BAUDELAIRE ENTRE NÓS
Clássico disponível em nova edição com tradução de poeta gaúcho, AS FLORES DO MAL, permanece “um soberbo enigma na história da literatura”, segundo professor e ensaísta.
Há poetas que não morrem nunca. Há poetas que, quanto mais mortos, mais vivos estão! Mais interferem em nossa vida pessoal e social. Afinal, o que é um século em termos de literatura? Muitos autores têm tomado Charles Baudelaire como objeto de suas indagações. A despeito disso, o gênio do grande autor francês parece inesgotável. Centenas de historiadores e críticos debruçaram-se sobre os 150 poemas da coletânea AS FLORES DO MAL, que Baudelaire foi aumentando, de uma edição para outra. O poeta permanece um soberbo enigma da história da literatura. Falamos em gênio? Sim, esse escritor que, por assim dizer, sepultou a poesia antiga, influenciou todos os poetas que vieram depois, mesmo os mais criativos, embora nem sempre seja possível determinar quando, onde, em que medida, foi tal influência.
Em Portugal, a primeira referência a Baudelaire foi a de Eça de Queirós num folhetim da Gazeta de Portugal de 21 de outubro de 1866, sob o título “Poetas do Mal”. Na época, Antero de Quental foi dos primeiros a dar-se conta de que Baudelaire era um parnasiano que, na sua condição de admirável estilista, “trabalhava a frio o excêntrico e o macabro”.
Segundo o professor Jacinto do Prado Coelho, Eça e Antero inventaram um poeta satânico, à imitação de Baudelaire, chamado Carlos Fradique Mendes. O público acreditou na mistificação dos dois autores. Antero atreveu-se a escrever um quarteto invocando Baudelaire “em termos que bem traduzem o juízo que dele fazia”: “Tu sabes o que é dor, ó sereno estilista! / Sob o fraque de dandy há em ti o vês, / Um poeta, um leão, um demônio que o artista / Pode a custo conter, domar, calcar aos pés”.
Citemos um dos historiadores que nos trouxeram luzes sobre o grande poeta francês – Philippe Van Tieghem, que interroga: “Qual o drama íntimo de Baudelaire?”. E responde: “(...) Um invencível tédio da vida”, uma “ânsia de novas emoções que o desregramento dos sentidos é o único a provocar e que constitui a exclusiva fonte de novos prazeres para a sua sensibilidade já tão desiludida; a noção de pecado – sal do prazer e tormento da alma, que se mantém poderosa num homem imbuído das regras cristãs da vida moral e sem qualquer desejo de se libertar delas, ou, antes, considerando-as um obstáculo tão necessário à conquista do prazer como as regras da Arte são indispensáveis à produção da beleza”.
Como se isso não bastasse para deixar o leitor absorto na ruminação de tão variados pontos de vista, o historiador adjunta: “Por tudo isso, o poeta oferece-nos o espetáculo daquele que não tem forças para se libertar de si mesmo e vive enclausurado em recordações mais fortes do que a realidade exterior; é o homem que recusa a vida em sociedade para se consumir num tédio com raízes metafísicas; é ainda aquele que, desdenhando do prazer sob a forma de divertimento, procura a vertigem nas bordas do abismo interior para experimentar a angústia reveladora do divino – ou a alucinação – criadora de imagens ou mensageira dum eu desconhecido; é, finalmente, o que evita a cólera ou as lágrimas e aguça a ironia (...) em perigoso jogo com a dor que nunca sara”.
Não é esse um fragmento digno não de um dia de meditação intensiva, mas, desde que acompanhada pela leitura dos poemas do próprio Baudelaire, de um tempo indefinido de reflexão sobre o universo do grande inovador, um Copérnico que descobriu que não é o sol da metafísica que gira ao redor de nós, mas a terra sobre a qual nossos pés caminham. Noutras palavras: a verdadeira realidade é a nossa condição de filhos de Eva degredados, submetidos à miséria, à fragilidade do organismo, às traições da emocionalidade, ao tédio da vida numa metrópole transbordante de proletários, prostitutas e seres marginalizados.
Vamos a outro de seus intérpretes: Albertt Thibaudet, autor de uma conhecida HISTÓRIA DA LITERATURA FRANCESA DE 1789 A NOSSOS DIAS. Thibaudet distingue em Baudelaire quatro elementos: um cristianismo interior, uma inteligência crítica, uma vida secreta numa grande capital e uma aliança da poesia com a prosa.
O autor é radical ao afirmar que o cristianismo de Baudelaire é o contrário do de Chateaubriand e dos autores românticos: opõe-se a estes “sem a consciência do pecado original, esse mal da vontade”. Em Baudelaire, o sentimento do homem pecador é explícito e insistente. O pecado até marcou a Natureza, eis a razão por que o poeta o detesta. O homem não é naturalmente bom. Pela primeira vez desde Racine ocorre um retorno a uma poesia do pecador e do pecado.
A respeito da inteligência crítica de Baudelaire, Thibaudet menciona os dois volumes de ensaios do poeta. Todo mundo concorda que sua crítica é uma das mais inteligentes do século 19. Baudelaire defendeu MADAME BOVARY, de Flaubert, que estava sendo objeto de um processo por imoralidade. O poema de Baudelaire Viagem à Citera permanece o poema-tipo da clarividência atroz.
Quanto ao sentimento agudo de Paris, anota o historiador: se Victor Hugo foi o poeta do ambiente de Paris, Baudelaire foi o poeta dos subúrbios pobres, do qual extraiu “a alma de suas noites, a alma de seu spleen”.
Sobre a aliança, enfim, da poesia com a prosa: descobre-se um prosaísmo em Baudelaire, ou melhor, o problema do prosaísmo de Baudelaire, que é o que alguns denominam de “sensaborias” ou “incorreções” em seus versos, para outros é “uma nudez voluntária destinada a produzir um efeito semelhante ao das partes não trabalhadas de Rodin em seus mármores”.
Creio que bastam esses dois fragmentos para que os amantes de poesia voltem a ler Baudelaire. A obra de um grande poeta é uma fonte perene de água pura que, à maneira do rio de Heráclito, não passa duas vezes debaixo da mesma ponte. A fonte de Baudelaire não dessedenta duas vezes um leitor de poesia. Ele é, por assim dizer, original em cada leitura.
Fonte: Jornal Zero Hora/Caderno DOC/Armindo Trevisan/Poeta, escritor, crítico de arte em 17/11/19