LITERATURA E SUBVERSÃO
É recente mas premiada a carreira literária da portuguesa Ana Margarida de Carvalho. Na semana passada, a autora conquistou, com PEQUENOS DELÍRIOS DOMÉSTICOS, o Grande Prêmio de Conto da Associação Portuguesa de Escritores. A mesma entidade já havia lhe premiado outras duas vezes ao longo da década: sua estreia, QUE IMPORTA A FÚRIA DO MAR (2013) venceu como romance, mesmo feito obtido por NÃO SE PODE MORAR NOS OLHOS DE UM GATO (2016), este editado pela Dublinense no Brasil. A autora chega com o último título na Feira do Livro de Porto Alegre às 18h deste domingo (11/11), na Biblioteca do Clube do Comércio. Em seguida, às 19h, ela autografa a obra na Praça da Alfândega.
Podemos dizer que NÃO SE PODE MORAR NOS OLHOS DE UM GATO é um livro sobre empatia?
Sim, é um livro sobre a alteridade, sobre a forma como percebemos o outro, sobre o olhar, também. O nosso olhar tem tendência para ver o outro como se ele só estivesse do lado de fora, sem lado de dentro. Eu gosto de pensar neste romance como um livro sobre a pele. A pele – por uma questão de melanina, claro, mas não só. Porque as personagens, para sobreviverem nessa praia intermitente, que desaparece na maré cheia, terão de se ir despindo de todas as peles que envergaram ao longo das suas vidas. As peles sociais, intelectuais, religiosas, de gênero etc. Elas vão-se descascando progressivamente ao longo do livro, literal e metaforicamente, até ficarem nuas.
Pela escolha das palavras e pela construção da sua narrativa, você não subestima o leitor. É isso mesmo?
Eu julgo que nem nos jornais o público deve ser subestimado, infantilizado. Essa lógica de que o leitor não percebe, e, então, temos de usar palavras mais acessíveis e frases menos rebuscadas, ao contrário do que pode parecer, é uma postura de superioridade e de arrogância. Quanto à literatura, eu faço parte do clube que acredita não que uma imagem vale mil palavras, mas o contrário: uma palavra pode ter uma valência de mil imagens. Além disso, na literatura, as palavras não são apenas material com que se trabalha, elas são a matéria. Por isso, às vezes busco muito pela palavra certa e torna-se até um pouco desesperante. Temos, diz-se à disposição 400 mil vocábulos na língua portuguesa, que é uma língua incrivelmente plástica e expressiva. Interessante é ir à procura daquele que se aproxima mais daquilo que queremos dizer.
O que lhe levou a situar a narrativa no Brasil?
Pois, acredito que possa parecer abusivo. Até é legítimo pensar: quem é esta escritora portuguesa que vem colocar as suas histórias num continente que não lhe pertence, num século que também não é o seu, num hemisfério distante, numa geografia que não conhece? Na verdade, só metade do romance se passa no Brasil, a outra metade passa-se em Portugal. Tal como no meu anterior romance: apenas metade da situação em Cabo Verde. Dava-me jeito que a história decorresse aí, pois das coisas mais tenebrosas que aconteceram no percurso da humanidade foi a escravatura, e ela foi abolida muito tardiamente no Brasil. O século XIX é já ali, no dobrar do cotovelo do tempo. E interessava-me explorar esse conceito que levou homens a julgarem-se superiores a outros, de forma a desumanizarem outros, despersonalizarem-nos, tornarem-nos objetos, alvos da posse, do comércio, da tortura, da crueldade, do sadismo, da privação da liberdade.
Em certa descrição, ainda no início do romance, você cita um “orgulho em falar mal português”. Ficção à parte, nossa língua é desvalorizada por nós mesmos
Certamente essa afirmação foi feita num contexto que a justificava. Porque o orgulho deve ser falar sempre melhor. E aprender, aprender sempre. Geralmente, o que acontece é que as pessoas têm tendência a pensar que um escritor é aquele que escreve bem, no sentido de que domina as regras da gramática, da sintaxe, da ortografia e as técnicas de progressão da narrativa. Mas isso é uma visão muito redutora de “escrever bem”. Escrever bem, literariamente, é subverter a gramática, virar as frases do avesso, encontrar novos processos. E, se for possível, inventar até uma nova linguagem. Mas isso só os gênios conseguem.
O quão difícil é chegar aos leitores portugueses?
Acredito que os leitores até estão interessados. Existe é uma desvalorização política e midiática, não só da literatura, como de outras artes. Basta dizer que no nosso orçamento de Estado nem atingimos o 1% de verbas destinadas à cultura. E, por vezes, não é o caso deste, temos governos que entendem que nem é necessário um ministro da Cultura, basta um secretário de Estado. Portanto, muitas vezes aqueles que poderiam ser leitores pegam os ares dos tempos e perdem, lamentavelmente, a melhor parte da vida, e aquilo que melhor e mais belo que o homem é capaz de produzir passa-lhes ao lado.
Fonte: Jornal do Comércio/Panorama/Ricardo Gruner em 08/11/2018.