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Federico García Lorca e Morte na Pior das Guerras
Federico García Lorca e Morte na Pior das Guerras

MORTE DE GARCÍA LORCA: 19 DE AGOSTO DE 1936, PIOR DAS NOTÍCIAS.

                                                    

Em 1937, Pablo Neruda perguntava:  “Como se atrever a destacar um nome dessa imensa selva de nossos mortos?”  É certo: todas as vidas têm o mesmo valor desmedido.  Mas há mortes que ganham força e alcance pelo símbolo em que se convertem, como sublinha a filóloga Isabel Clúa na introdução  da antologia poética;  “O Crime foi em Granada”.

 

“O Crime foi em Granada”, assim se erguia a voz de Antonio Machado na primeira reação poética diante de um assassinato tão absurdo e injusto.  A terra natal de Lorca convertida em seu leito de morte.  Morrer na própria terra como símbolo universal da pior das guerras (sim, existem as piores): aquela em que se enfrentam pessoas de uma mesma raiz e de um mesmo sangue.

 

“Eu sou espanhol por inteiro e me seria impossível viver fora dos meus limites geográficos; mas odeio ao que é espanhol e nada mais; sou irmão de todos e execro o homem que se sacrifica por uma ideia nacionalista, abstrata, pelo simples fato de que ama a sua pátria com uma venda nos olhos.  O chinês bom está mais perto de mim que o mau espanhol.  Canto a Espanha e a sinto até a medula, mas, acima de tudo, sou homem do mundo e irmão de todos.  Assim, não creio na fronteira política”.  Dado que para a sua condenação, o poeta não teve direito a julgamento nem sentença, essas palavras suas, numa entrevista dada poucos dias antes de sua morte, podem servir para ilustrar a absoluta incompatibilidade entre a sua forma de sentir e a nebulosa nacionalista que se espalhou pelo país.

 

A dor e seu manto / Vêm mais uma vez ao nosso encontro / E uma vez mais no beco do pranto / Chuvosamente entro

 

Miguel Hernández converte a noticia terrível da morte do poeta num presságio, o de outras mortes e o do começo de uma longa ditadura.  A notícia correu de boca em boca, primeiro do lado republicano; depois, com ressonância internacional.  Uma mancha que seguiria pesando sobre o regime que governaria depois da guerra.  Machado e Hernández, ambos poetas, acabaram também sendo vítimas da violência franquista, com armas menos estrondosas que as balas que martirizaram Lorca.  Miguel Hernández morreu de tuberculose na prisão, enquanto Machado encontraria o destino ao cruzar a fronteira da França.

 

A vida de exílio é outra forma de morrer, como foi a sorte de muitos outros, entre os quais a do poeta Luis Cernuda, engrossando a sombra do sofrimento provocado pelo franquismo, que assinalou:

 

Por isso te mataram, porque eras / Verdura e nossa terra árida / E azul em nosso ar obscuro.

  

O fascismo italiano registrou o seu primeiro e simbólico caso de violência com o assassinato de um político socialista, Giacomo Matteotti.  O nazismo, com a chamada “Noite dos Longos Punhais”, deu seu salto para a frente na radicalização política.  Na Espanha, o assassinato de Lorca marca uma tônica distinta: a primeira vítima simbólica de um sacrifício, cuja notícia alertou o mundo, seria um poeta.  A guerra incivil de Franco abrigou, como acontece em todas as ditaduras, travada contra os humanistas e os pensadores.  Assassinaram, prenderam e exilaram todos os intelectuais que ousaram enfrentar o poder.  A liberdade de expressão ficou reservada aos poderosos e também aos psiquiatras.

 

Antonio Vallejo Nájera e outros se encarregariam de propiciar tratamentos de choque contra a decadência da raça espanhola.  As mulheres que no teatro de Lorca tinham encontrado uma referência de igualdade (em virtudes e defeitos) com o homem, voltaram a ser relegadas a uma condição de inferioridade respaldada por Nájera, o psiquiatra favorito do regime franquista:  “Atrofia a inteligência da mulher como as asas das mariposas da ilha de Kerguelen, visto que a missão dela no mundo não é lutar na vida, mas carregar a descendência de que tem de lutar por ela”.  Os filhos das republicanas eram separados das mães, com o beneplácito do gabinete de Investigações Psicológicas, para isolar esse “gene vermelho”.

 

Ficava proibida uma condenação tão revolucionária como aquela, na obra de Lorca, dirigida pela Velha a Yerma, punida pela negação do seu direito à maternidade: “A culpa é de seu marido, estás ouvindo?”  Deixaria que me cortassem as mãos.  Nem seu pai, nem seu avô, nem seu bisavô se comportaram como homens de casta”.  Yerma, assassinando o esposo, também assassina o filho que ele nunca quis lhe dar.  Tiradas vistas como delirantes saídas da mente de um dramaturgo homossexual.

 

Com Lorca morreu mais que o homem, o intelectual, o escritor, o dramaturgo, o músico e o poeta.  Morreu uma voz que abria a Espanha ao mundo.  Fechou-se por muitos anos a porta entre a cultura oficial e a cultura dos ciganos.  Caiu a vasta ponte lançada pelo poeta com os negros dos Estados Unidos.  Secou-se o manancial subterrâneo que desde o simbolismo e o surrealismo francês fez brotar os versos desse andaluz universal.  Miguel de Unamuno condenou o franquismo a uma impotência intelectual e cultural que se instalou, de fato, ao longo de uma ditadura cinza e interminável: “Vencereis, mas não convencereis”, vaticinou em 1936, o filósofo.

 

Só o dogmatismo de um catolicismo tão obscuro como o dos piores anos da contrarreforma serviria de falso argumento a Franco.  O ditador sem estatura não tinha o super-homem de Nietzsche como livro de cabeceira, mas a mão incorruptível de Santa Teresa.  “Esse escritor morreu no meio dos revoltosos.  São acidentes naturais da guerra”, assim o ditador Franco, mais uma vez tendo somente o argumento do vencedor, despachava a imprensa, conforme lembra Ian Gibson, o historiador que dedicou anos da sua vida à investigação da morte de García Lorca.  O poeta Antonio Machado exortou:

 

Edifiquem, amigos,/ De pedra e sonho, no Alhambra,/ Um túmulo para o poeta,/ Sobre uma fonte onde chore a água / E eternamente diga: / O crime foi em granada, / em sua Granada!

 

O assassinato de Lorca segue pesando sobre as frágeis asas d eum país com muitos problemas de identidade.  Os festivais de teatro, os violões dos ciganos, as vozes de Camarón de la Isla, de Enrique Morente, de Leonard Cohen e muitas outras repetem como um eco suas obras imortais.  A sua ausência segue rondando a árida paisagem desta terra esquartejada.

 

Fonte:  Correio do Povo/CS/Ugo Ceria (Italiano, poeta, letrista, doutor em Sociologia pela Sorbonne, publicitário em Madrid e admirador da música de Vitor Ramil) em 20/8/2016.