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Black Hammer e Gideon Falls: de Jeff Lemire
Black Hammer e Gideon Falls: de Jeff Lemire

LEMIRE, A MÁQUINA DE PRODUZIR SENTIMENTO

 

BLACK HAMMER e GIDEON FALLS, dois gibis recentes do quadrinista canadense, ganham novos volumes no Brasil

 

Livro: BLACK HAMMER – A ERA DA DESTRUIÇÃO – PARTE 1 – Intrínseca, 136 páginas, Tradução de Fernando Scheibe;

 

Livro:  GIDEON FALLS – PECADOS ORIGINAIS – Mino, 136 páginas, Tradução de Dandara Patankof.

 

Uma piada recorrente entre leitores de quadrinhos sugere que Jeff Lemire dispõe de um exército secreto de assistentes, dada a frequência com a qual anuncia projetos. Parece que a cada quinzena sabemos de um novo gibi do canadense, que, aos 43 anos, ostenta carreira de veterano. Seus títulos chegam ao Brasil aos borbotões: desde maio de 2017, foram 52, contando livros, encadernados, republicações e histórias nas revistas mensais. Ou seja: um a cada 15 dias!

 

O mais notável é que essa produtividade se faz acompanhar por versatilidade: Lemire trafega entre os super-heróis da DC e da Marvel (como Arqueiro Verde, Cavaleiro da Lua e Velho Logan) e as obras autorais (CONDADO DE ESSEX, NADA A PERDER). Tem reconhecimento da crítica (ganhou um prêmio Eisner e foi indicado a outros dois) e do público, geralmente arrebatado pela carga dramática de HQs como Sweet Tooth e O Soldador Subaquático e de personagens que precisam lidar com eventos traumáticos, desafios emocionais e tragédias apocalípticas. E é um autor completo: além de escrever, desenha muitos de seus gibis com seu traço “feio”, mas perfeito para traduzir um íntimo fragilizado.

 

Depois de seus quadrinhos mais recentes e consistentes acabam de ter novos volumes lançados no Brasil. A Intrínseca publicou ERA DA DESTRUIÇÃO – PARTE 1, o terceiro BLACK HAMMER, série em parceria com o artista Dean Ormston e o colorista Dave Stewart. Pela editora Mino, saiu PECADOS ORIGINAIS, o segundo livro de GIDEON FALLS, com arte do italiano Andrea Sorrentino e cores de Stewart.

  

BLACK HAMMER retrata um grupo de super-heróis exilados há 10 anos em uma cidadezinha rural, onde devem esconder seus superpoderes e se sujeitar ao tédio. Lemire recicla perfis do gênero. Abraham Slam, por exemplo, é o herói urbano que depositava seu capital nos músculos – agora um tiozão decadente, quer outro tipo de corpo a corpo: o dele com a garçonete Tammy. O marciano Barbalien usa na Terra o nome Mark Markzz (citando J’onn J’onnzz, o Caçador de Marte da DC) e enfrentou o preconceito por ser um alien em um mundo heteronormativo. Inspirada no Shazam, a Menina de Ouro virou uma velha rabugenta aprisionada em sua forma infantil.

  

GIDEON FALLS é o nome da cidade coabitada por dois personagens cujas histórias se cruzam sem que eles se conheçam. Aqui também, Lemire trabalha clichês. Temos um protagonista com problemas mentais que não sabe se estás fazendo o certo ou se está sendo controlado pela doença – o jovem Norton nutre uma obsessão por um lendário Celeiro Negro. Na outra ponta da trama, está o padre que perdeu a fé e vai parar em uma pequena cidade. Fred chega carregando problemas com alcoolismo e o celibato e acaba envolvido em um caso de assassinato.

 

Os dois volumes trazem algumas respostas, mas provocam novas perguntas. Em BLACK HAMMER, finalmente descobrimos o que houve com os heróis no combate ao Antideus, uma espécie de Thanos. Mas o epílogo abre um infinito de possibilidades. Em GIDEON FALLS, finalmente as trajetórias de Norton e Fre3d se conectam, mas o epílogo reembaralha tudo.

 

ECOS DAS SÉRIES LOST E TRUE DETECTIVE

 

Há mais em comum entre as séries. Em ambas, Lemire desenvolve temas favoritos: a paternidade turva e seu duradouro impacto emocional sobre os filhos; a paisagem inóspita e o bucolismo opressor; o questionamento sobre o que é real e o que é ilusão, delírio ou paranoia; os personagens que empreendem uma arqueologia – concreta ou psicológica – para desvendas enigmas e, quem sabe, alcançar a redenção; os roteiros que conjugam estrutura engenhosa, cheia de idas e vindas no tempo, com algum didatismo sentimental.

 

A diferença é o tom. Em BLACK HAMMER, Lemire permite-se empregar o humor, a começar pelo desenho mais caricatural de Ormston. Chega a parodiar dois clássicos da DC: Sandman, de Neil Gaiman, e Starman, de James Robinson.

 

Em GIDEON FALLS, a coisa é bem mais séria, a começar pela arte claustrofóbica e soturna de Sorrentino e Stewart, com diagramação nada convencional – cada virada de página reserva uma surpresa, com fragmentações, espelhamentos, espirais. Lemire permite-se sair da zona de conforto: seu leitor costuma sofrer por saber o que está acontecendo; aqui, sofre por ignorância. A exemplo de seriados como Lost e True Detective, a HQ estimula a pensar e a juntar pontas. Como as séries, agrega: há um senso de comunidade entre os fãs, que passam a compartilhar dúvidas.

 

Tanto faz quais são as minhas, o objetivo deste texto não é jogar spoilers aos incautos, mas convidá-los a visitar GIDEON FALLS e abraçar seus mistérios. Algumas cenas são confusas, as expressões não são tão nítidas, o vermelho aturde, mas tudo parece atender a um propósito: bagunçar nossas percepções, aguçar nosso ouvido para os diálogos e as entrelinhas, fazer, como os bons filmes de terror fazem, com que a gente se sinta tateando no escuro. GIDEON FALLS é um gibi sensorial.

 

FONTE: Zero Hora/Segundo Caderno/Ticiano Osório (ticiano.osorio@zerohora.com.br) em 04/06/19