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Nossas Crianças, As Melancólicas
Nossas Crianças, As Melancólicas

NOSSAS CRIANÇAS, AS MELANCÓLICAS

 

Especialistas na área da infância alertam os pais: o excesso de cuidados com os filhos, de vontades atendidas e de atividades na agenda (a dos grandes e a dos pequenos) pode estar criando uma geração incapaz de exercitar a criatividade, manifestar desejos e lidar com frustrações.

 

Quebra-cabeças, bonecas, miniaturas de super-heróis, jogos de memória e de montar, ursos de pelúcia – o quarto está lotado de brinquedos. – Escolhe – pede o adulto.  Diante de uma oferta numerosa de opções, a criança não consegue decidir.  Responde entediada:  - Tanto faz.

 

Se a resposta não for explícita, permitindo que ela especifique o que quer fazer ou que improvise no tempo livre, é comum que não saiba como agir.

 

É típico da criança desejar, sonhar, criar, fantasiar, mas características dos tempos atuais parecem estar colocando em risco essas habilidades e permitindo situações como a que acaba de ser descrita.  Se em outras épocas as crianças já foram mais reprimidas e pouco ouvidas, hoje, em muitas famílias, a educação dos filhos parece mirar o outro extremo: excessivamente atendidas em suas vontades, imersas em uma agenda repleta de compromissos e cercadas por uma abundância de objetos que nem conseguem dar conta de retirar das caixas e aproveitar, meninos e meninas, alertam especialistas, podem estar se tornando melancólicos.

 

Comumente interpretada como tristeza, a melancolia é mais do que isso.  Trata-se de um estado de indiferença, desinteresse, suspensão do desejo.  Aos olhos desses pequenos, tudo se equivale, nada tem graça ou parece valer o investimento.  São crianças que não toleram a falta e se frustram com facilidade.  Conduzidas de um lado a outro sem ter um momento para exercitar a criatividade e pensar no que gostariam de fazer, elas são tomadas por apatia.

 

Some-se a isso o esforço dos pais em poupar os filhos das perdas e dos aborrecimentos inerentes à esfera familiar e ao mundo que os cerca, inventando justificativas para mascarar a verdade ou blindando-os contra as cenas mais amargas – a morte de um animal de estimação, a separação do casal, a mudança de bairro ou escola por conta dos altos custos, a visão do pedinte maltrapilho na sinaleira.  O resultado é que as crianças acabam por habitar um mundo irreal, estéril, pobre em experiências e sensações, onde não é possível testar as ferramentas psíquicas fundamentais para que possam amadurecer e enfrentar os reveses da existência.

 

A tentativa de reorientar essas práticas depende de uma ampla reflexão.  Para começar, Julieta Jerusalinsky, psicanalista membro do Centro Lydia Coriat e da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa), propõe a desconstrução de uma imagem forte e arraigada: a da infância que se resume a um período de felicidade plena e constante, imune a dissabores.  Trata-se de idealização, ilusão, aponta ela.  Como em qualquer outra fase, os primeiros anos reservam suas parcelas de bons e maus momentos.  Há de se abrir espaço para tristezas, perdas, frustrações.  Os percalços não podem ser ignorados, “pulados”, como se não fossem vistos, sendo encobertos rapidamente por uma distração ou um presente.  Atrair a atenção da criança para outro lado não faz com que a dor desapareça.

- Elaborar uma tristeza é o que permite que a gente não se melancolize.  Se não encontramos no outro os recursos para isso, vamos ficando anestesiados e mortificados.  Esse é o paradoxo: justamente ao tentar evitar toda e qualquer tristeza é que se pode acabar empurrando alguém para a melancolia – explica Julieta.

 

A psicanalista ressalta que não se trata de exaltar o passado e demonizar os padrões vigentes.  Cada tempo tem suas peculiaridades – e o atual, acelerado cobra o seu preço. Ainda que nem se dar conta, os adultos estão repassando o modelo de comportamento e valores a que estão submetidos.  Ao cumprir rotinas em que os períodos de trabalho e descanso estão cada vez mais fundidos, quase uma mistura indistinta, e quando nenhuma atividade parece ser importante o suficiente para impedir que o toque do celular interrompa, eles impõem aos filhos o mesmo ritmo.  Sobrecarregadas, as crianças são alvo permanente de uma série de estímulos.  Além do turno regular na escola e dos deveres de casa, elas frequentam aulas de idiomas, dança e esportes, comparecem a festinhas de aniversário, acompanham os pais ao supermercado, à pet shop, ao salão de beleza e muitas vezes até o escritório.  No final de semana, é hora de aproveitar bem o tempo livre – a ânsia é tamanha que a folga se transforma em um rol infindável de afazeres.  Sábado e domingo viram um check-list de divertimentos.  Dias tão abarrotados se esvaziam de significação porque faltam horas livres para dar conta de questões essenciais.  Julieta reflete:

- Vivemos uma época em que todos estão muito assaltados pela apreensão imediata do acontecimento, mas na vida é preciso também ter tempo e espaço para elaborar o que nos acontece: os acontecimentos tristes que nos afligem e também aquilo que é prazeroso.  Não basta ver um filme, preciso ver um filme e poder conversar com o outro sobre o que nesse filme nos afetou.  Não basta fazer uma viagem e tirar uma quantidade infindável de selfies, é preciso poder falar do que a gente gostou, do que não gostou.  A vida implica uma elaboração das vivências para que elas se tornem experiências, e isso passa pela alegria e pela tristeza.  Não é fazer uma apologia da tristeza, mas é elaborando certos acontecimentos tristes que podemos dar lugar à complexidade do que é viver e, assim, tornar os acontecimentos da vida transformadores.

 

Os pais, muitas vezes sentindo-se culpados por estarem ausentes, na tentativa de poupar e compensar os filhos escorregam para o excesso de satisfações.  Apelam, com frequência, a dois recursos: a mentira e a pronta reposição.  Tome-se o exemplo da morte de um animal doméstico.  Em vez de contar que o mascote não resistiu aos ferimentos causados por um atropelamento, dizem que “ele quis ir embora”. Na cabeça da criança, essa versão pode dar impulso a uma série de questionamentos: “Foi embora por quê? Ele não gostava de viver aqui? Não se sentia cuidado por nossa família?”.  No caso de um carrinho que caiu no chão e quebrou, pode parecer mais fácil – e mais eficiente para cessar a choradeira – descartar o item avariado e comprar um novo.

- Em vez de representar a falta e elaborar a dimensão da perda, quando entramos com a criança na via de restituição do objeto, ou na via de esquivar o acontecimento doloroso, nós a empurramos para uma situação muito pior, porque não compartilhamos com ela os recursos que permitem elaborar as perdas e as faltas, e isso cria uma fragilidade psíquica muito maior – comenta Julieta.

 

A psicóloga Aidê Knijnik Wainberg, especialista no atendimento a crianças, adolescentes, adultos e famílias, destaca que também é frequente a substituição em outros níveis: em vez de escutar e acolher, os adultos compram algo que possa representar um alívio.

- Não é por mal nem por descaso, mas compensar a tristeza é um dos maiores erros que os pais cometem.  A menina chega em casa e diz “briguei com a fulana”.  A mãe: “Não fica mal, nós vamos lá no shopping comprar uma boneca”.  É uma troca que não ajuda a criança.  Ela precisa da presença da mãe e do pai, precisa deles disponíveis, precisa que compreendam o que está acontecendo com ela, que tenham empatia com o sentimento dela, que ajudem a nomear e a entender o que está sentindo.  “Olha, eu imagino o quanto você está triste, quando eu era criança também acontecia isso, conta pra mim, me abraça, dá um beijo” – diz Aidê. – Os pais muitas vezes se assustam porque não lidaram ou não sabem lidar com as suas tristezas.  Sempre é difícil abordar a dificuldade com o filho, em qualquer etapa – reconhece.

 

Em mais de três décadas de prática clínica, Aidê percebe diferenças dentro e fora do consultório.  Hoje o pai, de forma geral, é mais assíduo: acompanha as crianças nas consultas, envolve-se mais com o tratamento.  Antes, essas eram atribuições quase exclusivas da mulher, enquanto o homem se ocupava do trabalho.  Segundo Aidê, há um melhor entendimento do que se passa com o filho, ainda que os pais tenham dificuldades para lidar com isso na prática.

- Eu cansava de ouvir: “Me criei lá fora, não tinha nada disso de psicológico”.  Era muito comum a não compreensão.  Ainda existe, mas bem menos.  Existe mais vontade de entender o sentimento da criança, valorizar mais essa parte emocional.  Os pais estão acreditando mais na possibilidade de a criança ser alguém que também sofre – relata.

 

Essa disposição para ajudar é bem-vinda frente a outro aspecto do cenário contemporâneo.  Aidê observa que a infância está mais exposta à violência em diversos ambientes.  Os papeis de homens e mulheres se equilibraram – antes mais submetidas a eles, elas agora partem para o embate se ocorrem desavenças.  Na prática, criam-se mais conflitos, bate-bocas, animosidade, e a criança é contaminada pelos problemas da família.  Para além das fronteiras domésticas, existem a violência e a sensação crescente de insegurança.  Ainda que não tenham presenciado um episódio de assalto ou arrombamento, por exemplo, as crianças absorvem o clima geral de medo assistindo ao noticiário ou ouvindo a conversa dos adultos.

 

Aidê utiliza um exemplo pessoal para ilustrar uma das mudanças sentidas com o decorrer dos anos.  Morando em uma residência do bairro Petrópolis, em Porto Alegre, ela permitiu que a filha, quando era menor, ficasse livre para brincar e andar de bicicleta com os amigos da vizinhança – saía depois do almoço e voltava no final da tarde, sem temores.  Agora, ao recepcionar a neta de seis anos, no mesmo endereço – com a diferença de que há grades cercando o terreno –, Aidê é confrontada com a inquietação da menina: “Vó, vamos fechar as janelas para não entrar ladrão?”.

- Ela nunca teve experiência de violência, é só  que houve por aí.  Antes, as crianças se viravam mais sozinhas, tinham mais espaço. Fomos nos enjaulando. Hoje há uma perda de espontaneidade, são crianças mais contidas – analisa a psicóloga. – Não podemos assustá-las, mas também temos que trabalhar com a realidade.  Não podemos fazer a criança viver num mundo irreal, dizendo que não existe violência.  É difícil, há uma linha muito tênue.

 

Ainda que em áreas mais limitadas e premidas pela sucessão de tarefas, as crianças precisam brincar.  É essencial que consigam criar um ambiente propício à fantasia, para exercitar a manifestação de desejos e vontades e desatar os nós das complexidades que enfrentam no dia a dia – um exercício saudável “antimelancolia”.  Longe de ser um passatempo pacato, a brincadeira tem enredos que simulam tragédias, privações, dramas.  Mas, para praticar essa capacidade de inventar, as crianças necessitam de um certo vazio.  Julieta Jerusalinsky diz que a atividade fantasiosa deve, de certa forma, ser precedida por “o que nós vamos fazer agora?”.  Se há sempre alguém orientando todas as atividades, restringe-se a dimensão imaginativa.  Para o psicanalista argentino Luciano Lutereau, professor da Universidade de Buenos Aires, o tédio vem sendo encarado como um dos males mais temidos, o que leva os adultos a tentar preencher qualquer intervalo de tempo dos pequenos:

- Na tradição ocidental, o tédio e o aborrecimento não representaram apenas um tempo perdido, mas também uma passagem para a lucidez e a criação.  A sociedade contemporânea baseada na agilidade, esquece que o homem é a projeção no mundo da sua capacidade de invenção, e isso se reflete na infância como uma perda crescente da experiência lúdica.  A brincadeira antes de ser uma atividade, é uma ação que a criança inventa repetidas vezes.

 

Ao se abordar a tristeza e a melancolia, é importante diferenciá-las da depressão, mal-entendido bastante comum.  Episódios pontuais de tristeza são normais e esperados.  O aluno com dificuldades de aprendizagem pode ficar triste e estressado nos dias que concentram as provas finais, receoso de obter notas ruins, mas o humor deve melhorar na semana seguinte.  A criança que fez algo errado e é punida com um castigo que limita suas atividades também poderá padecer de uma tristeza pontual.  Segundo o psiquiatra e psicanalista Nilson Sibemberg, deve-se estar atento ao conjunto de sintomas que se prolongam.

- Se a criança fica dois, três meses sentindo tristeza, chorando, irritada, sem dormir bem, sem se alimentar bem, sem investir nos objetos e na vida, sem sair com os amigos, aí começo a me preocupar – exemplifica Sibemberg, membro da Appoa e integrante da equipe clínica do Centro Lydia Coriat.

 

Para Sibemberg é necessário repensar o que vem sendo demandado da infância atualmente.  As crianças são solicitadas a responder com perfeição às altas expectativas nutridas pelas famílias.  Se o estudante vai mal em matemática e pega recuperação, a preocupação de pais e professores extrapola para outras áreas, e logo se começa a procurar, em avaliações com diferentes profissionais, o que pode haver de errado com ele.

- A criança não pode falhar.  Diante dessa impossibilidade da falha, que é inevitável, porque não há criança perfeita, cresce todo um processo que a empurra para a medicalização, a busca de uma causalidade orgânica que a leva a muitas consultas médicas.  Aí ela entra no campo da medicina, e surge o processo de hipermedicação – afirma o psiquiatra. – A criança fica identificada numa posição de doente porque vive algo que é próprio do sujeito, que é a falta.  Não somos perfeitos, vivemos em falta, somos incompletos.  Se buscamos contornar essa incompletude do ponto de vista médico, isso que é impróprio do sujeito começa a ser visto como um problema, uma doença.  Isso acontece com frequência, e o pior é que muitas vezes a demanda não é da família, é da escola – completa Sibemberg.

 

Pais sempre tentam fazer o melhor que podem, enfatiza Julieta.  A psicanalista explica que não se trata de ter respostas prontas para tudo – as questões, além de serem muitas, vão mudando ao longo das diversas fases do desenvolvimento.  Mais do que isso, o importante é poder escutar o que os filhos dizem, partindo então para uma construção conjunta com eles.  O melhor a fazer é compartilhar experiências e impressões, inclusive a respeito do que não se sabe.  Julieta recorda de um quadro que adornava sua casa na infância – acompanhava a figura de um macaco a seguinte inscrição: “Quando eu aprendi todas as respostas da vida, mudaram todas as perguntas”.

- Ser pai e mãe consiste menos em saber as respostas de antemão e mais em interrogar-se – define a psicanalista.

 

“Em vez de representar a falta e elaborar a dimensão da perda, quando entramos com a criança na via de restituição do objeto, ou na via de esquivar o acontecimento doloroso, nós a empurramos para uma situação muito pior, porque não compartilhamos com ela os recursos que permitem elaborar as perdas e as faltas, e isso cria uma fragilidade psíquica muito maior.” Julieta Jerusalinsky/Psicanalista

 

“Antes, as crianças se viravam mais sozinhas, tinham mais espaço.  Fomos nos enjaulando.  Hoje há uma perda de espontaneidade, são crianças mais contidas.  Não podemos assustá-las, mas também temos que trabalhar com a realidade.  Não podemos fazer a criança viver num mundo irreal, dizendo que não existe violência.  É difícil, há uma linha muito tênue.” Aidê Knijnik Wainberg/Psicóloga

 

“A criança não pode falhar.  Diante dessa impossibilidade da falha, que é inevitável, porque não há criança perfeita, cresce todo um processo que a empurra para a medicalização, a busca de uma causalidade orgânica que a leva a muitas consultas médicas.  Aí ela entra no campo da medicina, e surge o processo de hipermedicação.  A criança fica identificada numa posição de doente, porque vive algo que é próprio do sujeito, que é a falta.  Não somos perfeitos, vivemos em falta, somos incompletos.” Nilson Sibemberg/Psiquiatra e psicanalista

 

ENTREVISTA:

LUCIANO LUTEREAU / Psicanalista, pesquisador e professor da Universidade de Buenos Aires

 

“O MAIS IMPORTANTE NA VIDA DE UMA CRIANÇA É TER COM QUEM BRINCAR.” 

Doutor em Filosofia e psicologia, o psicanalista argentino Luciano Lutereau, pesquisador e professor da Universidade de Buenos Aires, afirma que a melancolia sempre esteve associada à infância, mas reconhece que hoje essa condição se faz mais presente.  O autor do livro O IDIOMA DAS CRIANÇAS lamenta que a brincadeira perca espaço para passatempos que são simples entretenimento, como videogames e outros atrativos tecnológicos, o que acarreta um prejuízo à capacidade de elaborar conflitos – As crianças estão mais expostas à melancolia já que não têm como reparar aquilo que as faz sofrer – explica Lutereau.

 

 

Os adultos têm enfrentado dificuldades para lidar com alguns sentimentos das crianças, como a tristeza, a raiva, a frustração?

Sem dúvida. Hoje nos encontramos com uma particular intolerância a respeito das emoções das crianças.  Uma ideia própria da psicanálise, a de que a criança cresce através dos conflitos, é abandonada diante da expectativa de que ela sempre deve estar alegre.  O imperativo do bem-estar, estendido à infância, leva o adulto a se assustar e a não saber como agir em situações normais, como as que demonstram a presença, na criança, de um sentimento de culpa inconsciente: por exemplo, as crianças são tachadas de instáveis ou impulsivas, quando esses estados expõem um traço particular do desejo infantil, o desejo de ser castigado.  Um grande problema do nosso tempo é a intensa vigilância da infância em função de padrões adaptativos, como rendimento escolar, hábitos de higiene e costumes, e não baseada em seus próprios critérios de crescimento.

 

 

Em um artigo sobre a melancolia infantil, você escreveu que “começamos a temer o tédio como o mais urgente de todos os males e, no caso das crianças, nos preocupa muito mais que tenham algo para fazer do que pensar na plenitude do que fazem”.  Pode falar um pouco mais sobre isso?

Hoje em dia, parece muito mais importante ter uma vida exitosa do que uma vida autêntica.  Dito de outra maneira, a sociedade contemporânea se baseia no efeito e não tanto no sentido.  Desde muito cedo, as crianças são incluídas em práticas que ocupam o seu tempo, sem que isso implique uma “temporalização”.  Quando o tempo não está “ocupado”, elas se sentem vazias e se aborrecem.  Pedem para ser estimuladas.  Inclusive os pais planejam suas viagens de férias considerando lugares que tenham recreação para seus filhos.  Na tradição ocidental, o tédio e o aborrecimento não representaram apenas um tempo perdido, mas também uma passagem para a lucidez e a criação.  A sociedade contemporânea, baseada na agilidade, esquece que o homem é a projeção no mundo da sua capacidade de invenção, e isso se reflete na infância como uma perda crescente da experiência lúdica.  A brincadeira, antes de ser uma atividade, é uma ação que a criança inventa repetidas vezes.  A brincadeira é o modo como a criança se inclui em um tempo próprio, e não uma temporalidade objetiva que prejudica o seu desenvolvimento.

 

 

Que tipo de mensagem o intenso consumismo de nossa época pode estar transmitindo às crianças?

O consumismo não tem mensagem, é uma ordem vazia de acumulação, de posse e descarte.  O principal problema da atitude consumista é quando não se vincula apenas a objetos, mas também a pessoas.  Desde pequena, a criança pode se acostumar a tratar os outros como descartáveis e as relações humanas como recicláveis e sem profundidade.  O capitalismo atual é muito diferente daquele que se seguiu à Revolução Industrial.  A sociedade pós-moderna não é utilitária, mas cínica, e este cinismo pode atingir as crianças se não levarmos em conta o importante papel da educação.  Por exemplo, alguém poderia dizer a uma criança que ela não deve roubar porque pode ser presa, e isso não é mais do que um conselho prático.  Na realidade, o fundamental é ensinar que ela não deve roubar porque assim prejudicará alguém.  À moral de conveniência de nosso tempo, é preciso voltar a se opor uma ética da lei.

 

 

Por que a tristeza da criança é diferente da tristeza do adulto?

Porque nas crianças a possibilidade de perda é muito mais angustiante.  Um adulto já está preparado para fazer uma relação entre o que se perde e o que permanece, através do luto, mas a criança costuma dramatizar essas perdas como absolutas.  Além disso, a perda na infância pode acarretar um intenso sentimento de culpa – a criança acredita que fez algo errado ou foi má.  A maneira como os adultos devem lidar com a tristeza das crianças é no sentido de reduzir o sentimento de culpa, permitindo que a brincadeira seja uma via de exploração das fantasias que as afligem.  Esse território intermediário oferecido pela ficção, entre o interno e o objetivo, permite que a criança veja que seus temores não são tão intensos e que, além disso, são passageiros.  E também que ela pode compartilhá-los com o outro sem ter medo de represálias.  O mais importante na vida de uma criança é ter com quem brincar.

  

Fonte:  ZeroHora/Larissa Roso / larissa.roso@zerohora.com.br em 02/10/2016.