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A Guerra: Nas Palavras de Três Psicanalistas
A Guerra: Nas Palavras de Três Psicanalistas

ANTES QUE O MUNDO ACABE

Três psicanalistas escrevem textos em busca não de justificativas, nem de respostas, mas de palavras que ajudam a significar este momento de confronto no Oriente Médio

 

Que gesto ainda seria capaz de salvar a humanidade e acionar alguma esperança em cenários de destruição que toda a guerra coloca em cena?  Que palavra poderia ainda conter a fúria do Deus da carnificina que busca destruir o outro para viver?  Que imagem seria necessária para dissolver o ódio que contamina corações e mentes como uma infecção generalizada?  Estamos todos em luto e feridos profundamente.  Isso afeta e muito, a própria condição de pensar, sentir, imaginar e sonhar.  São milhares de mortes cruéis, cenas quase impossíveis de ver: o horror e o desespero implodindo a vida.  A história pode nos ajudar a entender um pouco esses cenários, mas é sempre insuficiente quando perdemos a condição da empatia e a compaixão de poder nos conectar minimamente com a dor do outro.  O ódio interrompe o pensamento e qualquer chance de futuro.  Sempre foi assim na história da humanidade.  Terrorismo, tortura, racismo, intolerância e violência são motores de destruição, e sabemos também que são instrumentos de poder.  Quando não há escuta não há diálogo, quando não há diálogo não há encontro, quando não há encontro não há vida, quando não há vida não há nada e só nos resta uma contabilidade macabra: número de mortos, de desaparecidos, de sequestrados, de prisioneiros, de refugiados, de prédios destruídos e de armamentos.  E quem contará essa história para o futuro?  Talvez crianças, que escreverão, tempos depois, seus poemas para tentar dar um contorno aos traumas que nunca abandonam a memória.  Lembro sempre de um poema de Hilda Hilst que justamente evoca esta urgência do encontro:

Antes que o mundo acabe,

deita-te e prova

Esse milagre do gosto

Que se fez na minha boca

Enquanto o mundo grita

Belicoso...

E nos cobrimos de beijos

E de flores...

... antes que o mundo acabe.

Antes que acabe em nós

Nosso desejo

 

 

Sei que esse poema é uma utopia dentro da fumaça escura da guerra, mas é neste escombro em que o desejo se aloja que precisamos ir buscar um pouco do que ainda pode salvar.  É esse desejo ferido a nossa única chance de desarmar as máquinas de guerra e abrir caminho para a palavra, que mesmo insuficiente e imprecisa é nosso único recurso de enfrentar o estranho que nos habita e nos aproximar do que não somos quando vemos o outro que não é nosso espelho.  É hora de quebrar espelhos.

 

É muito conhecida a troca de cartas entre Einstein e Freud sobre a guerra.  Einstein escreve a Freud, em julgo de 1932, perguntando se existiria alguma forma de livrar a humanidade de ameaça de guerra.  Freud, dois meses depois, responde em uma longa carta, da qual destaco este pequeno trecho:  "Penso que a principal razão por que nos rebelamos contra a guerra é que não podemos fazer outra coisa.  Somos pacifistas porque somos obrigados a sê-lo, por motivos orgânicos, básicos.  E, sendo assim, temos dificuldade em encontrar argumentos que justifiquem nossa atitude".

 

Esses argumentos podemos encontrar, talvez, na dor das milhares de pessoas que neste momento sofrem com os desastres da guerra, para evocar a série de 82 gravuras de Goya feitas entre 1810 e 1814, os horizontes perdidos das crianças e jovens palestinos e israelenses mortas nestes últimos dias.  A notícia de bebês degolados e com corpos calcinados dentro de suas casas em um kibutz pelo terrorismo do Hamas é uma das faces do horror mais abominável.  O terror explode o coração da palavra.  Nelson Asnis, em edição anterior deste caderno DOC (dias 14 e 15/10), em seu artigo Por Trás dos Ataques, nos esclarece sobre a maquinaria perversa de destruição que os alimenta.  Assim, perdemos todos muitos futuros.  Gaza sob escombros, com um bombardeio sem trégua e chorando tantas mortes da população civil, crianças, mulheres, idosos, famílias feridas profundamente e sem ter para onde se refugiar, e, certamente, muitos deles, sonhando com a paz.  Os sismógrafos da dor de Israel e da Palestina serão sempre insuficientes para dar conta de toda essa destruição.  A guerra será sempre o fracasso dos princípios civilizatórios e a corrosão da palavra, que é o que temos de mais precioso, aquela que pode ser dita e escutada.

 

Se eu fosse responder à pergunta de Einstein, meus argumentos de hoje seriam fracos, insuficientes, talvez irrelevantes, mas é o único que no momento consigo acessar.  Vou beber na fonte de duas poetas, Yussara Asshar e Tat Nitzán, que tentam desenhar com palavras o ar de nossos tempos, pois quando escrevem relançam a linguagem como a única chance de encontro.  Yussra Assahar vive no campo de refugiados de Jabália, em Gaza, e é graduada em língua árabe pela Universidade de Alazhar.  Anoto este fragmento de um de seus poemas que tem o instigante título Para uma Tarde que Parece com Você e foi publicado no livro GAZA - TERRA DE POESIA (Ed. Tabla), organizado por Muhammad Taysir e com tradução de Felipe Benjamin Francisco:

...maduro como a fruta de verão

que descasco e dou a forma

de um país

nas tranças de meu coração.

Veja, sou a tempestade

num passeio insano

pelas nuvens do desejo

e eu

eu sou

um sonho ressurgido que faz

teremer a maldição da distância

como aquela bailarina que

segura o passo

ao final da dança...

 

Tat Nitzán, poeta israelense e militante pela paz que já publicou no Brasil o livro de poemas O PONTO DA TERNURA (Lumme), com tradução de Moacir Amâncio, se dedica a registrar com seus escritos os impasses dessa paz que não chega.  Sublinho este fragmento do poema Coisa Silenciosa que nos mostra, em parte, a função de quebrar espelhos:

...Nada mais silencioso

do que os golpes que se abatem

sobre os outros

não há ameaças mais inofensiva

à nossa paz de espíritos

satisfeitos.

É muda a derrota nos seus olhos,

os seus braços permanecem imóveis...

 

São duas jovens poetas, de Palestina e Israel, que buscam ler o mundo de outra forma.  O futuro parece distante ou mesmo impossível, mas vamos ter que acionar nossas imaginações para que isto possa, algum dia, vir a acontecer.  Como continuar respirando sem essas utopias que acionam espaços em que a vida seja o bem supremo?  Se algum dia pudermos pensar nessa geografia mediada pelas palavras que podem ver para além de suas fronteiras e de seus ódios, talvez possamos ainda ter uma chance antes que o mundo acabe.

Fonte:  Edson Luiz André de Souza/Psicanalista, autor de "Furos no Futuro: Psicanálise e Utopia" (Artes & Ecos, 2022).

 

SOBRE A CRUELDADE

 

Os atos cruéis são definidos como bárbaros e desumanos.  É muito difícil suportar que a crueldade é humana; em geral, ela é definida como desumana.  O processo civilizador levou os pensadores a definirem o homem como Hommo sapiens, entretanto também é Hommo demens, pois a loucura humana, em especial a crueldade, faz parte da história da civilização.  A crueldade aumentou com a produção das armas a ponto de se dizer que não foi o homem que inventou as armas, mas foram as armas que inventaram o homem.

 

Escrever sobre a crueldade não é agradável, ao contrário, mas diante das duas maiores guerras que vive o mundo hoje, a da Ucrânia e a do Oriente Médio, é um tema a enfrentar.  Já em 1929, antes da ascensão do nazismo, Freud definiu assim o ser humano: "O ser humano não tem uma natureza pacata, ávida de amor, que no máximo consegue defender-se quando atacado... O próximo não é, para ele, apenas um possível colaborador e um objeto sexual, mas é também uma tentação, de com ele satisfazer a sua tendência a agressão, de explorar sua força de trabalho sem uma compensação, de apropriar-se de seus bens, de usá-lo sexualmente, de se apropriar de seus bens, de humilhá-lo, de lhe causar dores, de martirizá-lo e de matá-lo".  Sempre que li essa definição torci para que não fosse certa.

 

Se o futuro está ameaçado, isso se deve à crueldade humana.  Vários pensadores se referem ao poder da crueldade.  Um exemplo é Edgar Morin, no autobiográfico MEUS DEMÔNIOS, cujo último capítulo tem o título A Crueldade do Mundo.  A crueldade terrorista do Hamas – assassinou cidadãos de 43 países – é traumática, como o é o fracasso do governo israeli na proteção de sua população, conforme assinalada pelo Haaretz, o principal jornal de Israel.  Traumáticas também são as mortes do povo palestino com os bombardeios de Israel.  A crueldade é humana e precisa ser enfrentada, na luta para não se desesperar, como ensina David Grossman: "Não posso dar-me o luxo de me desesperar".  Recordo que seu filho Uri, em 2006, foi morto na guerra no sul do Líbano.

 

Ao longo do ano, os familiares e amigos de Israel não faltaram às manifestações em defesa da democracia contra o governo de extrema direita.  Há poucos dias conversei com uma psiquiatra brasileira israeli, que trabalhou com sobreviventes do progrom do dia 7 de outubro.  Ela se surpreendeu com a coragem deles para seguir vivendo, apesar dos sofrimentos e das lágrimas pela perda de familiares.

 

Escutar essa amiga foi um banho de dor e de esperança.  Esperança de paz: dois povos, dois Estados.

 

Fonte:  Abrão Slavutzky/Psicanalista, coautor de "Imaginar o Amanhã" (Diadorim, 2021)

 

ENTRE A DOR E A FALTA

 

Ando quieto, ao menos por escrito, em relação aos crimes hediondos perpetrados pelo grupo terrorista Hamas em Israel.  É que minha carne viva e doída está estarrecida diante de um mundo que perdeu a alma novamente.  Sinto que há, na falta da escrita, uma reativação de feridas ainda não cicatrizadas do Holocausto, essa catástrofe desumana que, entre milhões de judeus e não judeus, matou meus bisavós, só porque eram judeus.  Sobre isso, ainda estou, faz tanto tempo, em busca de palavras que não chegam.

 

Tenho lido reações perplexas, "de todos os lados", como quem, numa hora dessas, precisasse estar acompanhado, até mesmo para escrever.  Crimes de tamanha crueldade, entre tantos desdobramentos sórdidos, costumam traumatizar.  E calar.  Em meio à ausência das palavras, "falta" é uma que me ocorre, entre outras corajosas, escritas por quem já conseguiu o que tento até agora.

 

Sinto que falta não justificar atrocidades indizíveis como decorrentes da culpa do Estado de Israel.  Não é.  Também penso que falta bom senso para não se aproveitar de fatos irrepresentáveis, destilando ressentimentos ideológicos, e isso anda sobrando.  Paradoxalmente, também sinto que falta reconhecer que um governo de extrema direita, por mais que seja incapaz de gerar o obscurantismo, pode lidar mal com ele ou mesmo alimentá-lo, com suas ações e não ações, não condizentes com a ética judaica, presente em sua escrita milenar e sua prática solidária.  Há cerca de 4 mil anos o judaísmo está presente como religião banhada por uma cultura rica, aberta, tolerante, que vem produzindo poetas, artistas, filósofos, cientistas e, sobretudo, democratas.  Para tudo, há um espectro, e a perversão pode variar até se tornar incomparável, como entre um governo corrupto ou não empático, que ameaça à democracia, e um grupo terrorista que retoma a barbárie.

 

É o que sinto ainda faltar em tanta escrita necessária e consoladora.  Por outro lado — e que atroz escrever lados no que deveria ser uma só humanidade –, também sinto que falta, por parte de outras manifestações, deixar nítido que ser palestino não é ser Hamas, o que jamais seria compatível com o que estamos tentando chamar de esboço de civilização para as nossas vidas e as nossas mortes.

 

Não tenho a pretensão de saber com exatidão o que falta.  Mas a alma triste sobre a carne doída sente que ainda falta muito.  E sente também a esperança, que não falta, por um mundo com dois Estados convivendo em paz.

 

Fonte: Celso Gutfreind/Psicanalista, autor de "A Nova Infância em Análise (Artmed, 2021)

 

 

Fonte:  Zero Hora/Caderno DOC em 05/11/2023