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Friedrich Nietzsche
Friedrich Nietzsche

CRÍTICA E ULTRAPASSAMENTO DA MODERNIDADE

FRIEDRICH NIETZSCHE

 

Embora seja dos mais recentes entre os grandes, Nietzsche se tornou em pouco tempo pensador relativamente bem conhecido por parte do público melhor educado e, às vezes, até além deste.  Haveria que fazer uma pesquisa detalhada para prova-lo, mas talvez seja ele o filósofo que, ano após ano, mais vende livros e mais tem seus textos e tratados acessados via internet.  Esta adoção, à primeira vista, causa estranheza, visto que, nem tanto sua pessoa, em geral discreta e gentil, mas suas ideias estão entre as mais chocantes que podem ouvir de um pensador nossos entulhados ouvidos modernos.

 

Sabe-se que ele sucumbiu na admiração encantada para com um ou outro, como foi o caso, durante algum tempo, com o músico Richard Wagner e, até os últimos dias de relativa lucidez, com o historiador Jacob Burckhardt.  Possuía-lhe, no entanto, um sentimento de absoluta singularidade e diferença, uma espécie de egocentrismo divino ou radical que o separava dos homens e de seu próprio tempo.

 

Nietzsche foi sempre difícil para si mesmo, tendo explodido em revolta, quando entendeu ter visto os contornos definitivos de nossa época.  Desta rebelião surgiu uma mensagem ao mesmo tempo genial e patética, absolutamente singular, cuja pregação, dirigida apenas a supostos espíritos livres, se distinguiu de todas as outras que a filosofia já fez, ao especular sobre nossas chances de darmos um salto na história e nos entregarmos a um futuro pós-humano.

 

Da democracia que estava vendo avançar, ele abominava visceralmente quase todos os aspectos, a começar pelos políticos.  Tanto o liberalismo quanto o socialismo lhe eram detestáveis, por negarem o absolutismo do poder e suas diferenças.  Neles, via as duas faces de uma mesma moeda podre, em que estavam estampados os signos decadentes da igualdade e da liberdade para todos.  As monarquias e estamentos senhoriais de sua época, contudo, também não lhe inspiravam respeito, contaminadas que estariam por uma atitude burguesa e, portanto, plebeia, a qual ele opunha o aristocratismo bárbaro de uma idade heroica que só existiu em sua imaginação.

 

Nietzsche julgava-se um aristocrata do espírito em um sentido radicalmente antimoderno que, para constrangimento de boa parte de seus muitos admiradores, não pode deixar de ser mencionado, quando não se quer dar das ideias um retrato idealizado.  Em seus escritos, sempre foi regra fantasiar a respeito do restabelecimento de uma elite soberana e audaz, formada por tiranos talentosos e originais, de quem ele esperava uma redenção artística da violência inaudita e feiura insuportável que, em seu ver, definiam a existência cotidiana.

  

Apaixonado pela força plástica e criadora que, para ele, a arte e a beleza encarnariam de modo supremo, o pensador especulava com a imposição de uma nova escravatura, se fosse para devolver ao mundo os feitos e as obras geniais de um tempo em que não teria havido temor em arriscar a própria vida lutando contra alguém do mesmo status, sempre que era para um e outro descobrirem seu valor e revelarem o jogo de forças e o destino trágico dos quais, para ele, o mundo depende.

 

Decerto a escrita nietzschiana comporta toa a espécie de contorcionismo semântico e é possível reconstruir seus argumentos em praticamente todas as direções que se deseje.  A exploração desta possibilidade é uma via que suas próprias ideias ajudaram a moldar, ao defenderem que a verdade é apenas uma entre outras formas de ficção.  A Nietzsche  horrorizava o ecumenismo da religião cristã e suas tendências niveladoras, em especial as que mais tarde importariam em favor da igualdade da mulher, por esconderem o ressentimento dos fracos, feios e infelizes contra os indivíduos livres e moralmente superiores.  A razão maior, porém, estava no fato de terem elas aberto caminho para um tempo em que somos todos influídos por um espírito de rebanho apegado aos prazeres baratos que fornece uma economia de mercado comandada por especialistas sem grandeza e que, bloqueando as oportunidades para superarmos nossa mediocridade, nos converte em pequenos filisteus.

 

Walter Benjamin escreveu pouco tempo antes de se suicidar que a história é sempre a história contada pelos vencedores.  Nietzsche provavelmente lhe endossaria a tese, se a tivesse conhecido.  Porém, enquanto para aquele primeiro é aos poderosos que a vitória pertence, para ele foram os fracos, ao se unirem, os que saíram ganhadores do seu jogo.  A comédia da história é o declínio e virtual supressão da tragédia, a condenação moral do indivíduo soberano e criador, o triunfo de uma vontade de poder massificada e estéril por toda a extensão do planeta, com o amparo do dinheiro e da máquina.

 

Contrariamente a tantos que lhe seguem sem crítica, por encontrarem em suas palavras a resposta sedutora que esperam os que vivem neste contexto sem entender bem as raízes de seu próprio mal-estar,  era enorme o pesar que lhe acusava uma época como a nossa, em que uma paixão se impôs a todas as outras, a ganância banal se apoderou da maioria, e o dinheiro fez apodrecer em nosso coração a procura vibrante e gratuita pela excelência individual e a grandiosidade humana que, para ele, justificaria a separação de nossa espécie do eterno retorno sem sentido da vida.

 

“A vida é uma nascente de prazer – mas onde também bebe a canalha, as fontes estão todas envenenadas”, escreveu o filósofo em “Assim Falou Zaratustra”.  Fez bem a sorte privando Nietzsche da glória que talvez ele errônea e secretamente almejava, ao poupar-lhe em vida a celebração que, após sua morte, não para de lhe prestar uma massa de admiradores e discípulos que, tivesse conhecido, ele provavelmente enxotaria para bem longe, em resistindo à pressão e não se entregando à má consciência, na qual ele viu uma das fontes de nossa infelicidade.

 

Fonte:  Correio do Povo/caderno de Sábado/Francisco Rüdiger (Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da PUCRS e do Departamento de Filosofia da UFRGS.  Acaba de publicar “O Mito da Agulha Hipodérmica e a Era da propaganda” -Sulina, 2015).  Em 15/08/2015