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Uma Nova Velha Infância
Uma Nova Velha Infância

 

UMA NOVA VELHA INFÂNCIA

 

Especialistas se dividem quando o assunto é substituir livros comuns por tablets na hora de ler para as crianças

 

O cachorrão da história Clifford, O Gigante Cão Vermelho fica lindo no iPad. E também tem um som ótimo basta tocar na tela para que ele comece a arfar quando o caminhão azul aparece na cena. Lá vai o caminhão!, vibra o narrador. Mas será que isso conta como hora da história? Ou será só um momento para os pequenos brincarem com os tablets? É uma pergunta que pais, pediatras e pesquisadores tentam responder agora que os livros infantis, assim como quase todos os outros, estão migrando para a mídia digital.

Durante anos, especialistas em desenvolvimento infantil vêm aconselhando os pais a lerem para os filhos com frequência, citando estudos que mostram os benefícios linguísticos, verbais e sociais da atividade. Em junho, a Academia Americana de Pediatria passou a orientar os médicos a indicar que os pais leiam para as crianças desde o nascimento, prescrevendo livros com o mesmo entusiasmo com que indicam vacinas e verduras. Por outro lado, a entidade não recomenda o uso de monitores ou telas para crianças de até dois anos, e não mais do que duas horas de tablets ou computadores por dia para as mais velhas.

Em uma época em que ler cada vez mais significa navegar por um dispositivo e lojas de aplicativos estão estourando com programas de leitura e jogos educativos destinados a bebês e crianças em idade pré-escolar, qual a orientação que os pais devem seguir? De acordo com pesquisadores, a resposta ainda não está totalmente clara.

– Sabemos como as crianças aprendem a ler, mas não sabemos como esse processo será afetado pela tecnologia digital – afirma Kyle Snow, diretor de pesquisa aplicada da Associação Nacional de Educação Infantil.

Parte do problema é que esses dispositivos são muito recentes: tablets e leitores eletrônicos não são usados há tempo suficiente para que um estudo estendido possa revelar seus efeitos na aprendizagem. Pediatra que definiu a política de junho para o grupo de Pediatria, Pamela High garante que os livros eletrônicos foram intencionalmente deixados de lado:

– Tentamos fazer uma declaração baseada em evidências sobre a questão da leitura iniciada o mais cedo possível e realmente não há dados sobre e-books.

Mas muitos estudos recentes sugerem que ler para uma criança utilizando um dispositivo eletrônico enfraquece a dinâmica que auxilia no desenvolvimento da linguagem.

– Há uma série de interações quando você lê um livro para seu filho; você vira as páginas, aponta para as imagens, comenta a história. Isso se perde um pouco quando o e-book é utilizado – acredita a pediatra.

Em um estudo de 2013, pesquisadores descobriram que crianças com idades entre três e cinco anos cujos pais leem para eles em um livro eletrônico tinham uma compreensão menor do conteúdo da leitura do que as crianças cujos pais usam livros tradicionais. E afirmaram que, em parte, a razão disso é que pais e crianças usando um dispositivo eletrônico gastam mais tempo prestando atenção ao objeto em si do que à história (uma conclusão compartilhada por pelo menos dois outros estudos).

– Os pais literalmente seguravam as mãos das crianças e diziam: “Espere, não aperte o botão ainda. Vamos terminar isso aqui primeiro” – confirma Julia Parish-Morris, psicóloga do desenvolvimento do Hospital Infantil da Filadélfia e principal autora do estudo que foi realizado na Universidade Temple em 2013.

Os pais que usaram livros convencionais estavam mais propensos a se envolver no que pesquisadores de educação chamam de “leitura dialógica”, o tipo de conversa vai-e-vem sobre a história e sua relação com a vida da criança, que a pesquisa mostrou ser fundamental para o desenvolvimento linguístico infantil. Outro complicador é que não há muitos e-books infantis que podem ser estritamente descritos como livros, dizem pesquisadores. A tecnologia evolui, e os editores cada vez mais adicionam atrativos que acabam fazendo os pequenos leitores perderem o foco.

– Estamos realmente interessados na leitura que incentiva a conversa – diz Kathy Hirsh-Pasek, professora de Psicologia da Temple e coautora do estudo de 2013. – Mas se o livro tem distrações que interrompem a conversa, como um jogo que aparece bem no meio da história, então não há as mesmas vantagens do livro tradicional.

 

  

BABÁS DE UMA GERAÇÃO

 

Obviamente, os desenvolvedores de aplicativos e e-books apontam a interatividade como uma vantagem educacional, não uma distração. Para eles, muitas das adições proporcionadas – como o latido de Clifford, a narração sonolenta de um livro para dormir, o aparecimento da palavra “presunto” quando a criança toca na imagem de um em aplicativo, por exemplo – ajudam na aquisição da linguagem.

Há algumas evidências que suportam tais argumentos, pelo menos em relação às outras tecnologias. Um estudo realizado pela Universidade de Wisconsin em 2013 descobriu que crianças de dois anos aprendem palavras mais rapidamente quando utilizam um aplicativo interativo do que um que não solicite nenhuma ação. Mas quando se trata de aprender a língua, dizem os pesquisadores, não há tecnologia que substitua um instrutor em carne e osso – mesmo que a criança pareça estar prestando atenção.

Diretora do Instituto de Aprendizagem e Ciências do Cérebro da Universidade de Washington, Patricia K. Kuhl conduziu um estudo em 2003 que comparou um grupo de bebês de 9 meses de idade com quem um instrutor falava em mandarim a um outro grupo que ouvia mandarim em um DVD. As crianças em um terceiro grupo foram expostas apenas ao inglês (sua língua nativa).

– Pelo jeito como as crianças olhavam a tela, parecia óbvio que elas aprenderiam melhor com os DVDs, mas os exames e testes de linguagem revelaram que o grupo do DVD não aprendeu absolutamente nada – explica Patricia. – Suas medidas cerebrais eram iguais às do grupo de controle que só havia sido exposto ao inglês. O único grupo que aprendeu foi o grupo de interação ao vivo.

Em outras palavras, o ato de falar com elas, não só fazê-las ouvir, é que ensina a linguagem às crianças. Hoje, a descoberta de Patricia Kuhl é comumente chamada de efeito “Baby Einstein”, nome da série de vídeos que enfeitiçou as crianças da década de 1990 até meados da década de 2000, mas que no fim acabou mostrando uma associação negativa com o desenvolvimento da linguagem em crianças. Em 2009, a Walt Disney Co., enfrentando a ameaça de uma ação coletiva, ofereceu restituições aos que compraram os vídeos.

Da mesma forma, talvez a maior ameaça representada pelos e-books que contam a história para as crianças ou oferecem jogos é que eles poderiam fazer os pais abdicarem de suas responsabilidades educativas, acredita Kyle Snow, da Associação Nacional para a Educação Infantil:

– Os e-books podem se tornar as babás dessa geração. Não queremos que os pais digam: “Não há razão para eu ficar aqui virando páginas e dizendo ao meu filho como ler uma palavra, porque meu iPad já faz isso”.

 

Fonte:  Jornal Zero Hora - Revista Donna de 02/11/2014