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A Nova Desigualdade é a do Pensamento
A Nova Desigualdade é a do Pensamento

A NOVA DESIGUALDADE É A DO PENSAMENTO

A nova alfabetização é a da atenção e o professor ampliado é o guardião do tempo lúcido em meio ao ruído infinito

 

O privilégio do futuro não será ter tempo livre. Será ter tempo lúcido.

 

Enquanto alguns compram silêncio, foco e retiros de meditação, milhões vivem com a atenção sequestrada. Notificações. Telas. Urgências não solicitadas e mal compreendidas. A desigualdade deixou de ser apenas econômica e se tornou cognitiva. Uma divisão entre quem ainda consegue pensar com calma e clareza e quem vive exausto demais para isso.

 

No século passado, a desigualdade era medida em patrimônio, bens e educação. Hoje, ela também está aqui: Você consegue passar um dia inteiro sem checar notificações? Ler cinquenta páginas seguidas de um livro denso? Sustentar um pensamento reflexivo e profundo sem distrações? A nova ostentação não é ter. É conseguir se desconectar. É ter quietude, inclusive mental, e saber apreciá-la.

 

Os dados revelam que a desigualdade cognitiva se alimenta da econômica. Segundo a Common Sense Media, crianças de famílias de baixa renda passam quase duas horas a mais por dia diante de telas. Isso não é coincidência; é o resultado de um sistema onde pais com jornadas longas, menos acesso a atividades culturais e menor poder de compra encontram nas telas a solução mais acessível. Entre adolescentes dos EUA, o CDC identificou que cerca de 27% daqueles com quatro ou mais horas diárias em telas apresentaram sintomas de ansiedade, e 26% sintomas de depressão. Essa diferença já se traduz em lacunas de linguagem, desenvolvimento cognitivo e atenção. A capacidade de pensar com clareza e autonomia, que deveria ser um direito universal, virou privilégio herdado.

 

O problema não é a tecnologia, e sim quem tem acesso ao seu melhor uso. Há uma distância crescente entre quem usa a IA para pensar melhor e quem a usa para não precisar pensar. Quando a inteligência artificial vira atalho, o cérebro terceiriza o esforço. Pensar se torna opcional. O maior risco é uma geração que acessa qualquer resposta, mas desaprendeu a formular boas perguntas.

 

escola está no centro dessa encruzilhada. Ela sempre foi o espaço onde aprendemos a decantar o mundo, transformar informação em conhecimento, conhecimento em sabedoria. Mas, agora, o ruído é tão alto, que até o silêncio precisa ser ensinado.

 

É aqui que entra o professor ampliado. Ele não compete com a tecnologia, mas a utiliza para ampliar sua própria inteligência. Ele é o guardião da atenção coletiva. Cria zonas de presença num mundo que tenta dissolver todas. Ensina a pensar com calma, a sustentar o tédio, a resistir à ditadura da pressa produtiva. E ensina que refletir é um ato político. Que pensar com calma virou resistência.

 

Num mundo de conteúdo infinito, o papel do educador não é mais transmitir o que já está disponível, mas ajudar a construir critérios. A alfabetização do século 21 não é só a das letras. É, também, a da atenção. Ensinar a ler e ensinar a ler o mundo é, hoje, ensinar a não se perder.

 

A nova desigualdade, portanto, não está limitada ao que temos ou deixamos de ter. É o quanto conseguimos estar inteiros no que fazemos. É quanto tempo e mente cada um ainda pode dedicar ao que realmente importa.

 

Talvez o papel mais urgente da escola hoje seja este: o de devolver às pessoas o direito de pensar com profundidade e autonomia. De questionar o óbvio. De sustentar uma ideia até o fim. Num tempo em que todos são bombardeados por informações, a verdadeira desigualdade está entre aqueles que sabem usar o silêncio e aqueles que têm medo dele.

 

Fonte: Zero Hora/Rafael Parente em 16/10/2025