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Carl Gustave Jung
Carl Gustave Jung

PSICÓLOGO DA PÓS-MODERNIDADE

CARL GUSTAVE JUNG 

 

Se Freud é representativo da modernidade, especialmente por sua decifração racional do inconsciente e por seu apego ao princípio do individualismo, podemos dizer que Carl Gustave Jung tem maior sintonia com a pós-modernidade.  Isso em função de seu conceito de inconsciente coletivo, mas também pela sua determinação em  identificar os grandes arquétipos, o que, na esteira de Gilbert Durante, os sociólogos do imaginário chamam de “estruturas antropológicas do imaginário”.  Mas não é somente por causa da noção de inconsciente coletivo que Jung está em sintonia com a nossa época.  É também pela importância que dá ao imaginário e à intuição em relação ao pensamento racionalista.

 

Reabilitação de uma abordagem sensível do real.

Jung não é, como se disse com frequência, um irracionalista, nem mesmo um crítico da racionalidade.  Quando fala das quatro funções (pensamento, sentimento, sensação e intuição), presentes em proporções diferentes em cada indivíduo, uma função maior, uma função menor, ele desenvolve uma concepção mais rica da racionalidade:  não apenas a pura lógica racionalista do pensamento, nem a visão mais subjetiva da intuição, não só a sensação pura, mas também o distanciamento e a avaliação dos sentimentos.  Vejo aí o que eu chamo de “razão sensível”, ou seja, uma apreensão rigorosa do real, mas recorrendo também à intuição, aos sentimentos e à sensações.

  

Pensamento ‘progressivo’.

Podemos dizer que Freud tem uma concepção moderna do tempo tanto do ponto de vista individual quanto da evolução das sociedades.  Do ponto de vista individual, a criança, como miniatura do adulto, deve ser educada, passando por diferentes estágios de desenvolvimento, cada um sendo uma superação do anterior.  Mesmo a sexualidade é considerada por ele a partir de um eixo progressista:  sexualidade infantil, adulta e, por fim, de certa maneira, sublimação como superação da própria sexualidade.  Do ponto de vista social, Freud pensa que as sociedades evoluem da tribo primitiva e do pai para a sociedade policiada, com a civilização cumprindo o papel de “curialização” (noção de Norbert Elias) dos costumes primitivos.  Jung, ao contrário, encontrou nas sociedades ditas primitivas inúmeros comportamentos sociais existentes ainda hoje entre nós e não considera que o homem moderno pensa melhor que o primitivo.  Nesse sentido, está mais próximo de Lévi-Strauss.  Os textos de Jung escritos depois dos seus contatos com tribos indígenas, ou a partir do Livro dos Mortos tibetano, revelam uma antropologia muito atual e bastante distanciada do sentimento de superioridade das sociedades ocidentais, dominantes na sua época, em relação às culturas chamadas de primitivas.

 

Do pequeno si ao grande Si.

A concepção de sociedade desenvolvida por Jung atribui grande valor à imersão no coletivo, no que eu chamo de tribo.  Quando Jung fala de individuação, refere-se a uma integração do inconsciente coletivo na consciência individual, do acesso de cada indivíduo a uma integralidade do ser pela descoberta, sob a forma de iniciação, do inconsciente coletivo.  Isso remete a algo característico da pós-modernidade tanto na Europa quanto na América do Sul:  o eu individual cede lugar ao Nós da comunidade.  “Eu é um outro”, dizia Jean-Arthur Rimbaud.  É esse outro que me define, diz o homem pós-moderno, o outro da tribo, das outras tribos.

  

Da mesma forma, Jung mostra ter uma concepção muito avançada da loucura.  Em vez de ver uma doença a ser curada e pessoas “anormais”, ele se dedicou a decifrar a produção psicótica nas suas correspondências com a produção mitológica.  Nesse sentido, o doente é, de algum modo, o porta-voz do inconsciente coletivo (ao preço de um sofrimento que não esconde).  Mais uma vez o processo de individualização deve permitir não apenas eliminar essa produção, mas incorporá-la ou, em certo sentido, domesticá-la.  Podemos ver em Jung algumas intuições próximas às de Michel Foucault quando este denuncia a vontade moderna de querer silenciar os loucos.

 

Por que Jung custou a ser reconhecido?

Ao contrário do que ocorreu na Suíça, na Itália, na Alemanha e também no Brasil ou nos estados Unidos, países em que o pensamento e a prática junguiana foram reconhecidos bem cedo, Jung, na França, sempre teve má reputação.  Ele foi chamado de antissemita e até de nazista, apodo que permite julgar um autor sem o ter lido.  O mesmo aconteceu com Martin Heidegger.  Sem entrar muito nessa polêmica, digamos que em relação a Jung é totalmente falso.  No começo dos anos 1930, ele chegou a pensar que o imaginário sobre o qual se assentava o nazismo em ascensão permitiria aos alemães reatar com uma sensibilidade mitológica ausente na modernidade, tendo avaliado mal o que estava politicamente em jogo na Alemanha.  Publicou numa revista de psicanálise um artigo no qual falava de imaginário europeu.  Mas nada no seu percurso permite acusa-lo de antissemitismo ou de ter apoiado os nazistas.

 

A pedido de Freud, ele assumiu a presidência da Associação Internacional de Psicanálise e colocou no seu estatuto uma cláusula que permitiu a adesão individual dos psicanalistas alemães.  Graças a isso, os judeus recusados pela entidade nacional puderam conservar a vinculação com a entidade internacional.  Muitos dos seus colaboradores e discípulos eram judeus, entre os quais Roland Cahen, seu tradutor e introdutor na França, que ele acolheu na Suíça durante a guerra.  Basta de querelas históricas.  A culpa pela difícil aceitação de Jung durante tanto tempo, só agora começando a cessar, pode ter a ver com o conteúdo do seu pensamento.  O estilo de Jung é bastante difícil de ser enfrentado, especialmente pelas cabeças amamentadas pelo cartesianismo:  “O bem pensado é claramente enunciado”.  Nada disso.  Os exemplos de Heidegger, Jung, Deleuze e Foucault estão aí para provar justamente que nem sempre é assim.  O pensamento inovador, criativo, que expressa uma visão global, não flui adequadamente num estilo argumentativo e explicativo.

 

Jung desenvolve uma psicologia das profundezas próxima da sociologia compreensiva de Max Weber e de Simmel.  Um pensamento que não reduz a realidade a uma cadeia de causas e consequências ou a um determinismo materialista, mas que se emprega em dar conta do Real, a realidade mais rica do sonho, do imaginário e do mito, na sua complexidade, termos caros a Edgar Morin.  Talvez por ter questionado a pureza do pensamento racionalista que fez a grandeza da modernidade, Jung não tenha sido reconhecido como merecia.  Mas a evolução das nossas sociedades levará a considera-lo, cada vez mais, como um pensador essencial das mentalidades contemporâneas.

 

Fonte:  Correio do Povo/Caderno de Sábado/Michel Maffesoli (Professor emérito da Sorbonne, membro do Instituto Universitário da França) 15/8/2015