O CENTENÁRIO DO GUERREIRO
Exposições e diversas atividades celebram a marcante obra de Xico Stockinger
Ele não pensava em arte. Só queria ser piloto de avião. Em várias de suas entrevistas, o próprio artista contou o infortúnio que o levou ao caminho das artes plásticas e da escultura. Por ser estrangeiro no período da Segunda Guerra Mundial, Francisco Stockinger não pôde realizar o sonho de pilotar as aeronaves que via cruzando os ares de São Paulo, onde morava. Quando já se conformava em ser meteorologista a prever as condições climáticas para os pilotos, resolver prestar atenção no velho gosto que tinha por desenhar. E assim foi percorrendo, meio por acaso e sem qualquer planejamento, o caminho que o levou a ser um dos principais nomes das artes plásticas brasileiras no século XX. Já decidido a seguir a vida como artista, deixou o Centro do País para morar em Porto Alegre, onde, segundo ele próprio, “podia errar por conta própria, sem palpites e sem ninguém para encher o saco”. Inseriu, assim, a Capital gaúcha no mapa da escultura do Brasil e da América Latina.
Franz Stockinger nasceu na pequeníssima cidade de Traun, na Áustria, em 1919, e veio para o Brasil aos quatro anos de idade com a família, que fugiu da miséria que assolou a Europa na Primeira Guerra Mundial. Depois de adulto, naturalizou-se brasileiro e mudou seu nome para Francisco. Virou, então, o Xico, escultor e artista plástico, agitador cultural, militante de esquerda, duas vezes diretor do Museu de Arte do Rio Grande do Sul (Margs), fundador do Atelier Livre de Porto Alegre, pesquisador e colecionador de cactos, amante dos animais e um exímio cozinheiro, que preparava uma famosa e inimitável feijoada branca – a receita se perdeu após sua morte, em abril de 2009.
Às vésperas de se completarem 100 anos de seu nascimento, no dia 7 de agosto, Porto Alegre se prepara para celebrar a vida e a obra de Xico Stockinger. O primeiro passo para que a cidade mergulhe nessa comemoração será a revitalização e a sinalização das 11 esculturas públicas do artista, que ficam em pontos como o Parque Marinha do Brasil, a Praça da Alfândega e o acesso ao Túnel da Conceição. Produtivo até a véspera da morte, Xico deixou uma obra vasta que se espalha por coleções privadas em todo o País, além de museus, galerias, centros culturais e espaços públicos de cidades como Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro.
A revitalização e a sinalização das obras, com a instalação de totens informativos, é parte de uma estratégia para chamar a atenção dos moradores e visitantes da Capital para o trabalho de seu maior escultor. “A ideia é preparar roteiros turísticos guiados para que as pessoas visitem e conheçam melhor a obra pública do Xico”, afirma a coordenadora de Artes Plásticas da Secretaria Municipal de Cultura, Adriana Boff.
O projeto, orçado em R$ 300 mil, já foi aprovado pelo extinto Ministério da Cultura, em 2018, e está em fase de captação de recursos. A ideia da prefeitura é ter pelo menos algumas das esculturas restauradas e sinalizadas em 7 de agosto, data em que, além do aniversário de Xico Stockinger, é também o Dia do Escultor gaúcho.
A programação nas ruas da cidade deve ganhar continuidade no interior dos espaços dedicados à cultura, especialmente do Margs, instituição que foi dirigida por Stockinger por duas vezes e que reúne o maior acervo do artista, com mais de 60 peças.
“O Margs tem o dever de homenagear o Xico não apenas por ele ter produzido aqui, mas porque sua arte extrapolou as fronteiras, como só os grandes artistas conseguem. Também teve um papel institucional decisivo no sistema da arte no Estado, o que faz dele um personagem fundamental na nossa cultura”, ressalta o diretor do Margs, Francisco Dalcol.
Antes da festa do centenário, a cidade também chora uma década da morte do sujeito inquieto, inventivo e bem humorado, com jeitão e porte de austríaco e sorriso de brasileiro. Esta reportagem segue os rastros do escultor, revelando o que resta de seu legado e o tamanho da sua obra no contexto das artes plásticas no Brasil.
MEMÓRIA FORJADA EM PEDRA
Um recanto escondido do bairro Vila Nova, na Zona Sul de Porto Alegre, guarda a memória mais viva de Xico Stockinger. O ateliê no qual trabalhou por anos ao lado da aluna e parceira, a também escultora Eloisa Tregnago, é uma espécie de fresta no tempo, por onde se pode espiar o processo de criação do artista, suas ferramentas, seus objetos, os rascunhos e estudos que rabiscava nas folhas de qualquer bloco. Até o que restou de sua coleção de cactos está ali. Durante anos e até o fim da vida, Xico passou as tardes na Vila Nova para trabalhar em suas esculturas de bronze e pedra. O terreno foi adquirido pelo artista na década de 1980 para ser um segundo ateliê, no qual pudesse fazer mais barulho e poeira sem causar transtornos aos vizinhos.
“Ele vinha para cá todos os dias depois do almoço. Trabalhava bastante, mas também gostava de apreciar a natureza e interagir com os cachorros e gatos. Lia, descansava, desenhava e cozinhava”, relembra Eloisa enquanto acaricia Alemão, um velho cachorro que pertenceu a Xico e que ainda guarda o santuário da Vila Nova. As esculturas que Eloisa produz em pedra e cerâmica convivem com inúmeras obras deixadas por ele, como peças grandiosas de mármore e granito, figuras de madeira e ferro, cabeças de bronze e moldes de gesso originais de séries como As Magrinhas e Os Gabirus. “Era um homem extremamente inteligente, um artista sempre inquieto. Às vezes acho que, ainda, continuo aprendendo com ele aqui” diz Eloisa.
A preservação de tantas memórias inspira a escultora, mas também causa um certo temor. Apesar de conter preciosidades que contam parte da trajetória de Xico Stockinger, o ateliê da Vila Nova é também o local onde Eloisa trabalha todos os dias. Ela diz que já pensou muitas vezes em abri-lo para visitação, talvez oferecer cursos. Mas a falta de segurança e os altos investimentos necessários a fazem declinar. “Esse é o meu local de trabalho, por enquanto não posso transformá-lo em museu.”
A casa onde o artista viveu com a esposa, Yeda, e os filhos, no bairro Cristal, também abrigou um ateliê. Era ali que ele produzia as peças de madeira e ferro, que precisavam de solda, como a numerosa série dos Guerreiros. Ali também ficava a estufa dos cactos e a biblioteca. Todos os dias, Xico fazia uma caminhada por entre as plantas após o café. Somente depois disso pegava em suas ferramentas para trabalhar. Com a morte do artista, em 2009, o destino da casa-ateliê ficou incerto. Já muito idosa, dona Yeda, que tem 100 anos de idade e vive com a filha, em Tapes, não pôde conduzir o processo de inventário. A falta de consenso entre os dois irmãos mantém a situação do casarão em suspenso. Objetos, ferramentas e obras de arte já foram retirados da casa, em cujo interior pouco resta que lembre o seu ilustre proprietário.
DE FRANZ A XICO: VIDA DE BUSCAS E DESCOBERTAS
Quando desembarcou com o pai austríaco e a mãe inglesa no Brasil, o pequeno Franz foi direto para um lote destinado aos imigrantes, no interior de São Paulo. A vida dura em meio à floresta não agradou Ethel, que em alguns anos resolveu se separar de Franz Pai e partiu com o filho caçula para a capital paulista. A filha mais velha do casal, Ivy, ficou na roça. Em São Paulo Ethel empregou-se no colégio Mackenzie, que o menino passou a frequentar com uma bolsa de estudos. Lá teve aulas de desenho co Anita Malfatti.
Já morando no Rio de Janeiro, foi indicado por um amigo para frequentar o ateliê do escultor Bruno Giorgi, que funcionava em uma sala do popular hospício da Praia Vermelha. Ali passou três anos aprendendo sobre escultura. “O Bruno não dava aula. A gente ficava modelando e, no fim do dia, quando ele achava que valia a pena fazia correções e comentários”, relembrou o artista em depoimento gravado para o documentário XICO STOCKINGER, de 2012, com roteiro e direção de Frederico Medina. Para se sustentar, já desenhava. Passou um tempo fazendo cartazes para uma loja de autopeças. Em seguida começou a fazer charges na imprensa, ofício que manteve até meados dos anos 1960.
É do tempo em que viveu no Rio de Janeiro uma das amizades mais emblemáticas cultivadas pelo artista, com o pintor Iberê Camargo. Os dois se encontravam no Vermelhinho, um bar que reunia artistas e intelectuais, e a afinidade entre eles só aumentou ao longo da vida. Quando Xico se mudou com a mulher e os dois filhos para Porto Alegre, Iberê seguiu morando com a família no Rio, o que não impediu uma intensa e interessantíssima correspondência entre os dois.
Iberê pintou o retrato de Xico e Xico esculpiu a cabeça de Iberê. “Foi exatamente no Sul, nesta plaga de tradições cruentas, que Xico criou seus imortais guerreiros, sempre prontos à luta, armados de escudos e pontiagudas lanças. Quixotescos, eles existem heráldicos, no intemporal da Arte. E, por certo, combatem em imaginárias refregas-vivências da fantasia do artista”, escreveu Iberê em 1968, em depoimento sobre o amigo. O escultor gaúcho Vasco Prado era o companheiro que completava o trio.
No livro XICO STOCKINGER: VIDA E OBRA, lançado em 2012, o curador e doutor em História José Francisco Alves lista um sem-fim de eventos dos quais Xico participou com suas obras. “É muito interessante perceber a versatilidade do Xico. Ao reunir o material para o livro, descobri um artista múltiplo, que se aventurava em muitas técnicas. Foi uma trajetória rica”, comenta Alves, que hoje dirige o Ateliê Livre da prefeitura de Porto Alegre, fundado e coordenado por Xico Stockinger.
AMIZADE COM QUINTANA E A DESPEDIDA DE IBERÊ
Ao chegar em Porto Alegre, Xico se estabeleceu com a família em uma casa na rua Pelotas, bairro Floresta, onde foi seu primeiro ateliê. Lá, além de dar forma e personalidade à sua arte, recebia os amigos que o acompanharam pela vida, como o poeta Mario Quintana, que aparecia por lá para beber e comer massa com molho de tomate, segundo depoimento da filha do escultor, Jussara Stockinger. Artistas de passagem pela cidade para apresentações no Theatro São Pedro também eram frequentadores, como os atores Paulo Autran, Fernanda Montenegro e Fernando Torres.
A família morava nessa casa no começo dos anos 1960, quando Xico manifestou com mais contundência seus posicionamentos políticos, trabalhando na Campanha da Legalidade, apoiando Leonel Brizola e publicando manifestos em favor da posse de João Goulart após a renúncia de Jânio Quadros. Com a instituição da ditadura, em 1964, Xico perdeu o emprego no jornal e passou a dedicar-se exclusivamente à escultura. Nunca deixou de se posicionar contra o regime.
É mais ou menos dessa mesma época o agravamento do problema auditivo, que acabou resultando em surdez completa anos depois. Apesar de falar bem e se comunicar, Xico ficou completamente surdo. Para entender seus interlocutores, fazia leitura labial. É conhecida a história de seu último encontro com o amigo Iberê Camargo, já em seu leito de morte. Iberê ficou cerca de meia hora falando a Xico e se despediu. A penumbra do quarto, porém, não permitiu a leitura labial e nunca se soube o conteúdo dessa derradeira conversa.
UM ARTISTA NECESSÁRIO
Um dos principais obstáculos para a criação artística, segundo Xico Stockinger, sempre foi o dinheiro. O custo para fundir esculturas em bronze, por exemplo, era altíssimo, o que durante muito tempo limitou seus experimentos. No entanto, foi essa mesma dificuldade que o fez criar uma técnica totalmente nova, pela qual ganhou notoriedade e através da qual conseguiu expressar a revolta e o protesto que desejava. As esculturas em ferro e madeira, ornadas com elementos de sucata e até com cabeças e ossos de animais mortos, foram o pulo do gato de um artista que precisava de um jeito novo de se expressar, mas que tinha pouco dinheiro para bancar essa expressão em materiais nobres. Foi dessa ideia de juntar ferro e madeira que nasceu a mais conhecida e numerosa das séries, Os Guerreiros. Criados em meados dos anos 1960 como um grito silencioso contra a ditadura militar, os guerreiros atravessaram boa parte da carreira de Xico e foram a empreitada de maior sucesso comercial do artista,
Com ferro e madeira também foram esculpidos animais, especialmente touros, figuras femininas e conjuntos de cavaleiros e cavalos. Já consagrado e com um pouco mais de dinheiro para investir, Xico voltou ao bronze para alcançar patamar artístico mais elevado com trabalhos figurativos, em especial a série Gabirus. “Com as magrinhas e, especialmente, com os Gabirus, ele sai do universo onírico dos guerreiros e retorna às raízes realista e expressionista para encarar de frente um país atormentado, com tamanha desigualdade capaz de produzir corpos humanos depauperados pela fome, como os gabirus. É uma série grandiosa, que acontece justamente em um momento em que a moda, no Brasil, é a arte que discute a si própria, seus mecanismos e suas questões. Poucos artistas atingiram um nível tão alto de realização”, comenta o crítico de arte, curador e professor da Universidade de São Paulo, Agnaldo Farias.
Além de ter conseguido viver da arte, luxo do qual ainda hoje poucos artistas plásticos desfrutam, Xico Stockinger teve papel decisivo no desenvolvimento das artes plásticas no Rio Grande do Sul, fora do eixo Rio-São Paulo. Chegado de fora e tendo convivido com artistas e intelectuais enquanto viveu no Rio de Janeiro, Xico aterrissou em Porto Alegre oxigenando o ambiente cultural local, inovando no fazer artístico e atuando institucionalmente na consolidação do sistema da arte, dirigindo instituições como a Associação de Artes Plásticas Chico Lisboa e o Margs.
“É importante lembrar que Srockinger fez isso sem aderir às novas correntes que estavam em ebulição no País, como a arte abstrata, por exemplo. Ele tinha um compromisso de dar lastro à tradição, sempre imprimindo o seu olhar e se sotaque pessoal”, destaca o diretor do Margs e crítico de arte, Francisco Dalcol. Formar novas gerações de público e artistas e repactuar a relação do público com a obra de gente como Xico Stockinger é, segundo Dalcol, o maior desafio deste centenário. O crítico Agnaldo Farias ressalta ainda que o artista está desvalorizado e marginalizado, já que o público tem acesso a algumas obras públicas e aos acervos dos museus. O restante está desaparecido em coleções particulares. “A idade tem que garantir que o trabalho dele se perpetue, para que ele possa influenciar as novas gerações de apreciadores e de artistas plásticos.”
ARTE NAS FORMAS DA NATUREZA
Doente cardíaco, Xico Stockinger fez algumas cirurgias para colocação de pontes de safena. Durante a recuperação de uma dessas cirurgias, contraiu hepatite pós-operatória e precisou ficar em repouso. Como ele próprio gostava de contar, tentou ler a obra de Dostoievski, mas acabou considerando a própria “fossa” ainda maior do que a depressão dos personagena do escritor russo. Decidiu então ler sobre catos. Leu tudo o que pôde encontrar sobre as plantas e acabou um dos maiores especialistas no assunti. Chegou a ter uma coleção com mais de mil espécies e batizou três delas, descobertas e catalogadas por ele.
Produtivo, nunca cansou de estudar e pensar sobre formas, texturas e materiais. Considerava que o artista precisava encontrar o assunto para se expressar. Viu suas esculturas ganharem o mundo em Bienais e eventos de arte, além de ser presença garantida em galerias que ainda hoje mantém as peças valorizadas no complexo mercado de artes visuais. “Abrimos nossa galeria com uma exposição do Xico, o que nos deu muita sorte. Vendemos bem, o que nos permitiu seguir e ampliar as operações. Até hoje temos Stockinger no catálogo e sempre há procura”, afirma a galerista Tina Zappoli, de Porto Alegre.
Generoso era outro adjetivo atribuído ao artista. No Ateliê Livre, ensinou escultura e xilogravura para muita gente. Em seu ambiente de trabalho, recebia aprendizes eventualmente. Eloisa Tregnago, a sua mais longeva aluna, conta que fez um curso de modelagem, no Margs, realizado em conjunto por Xico e Vasco Prado. Ao final, foi fazer estágio no ateliê da Vila Nova, onde viu aflorar seu estilo artístico. “Nos tornamos parceiros de escultura e de arte, nos ajudávamos, mas preservando cada um o seu estilo. E fazíamos muita coisa juntos também. O exemplo mais marcante é a escultura de Drummond e Mario Quintana, na Praça da Alfândega, que assinamos juntos”, lembra Eloisa.
Certeira, a doença coronariana levou Xico Stockinger aos 89 anos, enquanto dormia. Ele foi velado no salão principal do Margs. Ao seu redor, além da família e dos muitos amigos, o maior dos seus guerreiros, que ele próprio havia doado ao museu meses antes. O fotógrafo Luiz Eduardo Achutti lembra que fez as últimas fotos dele vivo. “Essas imagens expressam a nossa convivência durante o trabalho para o livro”, afirma. Parte do trabalho de Achutti para o livro A MATÉRIA ENCANTADA pode ser visto em algumas das fotografias que ilustram esta reportagem.
Fonte: Jornal do Comércio/Caderno Viver/Patrícia Lima/Jornalista, especialista em Estudos de Jornalismo pela UFSC e mestre em Literatura pela UFRGS, em 03/03/2019.