O ETERNO RETORNO DA FILOSOFIA NIETZSCHEANA
Doutor em Comunicação analisa a influência do pensamento do filósofo alemão até os dias de hoje
Enquanto alguns autores escrevem frases, Friedrich W. Nietzsche (1844/1900) inscreve epígrafes. Enquanto alguns filósofos interpretam os sonhos de Platão, Kant e Hegel, Nietzsche incorpora Schopenhauer, no pesadelo de um mundo apreendido apenas como vontade e como representação.
Resgatou pensadores como Anaximandro, filósofo pré-socrático, que formulou a fundamental e problemática questão: “Tudo que entra em devir, perece ao devir”. A origem, a duração e a finalidade da vida, numa frase condensada que, ao mesmo, oculta e revela o enigma do sujeito diante do mundo.
Heráclito, talvez o maior pensador antes do advento de Platão, por sua vez, concebia o tempo com o fluxo e a multiplicidade como fundamento. Nietzsche afirmou que “devemos retornar aos pré-socráticos”, após anos dedicando-se à filosofia clássica, lendo e escrevendo em grego e latim, para não perder a intenção do conceito. Sua grande obra nesta fase foi O NASCIMENTO DA TRAGÉDIA, que revoluciona a filosofia e as artes, ao reinterpretar as figuras dos deuses Apolo e Dionísio, via categorias estéticas: apolíneos e dionisíacos.
Em 1878, Nietzsche inaugura sua década errante de andarilho pelos Alpes italianos e suíços, no verão, e pela costa do Mediterrâneo, no inverno. Dizia estar farto do germanismo, de Wagner, dos wagnerianos e da cultura alemã, em geral. Recebe dispensa remunerada da universidade em que lecionava, na Basileia, adquire a nacionalidade suíça e decide escrever sua própria filosofia.
Adiciona uma feroz crítica da modernidade aos metais de fundição: etimologia, tragédia, mitologia e história da fábula humana, incluindo a genealogia da moral, e forja seu martelo para a desconstrução de certezas. Achava não ser compreendido. Buscava a solidão como ambiente criativo: “para viver sozinho, é preciso ser um louco ou um gênio; ou ambos: um filósofo!”. Imbuiu-se da missão de inverter o platonismo, desmascarar as tramas da religião, moral e metafísica e produzir uma filosofia de futuro.
Percebeu que Platão iniciara a legislação moral, através da filosofia. Seria, então, necessário retirar o véu do pensamento ocidental e reescrever o mundo, desde a invenção da ideia de deus. Ao desconstruí-la, nada comparável à narrativa poderia ser o texto. A abertura ao niilismo ativo deu-se pelo movimento de descentralização de valores seculares, na transferência do significante para seus simulacros.
Nietzsche travou batalhas homéricas contra a memória. De um lado, “o homem da mais longa memória”, que havia desmascarado a fábula. Do outro, “o excesso de memória (consciência histórica) que impedia a criação de novos valores”, que repassava este “discurso do mestre”, de geração em geração.
A moral é uma doença que enfraquece o homem, constatou. Nesse sentido, bradava por uma filosofia da alma e pareceu inventar o psiquiatra/psicanalista: escreveu que, assim como existem médicos que cuidam do corpo, precisaríamos de médicos que se encarregassem da alma.
Retomando Anaximandro e Heráclito, formula conceitos-chave, como “Vontade de Poder (potência)”, “Super-Homem” (além do homem)” e “Eterno Retorno”, que se encontram distribuídos em vários livros e escritos de muitas maneiras.
Se o orgânico perece ao devir, as narrativas resistem a ele. Um sistema de transmissão da moral foi identificado em diversas épocas e culturas, naquilo que Foucault chamaria de Biopoder. “Lembramos do que nos foi marcado a ferro e fogo na memória”, argumentava.
Abria caminho para a incorporação de uma doutrina regida pela noção circular do tempo, sem condições morais de origem, duração e finalidade. Se havia uma regra, era a do amor ao destino (Amor Fati). O real nunca foi representado como real. Sempre o foi como imaginário ou simbólico.
Porém, a afirmação da vontade de potência reinscreveria o texto filosófico no tempo a vir, que se faz presente, volta ao passado, mas persiste como lembrança. Deleuze tratou do presente como cisão fundamental do tempo, na relação daquilo que passa e o que é conservado no instante do acontecimento atual. De fato, a filosofia a golpes de martelo tinha uma odisseia homérica pela frente.
A obra ASSIM FALAVA ZARATUSTRA, considerada uma das cinco melhores da cultura germânica, aborda os principais conceitos de forma literária e enigmática, como consta no subtítulo: “Um livro para todos e para ninguém”. Se as cartas contavam parte dos segredos da vida europeia, na segunda metade do século XIX, estruturadas na relação entre emissor/mensagem/receptor, revelavam os trajetos do texto, também na inversão dos polos. Zaratustra estava destinado ao tempo. Nietzsche sentia não possuir leitores naquela época, mas mantinha sua fé no devir da filosofia.
Em 1889, perde os sentidos e caí, numa praça de Turim. Jamais voltou a ser como antes. Viveu até 1900, na Alemanha, transformado em atração turística, por sua irmã, Elizabeth, que, em dificuldades financeiras, explorou seu acervo, editou, adulterou e acrescentou trechos, sobretudo na inacabada obra A VONTADE DE PODER, que rendeu confusão e mal-entendidos sobre o grau de falsificação do legado, ainda pouco conhecido pelo público.
Freud teria lido O NASCIMENTO DA TRAGÉDIA quando tinha 17 anos. Mas, sempre negou qualquer influência em sua obra. Nietzsche tratava de psicologia da consciência, definições do inconsciente, patologia da moral e, se apresentava como o próprio sintoma, bem como o analista do homem gregário que utilizou a linguagem e a comunicação como transmissão de sua racionalidade, por meio de cadeias de significantes.
A história poderia ter sido outra se, em 1891, o “pai” da psicanálise, que publicara, recentemente, seu texto sobre as afasias, tivesse visitado o filósofo que já não falava, não caminhava e tocava apenas algumas notas ao piano. Freud investigava a relação do aparelho de linguagem com o aparelho psíquico. Tivesse, ainda, visitado a Villa, em 1899, quanto terminou A INTERPRETAÇÃO DOS SONHOS (aguardou até 1900 para inscrever a obra no século XX, conforme declarou).
Se Freud tivesse analisado Nietzsche? O que se perdeu em teremos de filosofia, com seu estado catatônico por mais uma década? Lou Andrea Salomé, amiga de ambos, escreveu sobre os autores em suas obras, poderia ter aproximado o filósofo do psicanalista. O CASO NIETZSCHE: analista e sintoma da patologia da moral.
Jamais saberemos.
Uma coisa é certa: a atualidade e popularidade de Nietzsche residem tanto na filosofia como no filósofo. O pensamento que amanhece com o frescor das “tantas auroras que ainda não brilharam”, só faz sentido quando incorporado pelo leitor. A França salvou o legado. País da Cultura, assim chamado por ele, foi berço de intelectuais que estenderam suas ideias no tempo: Bachelard, Badiou, Lacan, Foucault, Deleuze, Baudrillard, Maffesoli, entre outros.
O pensador levou uma vida tumultuada e misteriosa, estilo astro do rock. Foi mal-amado pelas mulheres, principalmente Lou Andrea Salomé, que recusou a proposta de casamento. Nietzsche era visto, também, como um escritor maldito, inspirador da Geração Beat, por meio da prosa de London e da poesia de Whitman.
Hoje em dia, é ícone das redes sociais, em razão das epígrafes inquietantes e vitaminadas pela dinamite filosófica, para além das passarelas de LED da cultura pop, das estampas em camisetas e frases grafitadas em muros do velho e do novo mundo.
Escreveu filosofia com o próprio corpo e incluiu, novamente, os sentidos da percepção do mundo. O Nietzsche real nunca foi popular enquanto viveu. Mas, sua inscrição no imaginário do Século XX, carimbou seu passaporte para a dimensão simbólica do atual e do inatual.
Fonte: Jornal Correio do Povo/Caderno de Sábado/Francisco Menezes/Doutor em Comunicação pela Universidad Complutense de Madrid (Pesquisador em Comunicação e Psicanálise), em 01/02/2020