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O Visconde Partido ao Meio, de Italo Calvino
O Visconde Partido ao Meio, de Italo Calvino

VISCONDE PARTIDO AO MEIO

 

Calvino resume a visão de mundo do escritor e sua concepção do homem contemporâneo…

 

O VINCONDE PARTIDO AO MEIO, escrito por Italo Calvino em 1952 e publicado no Brasil em 2011, é um pequeno romance que não alcança cem páginas. Não obstante, ele resume a visão de mundo do escritor e, principalmente, sua concepção do homem contemporâneo, fragmentado, dividido, confuso. Na forma de uma fábula para adultos, Calvino escreve aos leitores e pensadores do seu tempo, enfocando a imagem do homem contemporâneo, incompleto, falho, alienado, inconsistente. Segundo a narrativa, o Visconde Medardo di Terralba, recebe um canhonaço na guerra dos cristãos contra os turcos e sobrevive cortado ao meio, em duas metades distintas. A primeira, restaurada pelos médicos militares, retorna ao castelo de Terralba, como um ser do mal. Maltrata, subjuga, corta, destrói, castiga e mata. A outra, tratada por eremitas locais, aparece depois, dotada apenas do lado bom. Durante o texto o primeiro a atuar será o Mesquinho, que passa a morar no castelo; o outro, o Bom, irá morar no bosque. E de tão bom será quase insuportável.

 

A primeira leitura do romance, escrito por Calvino durante a Guerra Fria, sugere o óbvio: o Visconde será mau à direita e bom à esquerda, de acordo com as convicções políticas do escritor que, assim, ironiza o mundo dividido no pós-guerra. Essa leitura, no entanto aprofunda-se em camadas de subtextos à medida que amplia seus episódios e insere novas personagens. Aliás, desde o prefácio, o romancista refere as possíveis interpretações que o texto suscitará, antecipando leituras que lhe serão destinadas. Essas gira em torno de questões de época, como a separação entre ciência, técnica e humanidade; ou ainda a crítica ao moralismo idealista da burguesia.

 

Construção narrativa fundamentada nos contrastes, ao recriar a atmosfera das fábulas, o tempo indefinido idílico do “era uma vez...” aderindo à paisagem dos bosques, com lagos, árvores, animais, flores, o romance pretende e consegue os leitores. Aparentemente segue o dogma horaciano ridendo castigat mores, tão presente na história da literatura. Mas a proposta é absolutamente irônica e preserva o efeito surpresa com que Calvino capta e mantém a atenção do leitor. Para o autor, além da natureza cômica, a fábula obriga a pensar e a refletir sobre sua própria natureza. E o modelo da antiga “fábula”, recriado com leveza e fantasia, permite ao leitor fruir uma história exata e precisa, rápida visível e consistente que, no entanto, expressa a natureza realista e trágica do homem contemporâneo, com suas incompletudes e divisões.

 

É o narrador menino, sobrinho do Visconde, que narra a sobrevida do tio, o retorno ao castelo de suas metades, a perversa, depois a bondosa e compassiva. Esse narrador sabe-se livre, pois não teve pais e é filho bastardo da irmã do Visconde, portanto não submetido aos limites da educação e de sua classe. Ele testemunha os fatos e os enriquece comentando, como a existência do Prado dos Cogumelos, onde refugiavam-se os leprosos excluídos do convívio humano, mas simulando o viver em festa. Narra também os costumes do povoado, então submetido às tiranias do Mesquinho e às inoperâncias compassivas do Bom. A leitura maniqueísta e simbólica do Bem e do Mal expõe o intertexto possível com o romance O MÉDICO E O MONSTRO, clássico de Robert Louis Stevenson. Mas em Calvino, os conflitos são dilemas e reflexões que se cruzam e interferem na fabulação. E nesse sentido, chama atenção do leitor o fato de que personagens do romance, embora delineadas com rapidez em traços decisivos, para dotar o enredo de simplicidade e multiplicidade, apresentam-se complexas e inesquecíveis. O Visconde, com suas metades, tem atitudes e reflexões instigantes; mais ainda o narrador e outras personagens secundárias, como Sebastiana, a ama, os hunguenotes, os leprosos, a pastora Pamela, que vive com a pata e a cabra, e por quem os dois lados do Visco de se apaixonam; e também o artesão e o ferreiro Pedroprego. Esse exercerá seu ofício a mando do Mesquinho ou do Bom, construindo ora forcas e instrumentos de tortura refinados, ora artefatos úteis e apropriados à vida dos homens. Pamela pensa e subverte as propostas de casamento que os dois Viscondes lhe fazem, do que resulta o duelo entre as partes. A ferida aberta em ambos, ao ser costurada pelo médico, resulta na consequente unificação do Visconde. Este será “normal” a fábula irá recompor a moral da história. Para alguns críticos, no entanto, o romance alude aos efeitos da bomba atômica e às consequências da Segunda Guerra.

 

Um modo possível de se pensar a construção e a finalidade desse romance é considerá-lo uma alegoria. E a narrativa em que Calvino obtém exemplarmente os efeitos que, depois, irá registrar no livro de ensaios que reúne as conferências que proferiu em Harvard com o título de SEIS PROPOSTAS PARA O PRÓXIMO MILÊNIO. Nesse livro, conhecido como testamento artístico do escritor, Calvino expõe cinco características da literatura abstraídas de suas leituras e que considera essenciais para a qualificação de obras literárias. Deslizando por entre ética e estética, o escrito assegura que essas características ou virtudes são capazes “de nortear não apenas a atividade dos escritores mas cada um dos gestos de nossa existência”. Publicado no Brasil em 1990, o texto constituiu um legado ao século XXI. No mundo breve e complexo de O VISCONDE PARTIDO AO MEIO estão contidas essas seis propostas, objetivos que o escritor valoriza no texto literário: leveza, exatidão, visibilidade, rapidez e multiplicidade. E também consistência, a última delas, sobre a qual Italo calvino não chegou a escrever. A leitura cruzada desses dois livros possibilitará aos leitores aproximar-se ainda mais da trilogia OS NOSSOS ANTEPASSADOS, árvore genealógica do homem contemporâneo que reúne O BARÃO NAS ÁRVORES, O CAVALEIRO INEXISTENTE e O VISCONDE PARTIDO AO MEIO. Calvino encerra seu percurso ficcional com humor, nesse texto que desliza com requinte de linguagem entre o absurdo, o risível e o trágico.

 

Fonte: Correio do Povo/CS/Léa Masina/Professora associada do Instituto de Letras da UFRGS em 03/11/2018