no teatro, aonde meus pais e meus professores nos levavam. São lembranças de poemas que soavam como canções aos nossos ouvidos de crianças, por exemplo, os do Romanceiro cigano, com as imagens intrigantes de Antonito el Camborio, que dava saltos esguios de golfinho e que morreu de perfil, ou de Soledad Montoya e sua “pena negra”. Também me recordo do Teatro de bonecos d “Cachiporra”. Montamos uma dessas obras no colégio. Lembro-me dos ensaios interpretando Rosita de don Cristobita, decorando as palavras e morrendo de vergonha, junto com meus colegas de 23 anos de idade, das cenas de amor, ainda que fossem tragicômicas. Tive a imensa sorte também naqueles anos de poder ver no teatro “A Casa de Bernarda Alba”, com as grandes atrizes espanholas Berta Riaza e Ana Belén, e Dona Rosita, a solteira, com a comovente e poderosa Nuria Espert.
Minha adolescência punk deslumbrou-se com o poeta em Nova York quando comecei a conhecer a trágica e fascinante biografia de Lorca, graças, em certo sentido, ao desembaraço do meu professor de literatura que, num restaurante, ao avistar o historiador Ian Gibson, especialista em Lorca, não se conteve, saltou em cima dele e tratou de convidá-lo para que fosse ao nosso simples colégio de periferia contar-nos a história e a morte de García Lorca. História que é uma boa síntese da efervescência e das ilusões republicanas, com os seus anos passados na Residência dos Estudantes e as amizades com Luís Bunuel e Salvador Dali, as aventuras de La Barraca, escola de teatro ambulante, experimentações inovadoras e improvisações culturais que oram como relâmpagos sem continuidade. E também o horror da guerra civil com seus fuzilamentos em barrancos e valetas, cujo reconhecimento ainda provoca tanta resistência. Garcia Lorca não é um símbolo, não apenas, ainda que a sua biografia e sua sexualidade de celebridade e de pária sejam inseparáveis da sua memória e da sua literatura.
Palavras e lembranças de García Lorca me acompanham desde então. Formam uma parte do que é a minha pátria de “espanhola sem paixão”, nas palavras de Luíz Cernuda, poeta e amigo de García Lorca. Não sou especialista em literatura nem em história, não tenho teses nem teorias sobre a obra dele, nem sequer a conheço na integralidade. Tampouco sou patriota. Nem acabo de entender ou de encarnar essa tal de identidade nacional, embora tenha sentido as alegrias comuns, como na Copa do Mundo de 2010, e as dores compartilhadas, coo no atentado dos trens de Madrid, em 2004. Porém, se algum sentido tem ser espanhola tem de ser algo relacionado com palavras e versos numa língua materna lorquiana, contando histórias de ciganos andaluzes e guardas civis, de pobres e injustiçados, de mulheres fortes e vulneráveis em terras hostis, ou seja, nada mais do que a sua vida diária e de toureiros cuja paixão não compartilho. Mas, apesar disso, também retumbam em mim as cinco horas da tarde do sofrimento do luto. E as imagens fulgurantes e escuras ressurgem sem se revelar no momento, alterando-se na duração e no sentido de acordo com as sucessivas leituras.
Uma língua própria que renasce também em Nova York, em 1929, e que para mim soaria como se o rei do Harlem de Lorca acabasse de sair de um show de Death Kennedys na CBCG, com a sua angústia, a sua violência e o seu sangue subindo, nas metáforas tão singulares do poeta, para “quemar la clorofila de las mujeres rúbias”. Agora, agora tenho um filho negro gigante e temo pelo “sigilo dos caimanes”. E esta valsa, esta valsa, esta valsa, não a canta Leonard Cohen porque num intervalo de prazer. Esse puro poderio punk lorquino que desde sempre me acompanha.
Fonte: Correio do Povo/CS/Amparo Lasén (Professora do departamento de sociologia da Universidade Complutense de Madrid) em 20/8/2016.