E A NEVE ENGOLIU O MUNDO
Doutor em literaturas de língua portuguesa aborda o conto “Entre a Neve”, do português Eça de Queirós.
Esqueça a imagem idílica da neve, bonecos com nariz de cenoura montados em frente a casinhas cobertas pelo branco, chaminé a expirar fumaça numa vida aquecidamente feliz. Esqueça igualmente a junção da neve com personagens de nomes russos em capotes felpudos e tragos de vodca. A neve também é elemento de cena na literatura portuguesa e, assim como em icônicos textos russos, pode escapar da estereotipada imagem festiva de cartão-postal e avançar para a de um cenário caótico e de sofrimento absoluto.
Falamos do frio com todo o seu vigor, do gélido como matéria narrativa; Eça de Queirós, famoso pela minúcia de suas descrições, tão ao gosto da escola realista, é conhecido por romances como “Os Maias”, “O crime do Padre Amaro”, “O Primo Basílio”, entre outros. Profícuo artesão das letras, escreveu muito e em distintos gêneros, como o conto. Em “Entre a Neve” – texto originalmente publicado em jornal na década de 1860, e postumamente compilado e apresentado em “Prosas Bárbaras”, de 1903 –, o autor pinta um quadro no qual a natureza engole o homem.
As diminutas figuras humanas desenhadas em “Entre a Neve” podem lembrar aqueles personagens sofridos de textos dos anos 1930 na literatura brasileira. Contudo, a fome e a esterilidade provocadas pela seca, aqui são consequências do frio extremo. Não falamos de um frio aconchegante, que sopra num lá fora longínquo e canta com ventos poéticos. Falamos do frio que frustra os dias e abrevia as expectativas. Não nominados, os personagens são apresentados com toda a sua miserabilidade – um lenhador e sua pequena família: “o triste tinha filhos pequenos, que à noite quando rezavam, todos arrepiados e magros, em redor da mãe, sufocavam no choro da fome”. O fio do enredo é minúsculo – um lenhador sai de casa em busca de alimento para a família –, porém a ação do trabalhador sofre a interferência de uma natureza hostil; esta sim, a grande protagonista do conto.
Eça não poupa adjetivos para os elementos que fazem daquele cenário o pior lugar para se estar: “ásperos ventos”, “neve silenciosa”, “orvalhos, estéreis, manhã lacrimosa’, natureza inimiga’. Tão logo o lenhador sai de seu casebre, magro e faminto, encontra-se frente a um ambiente gigantesco e assustador, de ventos possantes e frio avassalador, de ‘estranhas barbaridades’, um espaço onde os pássaros não cantam, as árvores não frutificam e a neve não cessa de cair.
A jornada deste homem é permeada por pensamentos que não lhe pertencem. O lenhador imagina-se em outras vidas, menos árduas: no sul, de onde veio e onde o frio não esmaga; em frente à lareira, como um “abastado dos campos”. Ao mesmo tempo, questiona a figura divina, já que “o bom Deus lá em cima parece que está tão bem agasalhado ao calor dos seus paraísos e das suas estrelas que não se lembra da pobre gente dos campos e dos montes que se arrepia de frio”. Desesperançado e sem protetores, ainda assim, prossegue. Prossegue “pálido como os choupos, roxo, desconsolado”, porque precisa alimentar os famintos que tem em casa.
Entretanto, engana-se o leitor ao romantizar e antever uma história de luta e superação na batalha deste pai honrado. “Entre a Neve” não é um texto edificante, e mesmo que saibamos que o nível de padecimento da família só tende a aumentar, na hipótese da falência do lenhador, há uma série de indícios no conto que apontam para um final terrível. Um desses sinais apresenta-se visualmente muito expressivo – a constante presença de corvos, que riscam a brancura em voos negros: “às vezes um corvo passando silencioso e noturno vinha bater o ar em redor dele com a selvagem palpitação de asas”.
Como se os corvos pressentissem aquele cadáver adiado, rondam o homem que nem bem consegue caminhar, “pesado, molhado e todo cheio de coisas dolorosas e mórbidas”. Ainda assim luta o trabalhador, solitário e quixotesco a gritar ‘covardes’ para as árvores. O lenhador tem um machado nas mãos, mas é descrito quase como uma patética e minúscula figura frente à imensidão de um bosque gelado: “E o lenhador, com o peito erguido, os cabelos desmantelados, vermelho, trespassado de chuvas, feroz, com o machado erguido nas mãos, com justos e trágicos encarniçamentos, lutava contra os troncos, contra os ramos, contra a inchação das raízes, contra as duras cortiças e os filamentos tenazes”.
Ao desafiar o impossível, não há aqui espaço para a já cantada bravura lusitana e seus feitos gloriosos. O lenhador vai perder esta batalha, e também pressente a derrota quando, extenuado, cai. Antevê a esposa a esperá-lo em vão ao pé da porta, nervosa. Os corvos outra vez bicam-lhe o corpo duro. O homem chora, mas tal qual um valente cavaleiro português, tenta levantar-se outra vez, e outra vez cai.
Caído, observa os troncos podres, úmidos e sem vida desta natureza do frio. O lenhador também vê-se apodrecer ali, será parte de uma mesma matéria, gelada e inerte. A neve não cessa. O personagem avalia o espaço tomado pelo branco, e sabe estar inexoravelmente só; “Estava só. Só. Nem pastores, nem vaqueiros, nem caminheiros perdidos”. Deitado na neve, olhos arregalados para o céu, testemunha pelos últimos minutos aquela natureza. Olha, repara, escuta aquela vida sem explicação.
As últimas linhas do conto de Eça são de uma terrível poesia. A neve cai, não para de cair, e assim o personagem, como se dono do próprio destino, escolhe a inevitável morte: “A neve caía e já lhe cobria as pernas hirtas, Ele então, vendo a floresta que o ensopava de água, o chão que lhe coalhava a vida, o vento que o transia, a neve que o enterrava, os corvos que vinham comê-lo, todas as hostilidades selvagens das coisas, encheu-se de cóleras, e, silencioso, feroz, com os olhos luzentes na noite, deitou rijamente a cabeça sobre o feixe e pôs-se a morrer”.
Em simbiose com aquela natureza, é todo ele tomado pelo branco, reforçado no paralelismo de Queirós: “A neve caia. Os corvos, assustados pelo vento que viera, pairavam sobre os últimos ramos. A neve caía. E os braços do lenhador já estavam cobertos, e todo o peito. Os corvos fugiam: e todo o bando aparecia como uma sombra indecisa e pesada. A neve caía”.
A neve caía e segue a cair, e tapa a boca do homem, a sua testa, os seus cabelos. O homem desaparece, o cenário volta à monotonia, sem interrupções visuais. Sem invasores. O lenhador de Eça, soterrado pela neve, é exemplarmente desenhado no esmagamento do humano que se revela tão infértil quanto o sonho que acalanta em tempos de frio.
“Só ficou a neve”, branca, soberana e silenciosa.
Fonte: Correio do Povo/CS/Paulo Ricardo Kralik Angelini (Doutor em literaturas de língua portuguesa, é professor da faculdade de Letras da PUCRS e atualmente está em estágio de pós-doutorado na Universidade de Lisboa, com bolsa CAPES) em 27/8/2016.