O VAQUEANO DA VIDA IMPRODUTIVA
SOCIÓLOGO FRANCÊS ANALISA O PARADOXAL INTELECTUAL GEORGES BATAILLE, AUTOR DE HISTÓRIA DO OLHO.
A respeito de Georges Bataille (1897 – 1962), as avaliações sempre foram tanto elogiosas quanto insultuosas: grande intelectual do século XX, “maior cabeça pensante da França de hoje” (Martin Heidegger), autor de uma obra ao mesmo tempo séria e escandalosa, ampla e incontornável, “tarado” (André Breton), “novo místico” (Jean-Paul Sartre). É verdade que ele manipulava também os insultos com muita habilidade quando se tratava, no meio dos anos 1930, de alimentar sua rejeição em relação ao idealismo do grupo surrealista e, sobretudo, de denegrir o seu líder, André Breton: “velha bexiga religiosa”, “abcesso de fraseologia clerical”, “leão castrado”, “cadáver”. Um homem completo e permeável às provas da vida, à imagem da radicalidade do seu pensamento, que experimentava os abismos do impensável.
Bataille foi assim um homem paradoxal que, como a natureza, tinha medo do vazio e, diferente dela, gozava com esse sentimento. Após sua morte, foi encontrado entre seus papéis um envelope com a seguinte frase escrita de sua própria mão: “L’hommeest ce qui lui manque”. O homem é o que falta nele e se define pelo que sente falta. Bela definição, ao mesmo tempo, imperiosa e tingida de modéstia. Uma generalidade que se aplica à peculiaridade de cada um. Um homem paradoxal, mas também contraditório, que foi condecorado com a Legião de Honra do estado Francês, em 1952, apesar do seu pensamento livre sobre o papel dos políticos. Mede-se a liberdade pelos atributos das concessões. Um ser humano, seja ele comum ou extraordinário, é corpo, pensamento, escrita e traços, no fundo da consciência e da moral. Bataille não escapou desses pilares da existência humana.
Um corpo que esconde as experiências do desejo e da dor por trás das conveniências sociais. Um rosto de << místico sem deus >>, como se definia ele mesmo, com traços angulosos e sóbrios tal como foi desenhado por Giacometti, em 1947. Um seminarista que queria ser padre ou monge e que, ao mesmo tempo, bebia, frequentava bordéis, praticava todos os atritos da sexualidade. Tornou-se, a partir de 1922, um servidor do Estado, arquivista-bibliotecário, que publicava anonimamente e na clandestinidade romances pornográficos e escatológicos, nos quais a ficção percorria aspectos autobiográficos, entre os quais HISTÓRIA DO OLHO, MADAME EDWARDA, O MORTO, MINHA MÃE. Um corpo que tenta se comunicar com o mundo e que percebe que o dedão do pé na lama, objeto de aversão e de vergonha, não vale menos do que a cabeça erguida na direção das luzes celestes (O DEDÃO, 1929). Experiências extremas de um corpo descontínuo, separado do que ele não consegue ser, em busca de uma intimidade perdida com os seres, os outros, o mundo, agitando sua acefalia no horizonte de todas as transgressões
Um pensamento fascinado pela morte e pelo sexo à toa, pelo tremendum da vida que transa sem descanso com o seu próprio aniquilamento. Um intelectual das trilhas sinuosas da vida, daquelas que levam ao impossível e ao desamparo. Assim, a obra de Bataille não se resume apenas aos romances sulfurosos que a censura da época queria erradicar. Grande parte da sua obra é de natureza sociológica, antropológica, filosófica, histórica, econômica. Um pensador disciplinado e aplicado em transgredir as fronteiras disciplinares e os limites do bem pensar. Ele foi assim, o psicanalista aguçado de uma modernidade que deu à luz duas guerras mundiais. A eclosão da Primeira Guerra provocou a fuga de Bataille, com a mãe, da cidade de Reims abandonando o pai, cego e sifilítico; enquanto o surgimento da Segunda Guerra resultou do fascismo dominante nos Anos 30, que ele tentou combater, tendo por únicos argumentos a revista Contra-ataque (1935) e o Colégio de Sociologia (1937-39). Uma modernidade bem arrumada, mas cheirando mal, orgulhosa das suas condecorações autoatribuídas, que não se dava conta de seu estado avançado de decomposição (A ESTRUTURA PSICOLÓGICA DO FASCISMO, 1934).
Uma escrita lancinante que, com o rigor da sintaxe e o choque das palavras, atropela o sentido, inventando outros modos de penetração no indizível. Uma poesia soberana nos alhures da vida sem compromisso. Um acesso ao excesso pelo sagrado. Um texto sem finalidade informativa, cujo único pretexto de ser consiste em comunicar sem contrapartida e de modo soberano, visto que “a comunicação é o contrário da coisa, que se define pelo isolamento que é possível lhe aplicar” (A LITERATURA E O MAL, 1957). Segundo Bataille, a literatura não serve para nada, a não ser para projetar o homem (autor, leitor) para fora de si mesmo. O raciocínio é similar em relação ao sagrado e ao erotismo que se encontram também na escrita. Deixam-se entrever, então, os rumos da soberania, que pode ser entendida aqui como tudo que não é alienado: a liberdade que todo homem esforça-se em inscrever nos muros delimitando o corredor da sua vida.
O desencadear do universo batailliano, “corpo-pensamento-escrita”, excede qualquer tentativa de homogeneização formal aplicada a ele. É verdade que, para a ciência, é preciso que o universo ganhe corpo: “trata-se dar uma sobrecasaca ao que é”. Ele mesmo tinha tentado sistematizar sua linha de pensamento num novo logos antecipadamente descartado pela ciência: a heterologia, ou seja, o estudo dos elementos heterogêneos, dos corpos estranhos, de tudo que está fora da vida produtiva.
Afinal, com Bataille, estamos à frente de um pensamento carnal que enfeixa seus músculos, de uma escrita visceral que evacua e purga, de um corpo irremediavelmente animal que agita suas dores e desejos, risos e lágrimas, coragens e covardias. Os rastros que Bataille deixou, inúmeros, mostram as trilhas inventadas por ele no meio da vida a qualquer custo e sem preço mercantil. Esse homem conhecia a vida. Vaqueano.
Fonte: Correio do Povo – CS Caderno de Sábado/Philippe Joron (Diretor da Faculdade das Ciências do Sujeito e da Sociedade da Universidade Paul-Valèry de Montpellier) em 17 de outubro de 2015