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Jean-Paul Sartre, que Influenciou uma Geração
Jean-Paul Sartre, que Influenciou uma Geração

O FILÓSOFO QUE INFLUENCIOU UMA GERAÇÃO

 

Jean-Paul Sartre nasceu em 21 de junho de 1905. O aniversário ainda é comemorado. Um presente está sendo lançado neste ano em Porto Alegre: o livro SARTRE OU O INCONSCIENTE COMO ÁLIBI, de Roberto Graña. O CS adianta o prefácio.

 

Este livro começa com uma confissão: Sartre foi o filósofo que mais decisivamente influenciou a minha formação intelectual nos anos de juventude.

 

Bastaria sua concepção numa época em que tudo se imprime indelevelmente em nosso intelecto, como afirmava o poeta Guerra Junqueiro, para justificar sua gestação e nascimento na magnífica maturidade do autor. Para isso, foi necessário um afastamento, com a subsequente descoberta de outros autores (mas principalmente pelo seu próprio crescimento humano e intelectual), para que, neste livro, Roberto Graña consiga contemplar Jean-Paul Sartre do alto de seu próprio saber.

 

Se tivesse escrito sobre Sartre em sua juvenília, digamos aos 23 anos de idade, quando tomou conhecimento da morte do escritor, lá longe, em Paris, certamente seria uma obra de valor (não descreiam dos jovens: Castro Alves escreveu O NAVIO NEGREIRO com 21 anos). Mas certamente seria ofuscado por tanta luz, arriscando deixar seu livro enclausurado em espaço irrespirável, como os personagens de “Hui Clos”...

 

Eu estava em Paris, em abril de 1980, quando a morte correu seus dedos sobre os olhos míopes de Sartre, como escrevi numa crônica publicada pelo Correio do Povo, e fez também parte do meu livro O PLANETA AZUL, editado um ano depois pela Sulina. Tratei de relê-la, agora, depois de ter me deliciado com este SARTRE OU O INCONSCIENTE COMO ÁLIBI, e fiquei feliz com a nossa coincidência de pontos de vista sobre o essencial do artista/cientista: Da liberdade partimos, insistiu sempre Sartre, destaca Graña nas primeiras páginas deste livro. Sua assinatura não mais encabeçará as listas que acusam a negligência dos poderes públicos, a corrupção, a prepotência dos poderosos sobre as ideias de liberdade e a liberdade de expressá-las, destaquei eu, ainda chorando a sua morte. Ou alguém duvida que a juventude dos anos 1970 formou-se intelectualmente lendo os livros de Sartre? – pergunta Graña antes de afirmar: Seu pensamento popularizou-se de tal forma também porque se expressa, confirma e dissemina por canais os mais diversos, a saber: filosofia, literatura, teatro, crítica literária, atividade jornalística, ação política, emissões radiofônicas e conferências internacionais.

 

Esgrimindo durante todo o livro com pensadores que se abeberaram em Sartre e o quiseram colocar numa estante empoeirada, Graña utiliza os raciocínios mais sofisticados, mas também expressões populares capazes de aproximá-lo de qualquer leitor:  Em 1968 Sartre estava longe de ser velho para um pensador; ele era um filósofo e romancista, não um jogador de tênis ou futebol. Ou quando trata da ambivalência da relação de Sartre com Freud: Tem-se a impressão de que ele o jogava no chão, de tanto em tanto, para voltar, um pouco adiante, a recoloca-lo sobre suas costas. Como o colocou, na minha opinião, no filme FREUD ALÉM DA ALMA, em que foi o meticuloso roteirista, responsável maior pelo sucesso da obra. É mais que provável que Sartre não lhe (a Freud) agradaria como romancista e tampouco como filósofo, afirma Graña. E Sartre, que dizia não ter complexo de Édipo nem Supereu, parece tê-lo amado sempre de forma ambivalente, espécie de fascínio sob protesto.

 

O primeiro capítulo do livro: “Diálogo preliminar com uma filosofia prematuramente envelhecida” termina com uma pergunta que o autor se propõe a responder nos capítulos seguintes: Poderá o pensamento psicanalítico contemporâneo permanecer indiferente a esse autor, quando suas ideias não cessam de trabalhar as maiores inteligências dos grandes centros mundiais de estudos de Humanidade no século XXI?

 

Para começar a responder essa pergunta, Roberto Graña, no segundo capítulo, expõe com clareza meridiana: Os começos sartreanos: imagem, ego, emoção. Encanta-me a expressão que emprega: o nascimento de um escritor, ao registrar a passagem do jovem Sartre pela Escola Normal Superior (1924-1929), o mais cobiçado centro parisiense de qualificação profissional na área humanística. Isso porque muitos se recusam a dar esse título, para mim honorífico, a alguém que exerceu o metier d’écrivain em todo seu amplo espectro de possibilidades, acreditando acima de tudo na palavra escrita para transferir seus conhecimentos e inquietudes. O leitor é o objetivo do verdadeiro escritor, o que Sartre foi durante toda sua vida, minuto a minuto. Tanto isso é verdade, que, numa de suas últimas entrevistas, ao ser indagado para quem escrevia, ele respondeu, incluindo Simone de Beauvoir, que estava a seu lado: L’auteur et le lecteur reunis font le livre. Simone et moi avons toujours écrit pour le lecteur. Mas é preciso ser também escritor, como é o autor deste livro, para entender essa verdade e apresenta-la de maneira simples e indiscutível: O escritor antecedeu em muito ao filósofo.

 

Graña, com sua conhecida coragem intelectual, não teme contrariar biógrafos consagrados, como Silvie Le Bom (cujo trabalho ele elogia várias vezes em outros momentos), quando afirma que Sartre jamais renegará a posição crítica assumida (no seu mais famoso livro: O SER E O NADA) com relação à psicanálise, mais especificamente à noção de inconsciente. E para que não fique nenhuma dúvida, cita o documentário SARTRE PAR LUI MÊME (Michel Contat, 1970), em que ele reafirma em alto e bom som – malgrado a estridência de sua voz – exatamente isto: O inconsciente não existe!

 

O autor prossegue nesse caminho, colocando pensamentos distintos nos dois lados da balança, até que chega ao ponto em que esclarece plenamente o leitor: Conforme Sartre costuma-se ignorar que existem sempre duas formas possíveis de consciência, a reflexa e a reflexiva. Por isso, cada vez que se constata a presença de uma ou mais consciências reflexas, a tendência é que logo sobreponhamos uma consciência reflexiva, passando a consciência reflexa inicialmente dada a um estado que designamos de inconsciente. E parece-me ouvir a voz do próprio Roberto Graña, bem modulada e incisiva, ao desenvolver a sequência: Este pé o ponto onde Sartre questiona a estrutura do cogito de Descartes desde uma perspectiva que será depois plenamente desenvolvida por Jacques Lacan, em sua subversão do axioma cartesiano.

 

Como um jogador de xadrez, Graña move no tabuleiro peças com nomes consagrados, como o próprio Lacan (que o autor afirma utilizar ideias de Sartre sem reconhecer-lhe os méritos),  Simone de Beauvoir, Husserl, La Rochefoucauld, Winnicott, até colocar o próprio Jean-Paul Sartre em xeque-mate: Procurando exemplificar literariamente aquilo que se esforças para descrever filosoficamente, Sartre recorrerá a um romance de Dostoievski, especificamente ao crime cometido por Rascolnikoff; nessa passagem sua descrição irá ainda mais aproximar-se do pensamento psicanalítico, sobretudo o que não prescinde da ideia de intermediação, interregno ou entrelaçamento.

 

No aspecto prático, ainda nesse capítulo, ao tratar de afirmações de Lacan no seu clássico estudo sobre o Estágio DO ESPELHO (E NÃO ESTÁDIO DO ESPELGO), Graña revela mais uma vez seu profundo conhecimento da língua francesa (indispensável para escr4ever um livro como este) ao rebelar-se contra pseudotradutores que desconhecem as sutilezas do idioma:  Corrigimos aqui a incorreta tradução do francês stade por estádio. O sentido usual/com sensual atribuído à palavra na língua francesa que aqui mais se apropria é o de “etapa” ou “período”. Da mesma forma, ele próprio emprega mais de uma vez o neologismo outramente para traduzir outrement, afirmando com razão que esse advérbio é insubstituível.

 

É evidente que, seguindo neste ritmo, em lugar de somente abrir as cortinas do espetáculo para apresentar ao leitor um livro extraordinário como este, estaríamos escrevendo um outro, de crítica literária, revelando prematuramente muitos dos seus segredos. Mas caíamos na tentação de assim proceder em relação aos seus primeiros capítulos, levados pelo entusiasmo de quem admira profundamente o autor e está cansado de análises superficiais e repetitivas, que nos recordam o famoso Conselheiro Acácio, de Eça de Queiroz.

 

A verdade é que somente um pensador com a profundidade dos conhecimentos de Roberto Graña, e vivendo um raro momento de pleno sucesso em sua vida profissional e afetiva, poderia ter a coragem de desnudar tão completamente a pessoa, a vida e a obra de Jean-Paul Sartre (um escritor inclassable, que teve a coragem de recusar o Prêmio Nobel de Literatura), batendo sem massacrar, elogiando sem adular, e sempre buscando encontrar um álibi verdadeiro para salvá-lo de acusações levianas e interpretações fraudulentas.

 

Assim, ao concluir a leitura de SARTRE OU O INCONSCIENTE COMO ÁLIBI, surgiu diante de mim, como impressa em letras de forma, a seguinte pergunta: O que pensaria Sartre lendo este livro? E encontrei a resposta adaptando a epígrafe de sua autoria: Ce que je viens de lire est faux. Vrai. Ni vrai ni faux comme tout ce qu’on écrit sur les fous, sur ler hommes.

  

Fonte: Correio do Povo/CS/Alcy Cheuiche/Escritor em 22/06/19