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Emily Dickinson e seus Enigmas Indecifráveis
Emily Dickinson e seus Enigmas Indecifráveis

OS ENIGMAS INDECIFRÁVEIS DE EMILY DICKINSON

 

NOS 130 ANOS DA MORTE DA POETA, NÃO SOU NINGUÉM, TRADUZIDO POR AUGUSTO DE CAMPOS, GANHA NOVOS POEMAS

 

NÃO SOU NINGUÉM – AUTORA EMILY DICKINSON, TRADUÇÃO AUGUSTO DE CAMPOS, EDITORA UNICAMP, 192 PÁGINAS

 

A POETA. SOLITÁRIA, RECLUSA, DE EDUCAÇÃO PURITANA E IRÔNICA.

 

Em tempos de “escritores on show”, chega a ser uma fina ironia que a poeta norte-americana mais aclamada desde a modernidade encarne a figura de uma mulher solitária, de vida reclusa e educação puritana, cuja palavra começou revolucionando anonimamente o cânone literário do século 19 até influenciar os caminhos da poesia moderna universal.  Hoje, 15 (maio), completam-se 130 anos da morte de Emily Dickinson, e, durante o mês, novos eventos devem se somar aos já copioso inventário de homenagens à poeta, que teve sua primeira edição crítica completa organizada e publicada apenas em 1955, por Thomas H. Johnson, num volume de 1.775 poemas, até hoje principal referência em estudos e traduções.

 

O sentido irônico dessa celebrização, nada estranho a quem dominava a ironia tanto quanto se ocupava do duplo tema do anonimato e da fama, parece preservar da banalização uma obra que, além de satirizar da hipótese do próprio sucesso, é também uma obra de enigmas que permanecem indecifráveis, inclusive em seus aspectos gráficos.  Alta densidade simbólica e abertura polissêmica, com travessões (ou disjunções) pesando sílaba e som, desarticulando sintagmas e sentidos, entre eles abrindo frestas, são algumas das características que continuam a instigar diferentes abordagens de ensaístas e tradutores.  Entre os poetas portugueses e brasileiros que já encararam a complexidade dessa tarefa estão Jorge de Sena, Nuno Júdice, Ana Luísa Amaral, MANUEL Bandeira, Mário Faustino e Augusto de Campos.

 

Com Augusto de Campos, aconteceu à tradução de Dickinson o mesmo que anteriormente com a poesia de Rilke: o trabalho teve continuidade depois da publicação de uma primeira coletânea, desdobrando-se numa segunda edição revista e ampliada.  No caso de Dikinson, o retorno se deu após a disponibilização dos manuscritos da poeta na internet e da seleção fac-similar, em 2013, de seus “poemas-envelope”.  O resultado foi um acréscimo de 45 poemas aos 35 da primeira edição de 2008 da coletânea NÃO SOU NINGUÉM.  Aos célebres Sépala, pétala e um espinho, Não sou Ninguém! Quem é você?, Morri pela Beleza – e assim que no Jazigo, já presentes na primeira seleção, vêm juntar-se agora, por exemplo, Na Casa eu era a mais esquiva, Há a solidão do espaço e Para fazer um prado abelha e trevo, poemas representativos de temas marcantes, como o do espaço doméstico do quarto ou de um jardim ressignificados pela alma que os imagina.

 

Um toque especial nesta nova seleção são os versos que fecham o volume, não incluídos em nenhuma das coleções de poesia de Dickinson por se tratar de um trecho de uma carta ao crítico Thomas W. Higginson.  São versos que remetem a uma noção de circularidade inerente à obra da autora como um todo, o que mostra o zelo com que Augusto de Campos trabalha, contemplando na coletânea mais de 30 anos de criação, a metade dos poemas concentrados na primeira metade da década de 1860, período que também abrange a fase mais profícua da poesia de Dickinson.

 

Lembrando que existem outras coletâneas brasileiras em traduções de fôlego, como a da professora Aíla de Oliveira Gomes (Uma Centena de Poemas, Prêmio Jabuti 1985), com rico apêndice de notas, ou a mais recente, de José Lira (A Branca Voz da Solidão, 2011), mantém-se em destaque o cuidadoso trabalho de Augusto de Campos, que, mesmo reivindicando para si “a liberdade da improvisação e do rubato”, continuamente se preocupa com a fidedignidade à prosódia, ao estilo elíptico da autora e as suas particularidades gráficas.

 

Na transposição dos enigmas do “idioma poético” de Emily Dickinson, é sensível o respeito com que são conseguidos paralelos estéticos sem prejuízo do seu contexto semântico.  Isso merece ser ressaltado diante de tantas intervenções que já se fizeram, a começar pela decisão de Thomas W. Higginson, de “corrigir a gramática” de Dickinson em publicações póstumas ainda na década de 1890.  Como observou uma vez o poeta português Jorge de Sena, diante da grandeza da “solitária de Amherst”, a fidedignidade de um tradutor, sopesadas as especificidades de cada língua, é o melhor com que ele pode contribuir sem cair na armadilha de tentar decifrar as idiossincrasias do texto ou tomá-las como um laboratório de invenções.

 

Muitas interpretações da crítica também recaem sobre a vida da poeta, que, como sua obra, é cheia de extravagantes acontecimentos mentais no lugar de aventuras concretas.  Os espaços em branco em seus poemas (e em suas cartas) e seu vocabulário de maiúsculas – “Miúdas Fulgências, Ventos”; “Milhões de Eternidades”; “Fossos de Mistério” – são também lidos especularmente em sua biografia de escassas experiências exteriores.  No entanto, sejam quais forem essas interpretações, importa que o leitor tenha acesso, antes de tudo, à fonte de onde as mesmas são deduzidas, ou seja, à palavra desta que, estoica ou rebelde, culturalmente ousada ou excêntrica, de temperamento romântico ou irônico, tem sido capaz de atravessar os séculos – e o “Honor sem honra da Fama” – sem perder seu elo verbal com o mundo.

 

POEMAS

“Eu temo a Fala escassa - / O homem que fala Pouco - / O Falastrão – é oco – O Tagarela – passa - / ...

Mas O que pesa – Enquanto a Turba - / Ao máximo se expande - / Esse Homem – me perturba - / Temo que seja Grande –“

“Não sou Ninguém! Quem é você? / Ninguém – também? / Então somos um par? / Que triste – ser – Alguém! / Que pública – a Fama - / Dizer seu nome – como a Rã - / Para as palmas da Lama!”

“O Ocaso se abre, aéreo - / E alteia nossa vista / Com ameaças de Ametista / E fossos de Mistério.”

“A Luz basta-se a si - / Aos Outros dá-se ela / Nos Vidros da janela / Certas Horas do Dia. / Mas não privilegia / Ninguém – o mesmo Brilho / Ela também revela / No Himalaia o esquilo”.

“Nesta Colmeia tais / Dons de Mel eu suponho / Que a realidade é Sonho / E os Sonhos, Reais –“

 

 

Fonte:  O Estado de S. Paulo/Caderno 2/Mariana Ianelle (Poeta, autora de O Amor e Depois, Treva Alvorada, Tempo de Voltar, Entre outras obras) em 15 de maio de 2016.