DISCORDAR PARA CRESCER
Respeito à diferença e incentivo à argumentação contribuem para o desenvolvimento dos filhos.
* “A família, na configuração que for, é a base socializadora de um indivíduo. É onde ele vai começar a aprender a dialogar. A família vai formando a identidade, o indivíduo vai se descobrindo através da fala do outro. Aquele outro pensamento desacomoda, faz repensar o seu posicionamento. É importante que existam essas discordâncias.”
Maria Isabel Wendling
Psicóloga e Terapeuta de família
* “Aprender a interagir, buscando entender e dialogar com o que nos é diferente, possibilita a formação de vínculos mais genuínos, de uma sociedade mais tolerante e, consequentemente, menos violenta. Tudo isso começa pelas relações familiares.”
Angela Helena Marin
Doutora em Psicologia
* “A criança a quem tudo é negado vai ser tão infeliz quanto aquela a quem tudo é permitido. Os excessos não vão dar uma direção. A criança precisa de norte e precisa aprender a fazer escolhas. Não temos tudo o que queremos nunca. Não se pode fazer tudo na vida.”
Gisleine Verlang Lourenço
Psicóloga e psicoterapeuta
Pense em uma definição de família. Se a sua concepção é a de um conjunto harmonioso de pessoas parecidas não só no físico, mas também no comportamento, no pensamento, nos valores e nas escolhas, é provável que você tenha de abrir espaço para uma reflexão. Claro que a convivência pacífica é almejada e saudável, imprescindível para o desenvolvimento dos filhos, mas as diferenças devem ser valorizadas e preservadas.
Em entrevista a Zero Hora publicada no caderno DOC da edição de 30 e 31 de março, o psicanalista e escritor Contardo Calligaris proferiu uma frase instigante: “(…) A família não foi criada para ser um lugar em que todos concordam com todos. Ao contrário, a família, como cada um sabe, foi inventada para ser um lugar em que todo mundo discorda. Por isso, ela eventualmente é interessante e educativa”.
A pedido de ZH, profissionais da área de psicologia comentaram a declaração e falaram a respeito de outros tópicos importantes sobre a criação dos filhos. Maria Isabel Wendling, psicóloga, terapeuta de família e professora do curso de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), concorda com Calligaris, argumentando que é a partir das discordâncias que as pessoas começam a refletir mais. Se todos pensarem o tempo inteiro da mesma forma, não se acrescenta o novo, a dúvida, ocorrendo apenas a repetição indefinida dos mesmos padrões – estes, muitas vezes, disfuncionais. Discordar, destaca Maria Isabel, abre a possibilidade de se colocar no lugar do outro, de se abrir para uma ideia distinta, para algo que até então a pessoa não tinha pensado. A dissensão, enfim, abre caminho para a diversidade.
- Com pontos de vista com os quais pode até não concordar, você vai estar ensinando o respeito ao diferente. De alguma forma, aquele outro pensamento desacomoda, faz repensar o seu posicionamento. Isso é fundamental. A família, na configuração que for, é a base socializadora de um indivíduo. É onde ele vai começar a aprender a dialogar. A família vai formando a identidade, o indivíduo vai se descobrindo através da fala do outro. É importante que existam essas discordâncias – comenta a psicóloga.
Como primeiro grupo social no qual a pessoa se insere, a família tem como principais responsabilidades garantir a proteção e o cuidado de seus membros e transmitir padrões e normas da cultura, explica Angela Helena Marin, doutora em Psicologia, pesquisadora e professora dos cursos de graduação e pós da Unisinos. É claro que, pontua Angela, não é o que ocorre em todos os grupos familiares, devido a vulnerabilidade de distintas ordens. Ao longo do desenvolvimento, interagiremos com vários outros grupos, que também influenciarão nosso modo de agir e pensar.
- Para que a família promova o desenvolvimento de seus membros, é necessário o incentivo à autonomia. Nesse processo, à medida em que cada um assume características individuais, pode haver crises, que, em vez do que costumamos pensar automaticamente, são salutares e possibilitam o amadurecimento a partir das mudanças que propiciam. Uma das funções educativas da família é possibilitar que essas crises sejam vivenciadas – afirma Angela.
As diferenças podem surgir no que se refere ao dia a dia doméstico, ao noticiário da TV, aos planos para férias, ao modo de vestir, aos posicionamentos políticos – o pai pensa de uma maneira, a mãe de outra, e os filhos, bem mais jovens, seguem uma terceira linha. O enriquecimento advém do respeito e da possibilidade de aceitação dessas dessemelhanças, reforça Angela.
- Como sujeitos, temos especificidades, o que se costuma conceituar de subjetividade, que nos faz pensar e agir de formas distintas. Desde a formação, as famílias conjugam diferenças, pois reúnem pessoas com histórias diversas, provenientes de outros grupos que também tinham suas especificidades. Aprender a interagir, buscando entender e dialogar com o que nos é diferente, possibilita a formação de vínculos mais genuínos, de uma sociedade mais tolerante e, consequentemente, menos violenta. Tudo isso começa pelas relações familiares.
INFLUÊNCIA FAMILIAR E PENSAMENTO AUTÔNOMO
Também é importante pensar nas aspirações dos adultos em relação aos filhos. Os pais veem a prole, diz Maria Isabel, como algo seu, uma projeção sua e do que eles gostariam de ser e não foram. Mas “filho é para o mundo”, como se repete tanto por aí. A psicóloga ressalta que é preciso entender que aquilo que oi ensinado para o filho ficou internalizado, e uma boa criação também incentiva a autonomia, o pensamento independente, a crítica e a chance de construir a própria vida.
- Os pais devem acreditar que o filho pode voar, seguir outro caminho que não necessariamente o que eles acham melhor. Isso mostra o quanto o filho consegue tomar essas decisões por conta dele, isso é maturidade. Tem filhos adultos dependendo dos pais para tomar decisões, e isso dificulta os relacionamentos. Com o casamento, o cônjuge, que é alguém que vem de fora, se não pensar como essa família, talvez acabe caindo fora. Ou talvez aquele filho acabe pensando que tenha que escolher (entre a família de origem e a nova família que está formando). E a ideia não é essa. Deve-se entender o ponto de vista dos outros – orienta Maria Isabel.
A escolha profissional, em diversos casos, ainda sofre forte influência familiar. Muitas vezes, o filho é induzido a suceder ao pai ou a mãe à frente da empresa ou do consultório, uma obrigação que poderá significar frustração no que diz respeito à realização pessoal.
- esse direcionamento é, algumas vezes, desejado pelos filhos, em função da identificação e da valorização do papel social exercido. Não tomo como um problema os filhos optarem por assumir a mesma profissão dos pais, desde que sejam eles a fazer essa escolha – pondera Angela.
O pensamento autônomo deve ser incentivado desde a infância. Nas mais corriqueiras situações cotidianas, é possível incentivar a criança a começar a pensar de maneira independente. Maria Isabel sugere que o pai e a mãe questionem os pequenos sobre o dia na escola, a interação com os amigos, as atividades realizadas, permitindo que eles expressem sua opinião. Quanto às emoções, da mesma forma: se há choro ou birra, o adulto deve acolher a criança e questioná-la sobre o que ela está sentindo.
- Deve haver liberdade dentro de casa para ser ouvido e não ter medo de se expor – define Maria Isabel.
Quando chega a adolescência, é natural que passem a ocorrer mais questionamentos por parte do adolescente. Ele está formando sua identidade e vai se opor a questões familiares como forma de se autoafirmar. É importante deixar as características identitárias dos filhos aflorarem, para que eles possam se encontrar.
- Os pais devem fazer uma reflexão, entender que os filhos são diferentes, são histórias diferentes. Os filhos não precisam ser cópias dos pais para serem bons ou terem sucesso. Os pais devem poder conviver e até aprender. Aprendemos muito com os filhos – diz Maria Isabel.
Entram na categoria das questões inegociáveis tudo que envolver exposição a riscos de qualquer ordem, como contato com substâncias que provoquem dano ou risco à saúde, iniciação sexual precoce e desprotegida e envolvimento com práticas ilícitas, entre outras. Quanto a temas polêmicos, ensina Maria Isabel, o pai e a mãe têm de se manifestar:
- O pai pode ser amigo, mas primeiro ele é pai. É legal quando os pais são próximos dos filhos, mas primeiro eles são pai e mãe. Eles têm que se posicionar: “Eu não quero que você beba”, “Acho errado você usar isso”. É preciso poder falar disso em casa, sem tantos tabus, senão o jovem vai pegar informação de outros lugares e com outras pessoas. Coloque-se à disposição para se posicionar, mostre os perigos, as consequências.
“VOCÊ É VOCÊ, SEU AMIGO É SEU AMIGO”
Pais e mães, em algum momento, serão confrontados com argumentos do tipo “Ah,mas na casa do Fulano pode!”. Ao reivindicar suas vontades, crianças e adolescentes costumam apelar para os exemplos que os rodeiam, vigentes nas famílias dos colegas e amigos: horário para dormir ou para sair da festa, tempo para jogar videogame, permissão para comer doces ou tomar refrigerante. Para a psicóloga e psicoterapeuta Gisleine verlang Lourenço, professora da Universidade La Salle, é fundamental que existam regras em cada núcleo familiar para que os filhos se sintam seguros. As normas quanto ao comportamento doméstico, social e escolar devem ser claras: o que pode e o que não pode?
- As regras não podem variar de acordo com o humor dos pais. É importante dizer que as regras são para proteger, para amparar, e não por raiva ou como castigo. Regra é uma riqueza afetiva da infância e da adolescência com amor, é um cuidado – afirma Gisleine.
Existem famílias que enfrentam grande dificuldade para impor limites, mas não se pode abrir mão deles. O limite, frisa Gisleine, ensina a diferença entre fantasia e realidade, ajudando na construção do “si mesmo” e na diferenciação entre o “si mesmo” e o outro.
- “Você é você, seu amigo é seu amigo. Isso é o melhor para você.” Aí entram as crenças e os valores. A criança a quem tudo é negado vai ser tão infeliz quanto aquela a quem tudo é permitido. Os excessos não vão dar uma direção. A criança precisa de norte e precisa aprender a fazer escolhas. Não temos tudo o que queremos nunca. Não se pode fazer tudo na vida – continua a psicoterapeuta.
Durante a infância, a criança aprende muito por meio das brincadeiras. Erguer um simples castelo de areia na beira da praia pode se mostrar uma bela lição sobre como encarar frustrações. Se o castelo não ficou tão alto e exuberante quanto ela queria e acabou desmoronando muito antes do previsto, o que se pode tirar dessa singela experiência? Como aprender com os erros? Faltou molhar e compactar mais a areia? A construção precisava de uma base maior?
- Ela tem que aprender a lidar com o fazer de novo – assevera Gisleine.
Com adolescentes, ensina a psicóloga, é importante não estabelecer uma relação autoritária e impositiva. Prefira a conversa, para o bem de todas as partes. Gisleine também reforça a importância de um investimento continuado na educação. Há pais, atesta, que dão muita atenção em determinada fase da vida e depois não se mantêm nessa mesma linha.
- É importante o investimento na primeira infância. O adolescente depende da riqueza afetiva de ter tido uma infância amorosa. Na adolescência, a angústia é maior, vêm as ansiedades referentes às mudanças, eles estão em um momento de transformação no corpo e na mente, é uma fase de mistério e mais ansiedade – constata a professora.
O PAPEL DA CONVERSA
Cultive o hábito do diálogo com seu filho desde a infância, respeitando os limites de entendimento de cada fase. Estimule-o a falar e se abrir quando algo o incomodar. Se ele estiver aborrecido ou começar a chorar, questione-o, de acordo com a situação. “O que você está sentindo?”, “Quer conversar agora sobre isso?”, “Quer colo?”.
Incentive a criança a manifestar opinião sobre os mais diversos acontecimentos da rotina em casa e na escola. Pergunte como foi o dia, o que ela achou das atividades, peça que faça um relato dos principais momentos vivenciados ao lado dos colegas e dos professores. Valide as respostas que receber, estimulando a continuidade da conversa: “Que legal a sua ideia”, “Eu não tinha pensado nisso ainda!”, “Você pensou isso a partir do. quê?”, “Me conta um pouco mais!”
Lembre-se sempre: é muito melhor iniciar os bons hábitos o mais cedo possível, ainda na infância, do que tentar estabelecer algo quase forçado ou artificial na adolescência, uma fase bastante delicada do desenvolvimento. Mostre que você sempre está aberto ao diálogo. Se seu filho chegar em casa brabo ou triste e se trancar no quarto, controle a ansiedade e não insista para saber o que houve, especialmente diante de repetidas negativas dele. Aguarde o melhor momento. Frise que você continuará disponível.
O adolescente testa muito os pais – para ver até onde pode ir e também para descobrir se pode contar com eles. Se o pai e a mãe se afastam demais ou se dão um “gelo” no filho, isso certamente será notado e lamentado, já que ele ainda precisa do suporte dos adultos. A medida ideal é a moderação: não seja nem invasivo, nem ausente.
Exercite, em casa, a formação do posicionamento crítico. O noticiário do jornal ou da televisão pode render uma boa pauta para conversa. Ao debater determinados assuntos e externar sua opinião, cada um estará contribuindo . para a construção da diversidade. Quanto mais aberto o diálogo, maior é o incentivo à formação da capacidade de argumentação.
Respeitando os espaços do seu filho, você estará, ao mesmo tempo, passando a seguinte lição: é fundamental respeitar o espaço e a individualidade do outro.
Fonte: Zero Hora/Caderno Vida-Em Família/Larissa Roso (larissa.roso@zerohora.com.br) em 21/04/2019