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Augusto dos Anjos: O Átomo e o Cosmos
Augusto dos Anjos: O Átomo e o Cosmos

AUGUSTO DOS ANJOS:  O ÁTOMO E O COSMOS

 

Augusto dos Anjos (1884 – 1914) nasceu na Paraíba, estudou Direito em Recife e viveu no Rio de Janeiro e em Minas Gerais.  Depois de exercer a profissão de advogado, foi promotor e professor de literatura.

 

Como poeta, produziu textos de grande originalidade.  Considerado  por alguns como poeta simbolista, Augusto dos Anjos é na verdade representante de uma experiência única na literatura universal: a união do Simbolismo com o cientificismo naturalista.  Por isso, dado o caráter sincrético de sua poesia, convém situá-lo entre os pré-modernistas.

 

Os poemas de sua única obra, EU (1912), chocam pela agressividade do vocabulário e pela visão dramaticamente angustiante da matéria, da vida e do cosmos.  Compõe sua linguagem termos até então considerados antipoéticos, como escarro, verme, germe, etc.  Os temas são igualmente inquietantes:  a prostituta, as substâncias químicas que compõem o corpo humano, a decrepitude dos cadáveres, os vermes, o sêmen, etc.

 

Além dessa “camada científica”, há na poesia do autor a dor de ser dos simbolistas, marcada por anseios e angústias existenciais, provável influência do pessimismo do filósofo alemão Arthur Schopenhauser.

  

Para o poeta, não há Deus nem esperança; há apenas a supremacia da ciência.  Quanto ao homem, as substâncias e energias do universo que o geraram, compondo a matéria de que ele é feito – carne, sangue, instinto, células –, tudo fatalmente se arrasta para a podridão e para a decomposição, para o mal e para o nada.

 

Em síntese, a poesia de Augusto dos Anjos é caracterizada pela união de duas concepções de mundo distintas:  de um lado, a objetividade do átomo; de outro, a dor cósmica, que busca descobrir o sentido da existência humana.

 

Observe alguns desses procedimentos neste soneto:

 

Versos íntimos

 

Vês?!  Ninguém assistiu ao formidável

Enterro de tua última quimera.

Somente a ingratidão – esta pantera

Foi tua companheira inseparável!

 

Acostuma-te à lama que te espera!

O Homem, que, nesta terra miserável,

Mora, entre feras, sente inevitável

Necessidade de também ser fera.

 

Toma um fósforo.  Acende teu cigarro!

O beijo, amigo, é a véspera do escarro.

A mão que afaga é a mesma que apedreja.

 

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,

Apedreja essa mão vil que te afaga,

Escarra nessa boca que te beija!

 

(Eu e outros poemas. 30 ed. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1965. P. 146)

  

Observe que, no plano da linguagem, além da novidade do vocabulário até então considerado “baixo” em poesia, como a palavra escarro, o poema também inova no tom coloquial e cotidiano da linguagem, como se observa na 3ª estrofe:  “Toma um fósforo.  Acende teu cigarro!”.  Note ainda o enfoque naturalista dado ao homem em sociedade:  fera entre feras (ideia ligada ao determinismo, à seleção natural).  A carga pessimista, por outro lado, não foge aos valores simbolistas.

 

Com sua poesia antilírica, Augusto dos Anjos deu início à discussão sobre o conceito de “boa poesia”, preparando o terreno para a grande renovação modernista iniciada na segunda década do século XX.

 

Mais tarde, essa tradição do antilirismo ou da antipoesia foi retomada. João Cabral de Melo Neto, por exemplo, é um dos poetas que buscaram por fim ao eu lírico e à poesia dita “profunda”.  Na MPB, além dos Titãs, João Bosco e Aldir Blanc também exploram aspectos grotescos da realidade, como o submundo urbano do Rio de Janeiro, com suas carências e decrepitude moral.  Aldir Blanc chega, inclusive, a parodiar o poema “Vandalismo”, de Augusto dos Anjos, na canção “Bandalhismo”, que integra o disco BANDALHISMO, de 1980.

 

Psicologia de um vencido

 

Eu, filho do carbono e do amoníaco,

Monstro de escuridão e rutilância,

Sofro, desde a epigênesis da infância,

A influência má dos signos do zodíaco.

 

Profundissimamente hipocondríaco,

Este ambiente me causa repugnância...

Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia

Que se escapa da boca de um cardíaco.

 

Já o verme – este operário das ruínas –

Que o sangue podre das carnificinas

Come, e à vida em geral declara guerra,

 

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,

E há-de deixar-me apenas os cabelos,

Na frialdade inorgânica da terra!

 

(Augusto dos Anjos. EU e outros poemas, cit., p.60)

 

A linguagem do poema surpreende e modifica uma tradição poética brasileira, em grande parte construída com base em sentimentalismo, delicadezas, sonhos e fantasias.

  

A POESIA DE AUGUSTO DOS ANJOS VIRA ESPETÁCULO DE DANÇA

Sandro Borelli, um dos principais bailarinos brasileiros, transpôs a poesia de Augusto dos Anjos para a linguagem da dança em SENHOR DOS ANJOS, espetáculo apresentado em 2002.

 

Diz Borelli sobre seu trabalho:  “Augusto dos Anjos foi um poeta maldito, e sua obra toca questões filosóficas e espirituais.  Para levar sua essência ao palco, abandonei um pouco a teatralidade de meus espetáculos anteriores para me concentrar no corpo.  Como não estamos lidando com personagens, o desafio é transmitir o universo do poeta por gestos e expressividade corporal.”  (Folha de S.Paulo, 17/2/2001)

  

AUGUSTO DOS ANJOS NA VOZ DE OTHON BASTOS

O ator Othon Bastos é um grande admirador da poesia de Augusto dos Anjos.  No CD AUGUSTO DOS ANJOS por OTHON BASTOS (coleção Poesia Falada, nº 9), o ator declama 36 poemas do poeta maldito.  Na capa do CD, Bastos conta:

 

“Li o EU na adolescência e foi como se levasse um soco na cara [...].  Quis ler mais esse poeta diferente dos clássicos, dos românticos, dos parnasianos, dos simbolistas, de todos os poetas que eu conhecia.  A leitura do EU foi para mim uma aventura milionária.  Enriqueceu minha noção de poesia.

  

AUGUSTO DOS ANJOS VIRA PERSONAGEM

A escritora Ana Miranda já romanceou a vida dos poetas Gregório de Matos e Gonçalves Dias.  Em A ÚLTIMA QUIMERA (Companhia das Letras) quem vira personagem da autora é Augusto dos Anjos.

 

Narrada em 1ª pessoa por um suposto amigo e conterrâneo de Augusto, a obra traça um rico quadro da vida política e cultural brasileira do início do século XX, reunindo personalidades de prestígio de nossa literatura, como – além do próprio Augusto – Olavo Bilac, Raul Pompéia e Alberto de Oliveira e inclui fatos marcantes da época, como a proclamação da República, a Revolta da Chibata e a modernização do Rio de Janeiro.

 

ARNALDO ANTUNES CANTA AUGUSTO DOS ANJOS

O poeta e compositor Arnaldo Antunes, é um admirador da poesia de Augusto dos Anjos.  Tanto que chegou a musicar BUDISMO MODERNO, um poema com imagens inusitadas, que prenunciam o absurdo surrealista.  Se possível, ouça a canção, que se encontra no disco NINGUÉM (BMG) lançado em 1995.

 

Budismo Moderno

 

Tome, Dr., esta tesoura, e... corte

Minha singularíssima pessoa.

Que importa a mim que a bicharia roa

Todo o meu coração, depois da morte?!

 

Ah!  Um urubu pousou na minha sorte!

Também, das diatomáceas da lagoa

A criptógama cápsula se esbroa

Ao contacto de bronca destra forte!

 

Dissolva-se, portanto, minha vida

Igualmente a uma célula caída

Na aberração de um óvulo infecundo;

 

Mas o agregado abstrato das saudades

Fique batendo nas perpétuas grades

Do último verso que eu fizer no mundo!

 

(EU e outros poemas, cit., p.84)

 

Fonte:  Livro Português/Linguagens/William Roberto Cereja/Thereza Cochar Magalhães/MEC