TOURO INDOMÁVEL
A maior retrospectiva de Pablo Picasso no país em mais de uma década permite vislumbrar como os eventos pessoais e a personalidade flamejante do espanhol influenciaram, para o bem e para o mal, as transformações de sua arte.
O homem com barba vetusca tasca u beijaço em uma mulher de olhar desvairadamente triste. Em O BEIJO, produzido quando o pintor espanhol Pablo Picasso (1881-1973) já era quase nonagenário, a boca do homem e a da mulher devoram-se em traços convulsivos. A tela, surge lá pelo final do generoso apanhado de 153 itens distribuídos em ordem mezzo temática, mezzo cronológica na exposição PICASSO: MÃO ERUDITA, OLHAR SELVAGEM, que esteve em cartaz, no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, em maio de 2016. No juízo que sempre prevaleceu entre os críticos, a tela é exemplar típico de uma fase tardia e menor, quando nem a crueza sexual disfarçava o labirinto de autocomplacência em que o pintor mais famoso do século XX se enfurnara com prazer. Mas, para além do julgamento estético, O BEIJO prova que Picasso chegou ao fim da carreira ainda mergulhado na contradição que seria o combustível de uma obra fundamental para quem deseja compreender a arte e o espírito de seu tempo. Pois Picasso foi co o um ser de duas faces condenadas a um eterno beijo: impossível separar o hedonista cafajeste que usava as pessoas (notadamente, as mulheres) para alimentar sua segunda face, a do artista egocêntrico mas melancólico, solitário e fixado na ideia da própria morte.
A maior retrospectiva de Picasso no país em mais de uma década – que deverá passar também pelo Rio de Janeiro ainda neste ano (2016) – oferece uma janela indiscreta para flagrar as tensões entre os dois lado desse Dr. Jekyll e Mr. Hyde do modernismo. O acervo vem do Museu Picasso, instituição parisiense que abriga 5.000 obras e dezenas de milhares de peças de memorabilia da coleção pessoal do pintor. Tudo isso foi doado por sua família ao Estado francês como forma de abater impostos de transmissão de herança. Sediado em um prédio elegante no bairro do Marais, o museu de Paris foi reaberto em 2014, após uma reforma que se arrastou por cinco anos e terminou em barraco: sua antiga diretora, Anne Baldassari, foi demitida em razão de denúncias de má gestão e abuso de poder. Com o fim da crise, o mundo voltou a ter acesso a um museu que oferece a possibilidade de conhecer Picasso, mestre cuja obra é indissociável da personalidade flamejante, por uma perspectiva mais íntima. Lá estão, afinal, as obras que o artista quis conservar consigo.
Amostra brasileira atesta as surpresas que se podem extrair desse baú dos “Picassos de Picasso”. As pinturas que ele produziu na juventude confirmam a noção muito propalada de que, aos 12 anos, o virtuose já desenhava como o renascentista Rafael Sanzio. A obra mais antiga da exposição, um retrato de um anônimo, foi executada quando ele era pouco mais velho que isso e bebia da escola naturalista espanhola. Entre os Picassos precoces há flertes com o impressionismo e com a paleta emocional de um Van Gogh. A sombra do mestre holandês aparece, aliás, na pequena mas impressionante tela A MORTE DE CASAGEMAS, de 1901. nela, Picasso retrata um amigo que cometeu suicídio. Em vida, o pintor nunca quis exibir em público a figura com rosto verde funesto e a marca de um tiro na têmpora. Depois de perder o amigo, Picasso mergulharia em sua melancólica fase azul – que hoje vale uma grana preta e à qual pertence outra obra marcante da exposição, RETRATO DE UM HOMEM.
É também em um retrato – mas dele próprio – que se detecta o ponto exato em que Picasso desencadeia o abalo sísmico que mudaria os rumos da arte. Ao representar a si mesmo com o peito desnudo, os olhos pretos mas vazios, cores e contornos primitivistas, o artista desfere aquilo que o historiador inglês Simon Schama descreveu como “um gesto de econômica poesia”: driblando séculos de pintura acadêmica e cerimoniosa, fez o moderno brotar diretamente do arcaico - “como se entre uma coisa e outra tivesse existido nada muito digno de nota”, diz Schama.
Digna de espanto, de fato, é a constatação de que Picasso empreendeu sua revolução artística tão cedo: na altura do autorretrato, o espectador mal terá começado o tour pela retrospectiva. Só então virá a seção devotada às experimentações cubistas, que coroaram sua condição de arauto da modernidade e abriram caminho para ele se tornar um milionário com pouco mais de 30 anos. Mas falar em cubismo – grosso modo, a decomposição das imagens em unidades geométricas e planos chapados, antecipando a arte abstrata – é reduzir um movimento cheio de nuances que dão arrepios de prazer nos teóricos da arte. Ensina a curadora Emilia Philippot: “O cubismo puro durou pouco. Em seguida, vieram os cubismos analítico, hermético, sintético e cristal”. Captaram? Bem, “pura” ou não, a tela HOMEM COM GUITARRA, de 1911, é um belo exemplo dessa fase.
A trajetória de Picasso é um compêndio dos “ismos” da arte moderna. O pintor farejava a direção dos ventos e saltava de estilo em estilo sem parecer oportunista ou sem timing. Se sua criatividade se mostrou resiliente por tanto tempo, foi graças à excitação genuína e à capacidade de manter certo pé atrás em relação aos estouros de boiada típicos dos modismos na arte. Funcionava mais ou menos assim: Picasso lançava a onda e, quando todos corriam atrás, saía de fininho à procura da próxima novidade. Flertou com temas mitológicos, touros e minotauros sem cruzar a linha que separava o interesse pelo arcaico do neoclassicismo kitsch. Também atacou de surrealista, mas não assinou o manifesto do movimento.
Paradoxalmente, Picasso alcançou seu auge e selou sua decadência ao abraçar uma tentação que sempre evitou: colocar a arte a serviço da política. Para ele, a missão do artista não era espelhar a humanidade por meio de seu trabalho, mas simplesmente pintar. A tragédia da Guerra Civil espanhola, contudo, levou-o a promover uma alteração radical de rota: com sua denúncia da barbárie do conflito, o imenso painel GUERNICA, de 1937, se tornaria sua obra máxima. É, sem dúvida, uma das maiores representações da bestialidade da guerra. Mas Picasso se deixou inebriar. Convertido em comunista festivo – festivo para os padrões da nomenklatura –, passou o resto da carreira oscilando entre o proselitismo político e a ostentação de seus eternos dotes de garanhão latino.
Picasso conduzia assuntos de alcova cinismo sádico. Trocava de mulher como trocava de estilo. E adorava ver as amantes se humilharem. A fotógrafa Dora Maar conquistou o direito de posse temporária sobre Picasso após sair aos tapas e puxões de cabelo com a então titular, Marie-Thérèse Walter, no ateliê em que ele pintava Guernica. Além de travar essa guerra feroz paralela à retratada na pintura, Dora fez fotografias memoráveis de Picasso trabalhando. Talvez nunca antes na história um artista tenha tido seu processo de criação tão bem documentado. Sob a imagem viril que emerge nessas , poderia haver um artista melancólico. Mas que a vida do touro indomável era bem animada, ninguém duvida.
Fonte: Revista VEJA/Sergio Martins em 25/05/2016