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Vilém Flusser — por André Brayner de Farias
Vilém Flusser — por André Brayner de Farias

 

VILÉM FLUSSER E A FUNÇÃO POLÍTICA DO DESENRAIZAMENTO

 

UM SUPLEMENTO CULTURAL PRECISA ESTAR CONECTADO COM PENSADORES QUE MOBILIZAM UMA ÉPOCA.  VILÉM FLUSSER, NASCIDO EM PRAGA, EM 12 DE MAIO DE 1920, VIVEU NO BRASIL E LECIONOU NA USP.  MORREU EM 27 DE NOVEMBRO DE 1991 NA SUA TERRA NATAL.

 

INTELECTUAL JUDEU, CUJOS PAIS MORRERAM EM CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO, FLUSSER MIGROU PARA OS TRÓPICOS FUGINDO DO NAZISMO.  FILÓSOFO CADA VEZ MAIS ADMIRADO NO MEIO UNIVERSITÁRIO, AUTOR DE TEXTOS CULTUADOS COMO “PÓS-HISTÓRIA”, “BODENLOS: UMA AUTOBIOGRAFIA FILOSÓFICA” E “A ESCRITA – HÁ FUTURO PARA A ESCRITA?”, ELE DEVE SER APRESENTADO A UM PÚBLICO MAIS AMPLO.  É O QUE FAZ O CADERNO DE SÁBADO COM TEXTOS DE ESPECIALISTAS QUE PARTICIPARAM DO SEMINÁRIO, NA FILOSOFIA DA PUCRS, “VILÉM FLUSSER:  PÓS-HISTÓRIA E A CRITICA DA IDOLATRIA”.  UM MESTRE.

 

Nem de longe podemos dizer que Vilém Flusser foi um filósofo engajado no sentido corrente do termo, como diríamos, por exemplo, de um Sartre, de um Focault ou de um Toni Negri, e certamente que cada um desses não gostaria de ser enquadrado numa categoria comum.  Mas dizer que ele não foi um filósofo engajado é desconsiderar o conteúdo político de seu pensamento, que a rigor seria desconsiderar todo o seu pensamento: um instrumento filosófico altamente relevante para os tempos de terror e nacionalismo que não cessam de recomeçar.  O engajamento de Flusser foi de um escritor desenraizado de sua terra natal e de sua língua-mãe, e decidido a fazer de sua vocação de ensaísta poliglota uma forma de, primeiramente, sobreviver à violência do exílio forçado no Brasil, provocado pela vaga nazista, e depois de afirmar a condição existencial da liberdade.  Parece um paradoxo, pois a violência que obriga ao deslocamento anula a liberdade, porém em terra nova o recém-chegado descobre nova liberdade.

 

A liberdade do exilado é penosa, como diz Emmanuel Levinas é uma difficile liberte – primeiro porque ele tem que se desprender dos laços da cultura de origem, depois ele tem que encarar a tarefa nada fácil de dominar os códigos do novo mundo, ao ponto de com seguir se compreender e se fazer compreender.  É aí que a gente reconhece o engajamento de Flusser: escrever para se criar, se criar para oferecer algo ao mundo e ao seu tempo.  O desprendimento do exilado é uma espécie de morte e a apropriação dos novos códigos é como um novo nascimento.  De fato, o exilado faz lembrar que não nascemos amarrados (enraizados) em nosso solo cultural, que nos enraizamos com o passar do tempo, que o desenraizamento é uma espécie de condição originária e adormecida de todos nós.

 

No Brasil, muito bem munido da língua portuguesa, bem como conhecendo e reconhecendo os problemas dessa realidade latino-americana no século XX, Flusser começa a conceber uma obra filosófica marcada do início ao fim pela questão do desenraizamento.  Essa abrangência do tema permite, como consequência, múltiplas abordagens: desde a questão mais biográfica, lembrando que “Bodenlos” (sem chão, em alemão) é o título da autobiografia filosófica do autor, até a sofisticada análise da condição pós-histórica, do mundo dos aparelhos e da proliferação das imagens técnicas como código preferencial de comunicação.  Hannah Arendt propõe o conceito de natalidade como a categoria fundamental do pensamento político, ela diz que é porque nascemos que somos capazes de tomar iniciativa e de realizar aquilo que é improvável, aquilo que não existia antes.  Pois o bodenlos flusseriano poderia bem servir de modelo para Arendt, que aliás era outra desenraizada.  De fato, o exilado nasce de novo quando se apropria dos códigos do novo mundo, obviamente que num processo que exige esforço e paciência, numa temporalidade que deveria ser reconhecida como nova experiência de liberdade ou lição política.

 

Mas é uma liberdade de outra natureza, diferente da liberdade perdida na terra nativa.  Se o exilado deseja recuperar a liberdade perdida, o que resgata é uma outra maneira de ser livre.  A diferença pode ser percebida no grau de naturalidade da própria experiência.  A liberdade nativa é como que espontânea, é liberdade de quem se sente em casa:  é natural que falemos português, é natural a saudade que sentimos quando estamos fora do Brasil, é natural que queiramos voltar como quem deseja simplesmente voltar pra casa.  O estrangeiro acusa a pretensão dessa naturalidade, ele a torna artificial.  Em sua experiência, ele até pode chegar a sentir tão espontaneamente como um nativo, mas o sentimento é de uma certa maneira mais caro, exatamente porque sua espontaneidade foi elaborada penosamente, num processo que exigiu uma dose maior de escolha e deliberação, uma dose mais consciente de iniciativa, se compararmos com o tanto de escolha que foi necessário para o nativo naturalizar a saudade de seu chão cultural.  Mas não é preciso se exilar de fato para tomar essa lição de liberdade, a filosofia e a literatura são métodos mais acessíveis.  Pois é exatamente uma experiência nova de liberdade o que sentimos quando lemos Flusser.

  

Fonte:  Correio do Povo-CS Caderno de Sábado/André Brayner de Farias (Professor de Filosofia da UCS e da PUCRS e organizador do livro “Vilém Flusser – Filosofia do Desenraizamento”, publicado em 2015 pela Editora Clarinete.  Em 16 de janeiro de 2016.