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Educação com Comunicação e sem Violência
Educação com Comunicação e sem Violência

Educação com comunicação e sem violência: parentalidade positiva propõe ambiente de diálogo na criação dos filhos
Modelo baseado no respeito e no acolhimento ganha espaço entre as famílias


“Educar é ensinar com criatividade, persistência e exemplo.” A frase estampada em um pequeno quadro azul entre a sala e a cozinha é um dos indicativos da forma com que Heitor Coronet Junior, 43 anos, e Gerusa Costa Gonçalves, 46, decidiram criar suas duas filhas. Os acordos e a gestão dos conflitos envolvendo Mariana e Cecília são feitos na base do diálogo, sempre em tom respeitoso e acolhedor, nunca utilizando violência física ou verbal.

 

Depois que Cecília nasceu, há sete anos, os pais buscaram orientação profissional para lidar com o ciúme por parte da primogênita, Mariana, 10. Assim foram apresentados formalmente à parentalidade positiva, um modelo de criação baseado no respeito e no acolhimento à criança, sem o uso de nenhum tipo de violência. Apesar dos desafios diários, ambos garantem que essa forma de educar melhora a relação familiar e os aproxima mais das meninas.

 

O conceito de parentalidade positiva é debatido há muito tempo por especialistas da área da psicologia, mas o uso do termo vem ganhando força mais recentemente, devido ao avanço dos conhecimentos sobre o desenvolvimento infantil.

 

 

No documento “O Cuidado Integral e a Parentalidade Positiva na Primeira Infância”, desenvolvido pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) Brasil, a parentalidade é definida como as interações, emoções, crenças, atitudes, práticas, conhecimentos e comportamentos dos pais associados à prestação de cuidados integrais aos filhos.
— É o conjunto de ações e valores que vão além dos cuidados básicos. A parentalidade consiste em pequenas ações diárias, como brincar, conversar, demonstrar afeto. E exercer a disciplina positiva é fazer com que a criança desenvolva sua autonomia e entenda seus limites, sem violência física ou psicológica — resume a oficial de Primeira Infância do Unicef no Brasil, Maíra Souza.

 

A psicóloga e pedagoga Daia Duarte lembra que o exercício da parentalidade refere-se ao indivíduo que já está mais desenvolvido emocionalmente e se propõe a apoiar e facilitar o processo de desenvolvimento do outro ser humano. Já a palavra “positiva” diz respeito ao fato de que não há uma hierarquia na relação, onde os conhecimentos, crenças e modo de viver dos adultos são impostos às crianças.
– A parentalidade é positiva ao existir uma horizontalidade na relação. O adulto vai comunicar à criança os caminhos mais seguros para facilitar o seu desenvolvimento. Não tem punição, violência ou imposição do modo de ver o mundo – explica a especialista em neurociências.

 

Daia ressalta que as crianças ainda se desregulam emocionalmente por diferentes motivos e fazem as típicas “birras” para expressar suas emoções. A diferença entre a parentalidade positiva e a antiga forma de educar as crianças está na maneira como o adulto lida com essas situações:
– Antes a criança era contida fisicamente ou também muito adjetivada com termos pejorativos. Hoje, quando ocorre o mesmo e os adultos exercem a parentalidade positiva, o primeiro passo é buscar entender o que está sentindo diante da cena, e não projetar. Vai reconhecer que o deixa irritado e envergonhado, mas vai isolar isso, porque precisa se equilibrar e atender a criança na sua necessidade.

 

Nesse processo, todos os envolvidos vão aprendendo e reconhecendo os sinais que antecedem o evento – o que pode ajudar a evitar situações semelhantes futuramente, já que o adulto pode adotar um comportamento preventivo.

 

Reflexos de um passado mais agressivo
No exercício da maternagem ou paternagem, as pessoas deparam com situações em que o corpo reage à emoção e leva a um ato. E aí se flagra no meio do exercício de uma violência e isso gera uma grande angústia e desconforto. É nesse momento que as famílias chegam e aí eu os convido a pensar de que outras formas poderiam ter agido ou como agiriam com outro adulto. (Daia Duarte-psicóloga e pedagoga)

Para Daia, o aumento na procura por orientações parentais está relacionado a uma maior consciência dos tipos de violência contra as crianças, mesmo que muitos ainda sejam suavizados ou normalizados pela sociedade. O professor dos Programas de Pós-Graduação em Psicologia e em Medicina da PUCRS Ângelo Brandelli Costa alerta que, apesar das inúmeras campanhas sobre o tema, muitas pessoas acreditam que a forma correta de educar os filhos é por meio da palmada ou outras formas de punição física. Por isso, chama a atenção para as estatísticas de maus-tratos.

 

De acordo com o último Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicado no ano passado, 22.527 menores de idade foram vítimas de maus-tratos em 2022, o que representa um aumento de 13,7%, na comparação com 2021. Outras 15.370 crianças e adolescentes sofreram lesão corporal no contexto de violência doméstica, enquanto 10.227 foram vítimas de algum tipo de abandono.

 

A lei 13.431/2017, que estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência, aponta a existência de cinco tipos de violência: física, psicológica, sexual, institucional e patrimonial. A física é entendida como qualquer ação que ofenda a integridade ou saúde corporal ou que cause sofrimento físico à criança e ao adolescente. Já a psicológica abrange qualquer conduta de discriminação, depreciação ou desrespeito, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, agressão verbal e xingamento, ridicularização, indiferença, exploração ou intimidação sistemática, que possa comprometer seu desenvolvimento psíquico ou emocional.
— No exercício da maternagem ou paternagem, as pessoas deparam com situações em que o corpo reage à emoção e leva a um ato. E aí se flagra no meio do exercício de uma violência e isso gera uma grande angústia e desconforto. É nesse momento que as famílias chegam e aí eu os convido a pensar de que outras formas poderiam ter agido ou como agiriam com outro adulto – relata a psicóloga.

 


Muitas das atitudes que os pais tomam em relação aos filhos são uma reprodução da forma como foram criados, afirma Daia. Essas experiências servem justamente para que pensem sobre o que querem replicar ou não. A especialista ressalta, contudo, que não existe jeito certo ou errado para educar uma criança, mas alguns modelos podem fazer mais sentido para aquela família:
— É o exercício diário que vai levá-los a construir novas experiências. O instinto humano é buscar algo familiar, aquilo que já é feito, mas aí tem que olhar de fora, racionalizar. Claro que no início vai ser difícil, mas as experiências dão mais conhecimentos para que possa fazer de novo, de uma maneira mais leve.
Mesmo não existindo um manual, há estratégias que geram vínculo mais forte e maior interação entre pais e filhos, tendo influência na prevenção da violência, aponta Maíra. O modelo Conforte pode ser definido como uma dessas abordagens que podem ser adotadas pelas famílias, já que traz ações que podem ser utilizadas no dia a dia com as crianças, a fim de estabelecer momentos acolhedores e a disciplina positiva.

 

Nesse contexto, há também um projeto de lei que institui a parentalidade positiva e o direito ao brincar como estratégias para prevenção à violência contra crianças. O PL 2.861/2023, que foi aprovado pelo Senado e remetido à sanção presidencial em 29 de fevereiro deste ano, confere ao Estado, à família e à sociedade o dever de promover o apoio emocional, a supervisão e a educação não violenta aos indivíduos de até 12 anos. O prazo para que seja avaliado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva vai até a próxima quarta-feira (21/3).


Os impactos da relação com os pais na vida adulta
Os especialistas ressaltam que o modelo de criação ao qual a criança é submetida gera impactos em sua vida adulta e em toda a sociedade. Conforme a oficial de Primeira Infância do Unicef no Brasil, não há como ser determinista sobre o tipo de reflexo que as ações terão, mas já está estabelecido que fatores promotores de estresse tóxico são nocivos para o desenvolvimento.
— Isso ocorre quando a criança vive em situação estressante ou traumática, em um contexto em que o adulto não está disponível para amortecer esses impactos. E isso tem um reflexo muito grande no sistema nervoso, porque os mecanismos de alerta estão sempre ativados, então deixam de desenvolver a aprendizagem e o raciocínio para desenvolver sistemas de proteção — comenta Maíra Souza.

 

Casos de maus-tratos na infância também estão muito associados a problemas de saúde mental, como ansiedade e depressão, acrescenta Ângelo Brandelli Costa. O professor aponta ainda que diferentes estudos mostram que uma criação baseada na punição e no autoritarismo faz com que as pessoas reproduzam essas práticas, gerando uma sociedade baseada na busca por controle e na imposição de ideias, que acaba buscando por representantes que pensem da mesma forma.

 

É importante destacar que o fato de não exercer a parentalidade positiva não significa que aqueles pais serão obrigatoriamente agressivos com os filhos. Da mesma forma, os especialistas ressaltam que o modelo não é sinônimo de permissividade. Maíra Souza diz que também há quem considere a não violência quase uma submissão à criança, mas lembra que existem diferentes perfis parentais.

 

O documento desenvolvido pela entidade apresenta quatro estilos: permissivo, ausente, autoritário e participativo ou autoritativo.


• O permissivo está relacionado aos pais que são excessivamente tolerantes e estabelecem poucas regras e limites aos filhos.
• O ausente refere-se aos responsáveis que se concentram mais em suas próprias necessidades do que nas de seus filhos e são considerados pouco presentes na vida das crianças, demonstrando baixo nível de suporte e disciplina.
• O autoritário é caracterizado por pais que são rígidos, controlam e avaliam o comportamento do filho conforme regras de conduta estabelecidas, demonstram pouco afeto e utilizam a punição para controlar a criança.
• Já o participativo ou autoritativo está relacionado aos responsáveis que estabelecem regras, orientam de forma clara os comportamentos, valorizam os esforços, respeitam a individualidade da criança, possuem uma comunicação aberta, compreensão e empatia, e oferecem suporte emocional aos pequenos.

— Sabemos que todo excesso pode ser prejudicial, então é importante ter esse meio termo, usar uma comunicação não violenta e entender as fases do desenvolvimento infantil. A criança testa os limites porque está aprendendo, ainda não consegue lidar com as frustrações. Por isso falamos que é importante impor limites e explicar por que algo não é desejado – aponta Maíra.

 

A prática da parentalidade positiva gera uma série de desafios para os pais, mas geralmente o sofrimento materno em relação à criação dos filhos é maior, destaca Priscila Cunha, psicóloga clínica e orientadora parental em educação positiva. Isso faz com que grande parte de suas orientações seja para mulheres que buscam mais recursos.

— A principal justificativa para esse movimento é ter vindo de uma educação tradicional, que a deixou com vários traumas. A mãe chega com uma situação específica com o filho, mas averiguamos que há problemas de comunicação e com violências, como palmadas, gritos e castigos, que são coisas que funcionam na hora para parar a criança, mas não ensinam valores a longo prazo — ressalta.

 

Muitas vezes, o fato de a mãe optar sozinha pela parentalidade positiva causa conflitos em casa. As mulheres acabam ficando solitárias e tentando educar de forma mais afetiva e respeitosa, enquanto os pais querem ser mais firmes e castigar. Por isso, Priscila busca explicar que, mesmo que tenham opiniões diferentes, os responsáveis precisam fazer algumas combinações para agir de forma mais uniforme e, assim, conseguir que a criança de sinta acolhida, segura e integrada na família.

 

Essa discordância se estende a outros familiares – especialmente avós –, que se opõem ao modelo adotado pelos pais. Em função disso, muitos acabam se afastando dos parentes e dos amigos:

— Às vezes os avós ficam críticos com seus filhos. É quase como se a gente sofresse preconceito e como se a sociedade toda ficasse sempre questionando o nosso modelo. É um movimento social e vai levar um tempo até que todos se adaptem. Sabemos que ainda não se consegue viver a educação positiva dos livros, mas trabalhamos com redução de danos.

 

Heitor e Gerusa contam que já passaram por situações assim, mas garantem que não se arrependem de utilizar esse modelo para criar as duas filhas. Natural de Porto Alegre, a psicopedagoga explica que Mariana e Cecília nasceram quando ainda moravam em São Paulo. Logo após a chegada da caçula, a família decidiu voltar para o Rio Grande do Sul para ter uma maior rede de apoio.

 

A procura por orientação parental ocorreu antes da pandemia, quando perceberam uma mudança no comportamento da primogênita em função do ciúme. Entretanto, Gerusa afirma que sempre buscou se informar sobre métodos de criação e educação dos filhos. O contato com outras mães de primeira viagem, logo após o nascimento de Mariana, também ajudou nisso.
– Eu fui criada de uma maneira não muito tradicional. Tinha castigo, às vezes uma chinelada, mas meus pais não eram super-rígidos, sempre foram muito carinhosos. A busca foi muito por essa questão de ter duas filhas, como lidar e ter uma educação mais respeitosa. Eu me preocupava muito com isso: não queria ser agressiva, mas precisava impor limite, então queria saber como ter um equilíbrio para educar com uma visão diferente – justifica.

 

Sabemos que todo excesso pode ser prejudicial, então é importante ter esse meio termo, usar uma comunicação não violenta e entender as fases do desenvolvimento infantil. (Maíra Souza-Oficial de 1ª Infância do UNICEF no Brasil)

Para Gerusa, o modelo trouxe vários ensinamentos, como a necessidade de ter momentos únicos com cada uma, não comparar as irmãs, deixar de utilizar a palavra “castigo”, pedir desculpas às filhas quando comete algum erro e tentar não se envolver quando há algum atrito entre elas — parte que considera a mais difícil. Entre as estratégias usadas por ela e Heitor, estão: separar um momento para se acalmar antes de continuar a conversa, mudar o interlocutor e falar abertamente com as crianças. Os pais consideram que o maior aprendizado que a parentalidade positiva trouxe foi o respeito.
— Aqui procuramos dialogar, e não brigar. Isso é uma máxima que falamos muito. Se está irritado, vai para o canto e depois conversa. Claro que aos poucos elas estão aprendendo a se autoregular, é um caminho longo. Mas tu pode ser gentil e ser firme, eu respeito e também quero ser respeitada. Criamos regras que elas ajudaram a estabelecer e, assim, respeitam bem mais – comenta a psicopedagoga.

 

Já para Heitor, a parte mais desafiadora do processo é controlar a ansiedade e entender que o resultado é muito bom, mas não é imediato. O bancário ressalta que já percebem mudanças significativas no comportamento de Mariana e que isso é fruto de uma construção a médio prazo.De acordo com o pai, o fato de conversar abertamente com as meninas, explicando os motivos pelos quais determinadas decisões foram tomadas é algo muito positivo:
— Isso me aproximou muito delas. As duas são curiosas, gostam de conversar, então o diálogo flui. Sempre tivemos esse diálogo, mas, quanto mais tu dialoga, mais tu te aproxima das crianças. E é uma troca, permite que a criança aprenda e os pais também.

 

Fonte: Zero Hora/Jhully Costa/15/03/2024