ARTE NO LIXO
O que o caso da obra AUDITORIUM, em Porto Alegre, diz sobre a sociedade contemporânea.
A descoberta de que o destino da obra AUDITORIUM, da artista plástica Regina Silveira, desaparecida desde o segundo semestre de 2017, foi o lixo da Casa de Cultura Mario Quintana é um fato simbólico como muitos outros do campo da arte na Capital.
De forma premonitória, James Gardner em CULTURA OU LIXO (Civilização Brasileira, 1996), já se questionava sobre os destinos da arte contemporânea que padece das consequências de ter se transformado em show, em negócio, o que levou muitos a pensarem nela como lixo, algo a ser desprezado de receber o título de obra de arte.
Já se tornou folclore a confusão entre obra de arte e lixo. Em 2015, uma obra de arte foi restaurada após ser confundida com sujeira e removida por uma faxineira em Bolzano, no extremo norte da Itália. Denominado ONDE VAMOS DANÇAR ESTA NOITE?, tratava-se literalmente da bagunça de uma festa, com bitucas de cigarro, garrafas vazias, Zygmunt Bauman, em CULTURA DO LIXO, capítulo de VIDAS DESPERDIÇADAS (Zahar, 2005), fala da produção do refugo humano de nossa época em que nada mais é eterno. O que o caso de Porto Alegre sinaliza é a transformação da arte contemporânea em refugo, o que significa também que a arte é vítima do princípio de realidade que diz que tudo em nossa época deve ser reciclado sem parar, inclusive as obras de arte.
Onde foi que a arte falhou? A arte falhou? Nós falhamos? Há muitas formas de abordar a questão. Minha posição segue na linha dos muitos que criticam a propensão da arte em atrair o maior número de pessoas a qualquer custo para que possam gerar ingressos. Jogar no lixo uma obra de arte é a prova de que administradores e artistas têm objetivos diversos, diz Bauman em ARTE LÍQUIDA (Sequitur, 2015): “As artes desenham alternativas ao status quo e por isso competem, queiram ou não, com os administradores cujo desejo é de controlar os comportamentos humanos e o seu futuro”.
Jogar AUDITORIUM no lixo significa que, hoje, a cultura artística é mais uma esfera administrativa e gerenciada pelo capital. Fim da propensão transgressora da arte na cultura: no estado neoliberal, não há espaço para cultura artística não só como mercadoria, e sequer merece espaço em seus depósitos.
Arte sempre foi signo de cultura. Se tratamos obras de arte como lixo é porque damos um passo atrás em nossa civilização. Mas não é exatamente isso que está ocorrendo na política e em todas as esferas? Esse movimento de involução chegou à arte. A artista e a obra foram vítimas do abandono da arte no espaço das instituições públicas? É claro que sim. O Estado deve se responsabilizar pelas obras artísticas em seu interior? Com certeza. Lição do caso: Tão importante quanto debater os destinos da arte no espaço público é debater o destino da arte no interior das instituições públicas. Quem é responsável? Quem cuida das obras artísticas?
Não se trata de abordar como caso isolado e apontar culpados. É preciso mais. É preciso cobrar do Estado sua responsabilidade com as obras artísticas. Ao mesmo tempo, os artistas precisam questionar os efeitos de uma arte pós-moderna, sem limites e pensada para durar um instante. Pois eles também foram vítimas dos efeitos de uma certa arte na sociedade e que matou AUDITORIUM. A obra de Regina Silveira foi vítima do efeito não previsto de toda sorte de arte contemporânea que é feita para durar um instante, que não vê limites e que ultrapassa a ética. AUDITORIUM não foi só vítima do Estado, foi vítima da ambição ilimitada da arte de viver a vida sem limites éticos ou morais.
É que a arte sem limites significa também que não há limites ao que o Outro pode fazer com a arte – inclusive, jogá-la no lixo. Ao vermos que AUDITORIUM foi para o lixo, vemos que a última muralha, a da imortalidade da arte, caiu, reduzida pela visão estreita que a sociedade tem dos artistas e suas obras como algo superficial, efêmero e sem sentido. Faz falta educação para arte nas escolas? É claro que sim! Mas falta algum engajamento político a mais e reconhecer que a ausência de limites ao fazer artístico também arruína… a arte! Pior é que AUDITORIUM era apenas um… auditório, como significante estava distante quilômetros de outras obras que banalizam a violência, o medo e o terror e que impõem estas discussões éticas.
Fonte: Zero Hora/Caderno DOC/Jorge Barcellos (Doutor em Educação) em 01/04/2018.