COM A PALAVRA: RAQUEL TEIXEIRA
Secretária Estadual de Educação, 76 anos – Ex-deputada federal pelo PSDB, foi secretária de Educação em Goiás antes de aceitar o convite de Eduardo Leite no Rio Grande do Sul
O FOCO É O COMBATE À DESIGUALDADE
Com uma trajetória profissional que envolve atuações como professora universitária, pesquisadora, deputada federal, conselheira e secretária em dois Estados brasileiros, Raquel Teixeira levou 30 anos para conhecer a realidade do Ensino Básico. Desde então, se apaixonou — diz que o comando da pasta de Educação, para o qual foi reconduzida no dia 1º de janeiro no Rio Grande do Sul, é seu cargo preferido na vida. Para os próximos quatro anos, a goiana promete priorizar a alfabetização e a ampliação do Ensino Médio em tempo integral durante sua gestão. Nesta entrevista, concedida em seu gabinete na secretaria, defende como principal bandeira a redução da desigualdade entre alunos de escolas públicas e privadas, por meio da formação de professores e de uma aprendizagem personalizada.
A senhora fez quase toda a sua carreira, como educadora e, depois, como gestora pública, em Goiás. Por que aceitou vir para o Rio Grande do Sul? Como tem sido essa experiência?
Comecei a minha carreira profissional na universidade. Aos 21 anos, fui aprovada em um concurso e me tornei a professora mais jovem da Universidade de Brasília (UnB). Lá, fui professora por 10 anos e fiz o meu primeiro mestrado. Depois, fiz um segundo na Universidade da Califórnia (EUA), onde fiquei cinco anos, e também, anos depois, fiz um PhD. Em 1999, fui candidata a reitora na Universidade Federal de Goiás e perdi a eleição. Ao perder, fui convidada a ser secretária da Educação. Então, isso começou muito tarde na minha vida: só depois de mais de 30 anos na universidade, conheci a rede da Educação Básica. E aí fiz um mea-culpa. Como eu fico esse tempo todo na universidade e não conheço a rede de Educação Básica? E resolvi me dedicar a essa rede. Fui secretária de Educação duas vezes em Goiás, depois secretária de Ciência e Tecnologia, deputada federal, com atuação na Comissão de Educação, integrante do Conselho Nacional de Educação. Isso me permitiu passagens por vários aspectos da educação. Mas, de tudo o que fui na vida, o que me dá prazer é ser secretária de Educação. Tenho um compromisso que fiz comigo mesma, quase uma missão. Vim pela educação pública básica, que é o único caminho para transformar este país. Acredito firmemente nisso e provavelmente vou estar com cem anos de idade e trabalhando com crianças de escola pública.
Quais as diferenças nas redes de Goiás e Rio Grande do Sul?
A primeira coisa que estranhei foi uma desigualdade entre as redes privada e pública. Em Goiás, as redes são mais próximas, em termos de desempenho dos alunos. Aqui, temos uma desigualdade muito grande dentro da própria rede estadual. Por exemplo, se você vai a uma escola do bairro Moinhos de Vento e a outra do Partenon. No Moinhos, os pais têm 16 salários mínimos, em média, e só há 0,3% de pessoas analfabetas. No Partenon, a renda média dos responsáveis pelos domicílios é de três salários mínimos e há quase 4% de analfabetismo. Essa diferença tem reflexo direto no desempenho dos alunos, que você vê nos resultados do Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica). A literatura internacional fala que o Aspecto mais importante para o resultado da aprendizagem do aluno é o nível socioeconômico da família e, principalmente, o nível de escolaridade da mãe. Meu grande desafio é não permitir que um aluno que nasça no Moinhos de Vento tenha uma escola melhor do que aquele que nasce no Partenon. O foco, a partir deste ano, é o combate à desigualdade. É a equidade. Equidade é isso: você conseguir ter resultados iguais com públicos diferentes, porque o que interessa é a aprendizagem. Potencial de aprendizagem toda a criança tem. Mas não é culpa do professor, porque não existe culpa isolada. Eu me responsabilizo por isso. O sistema educacional, enquanto sistema, foi incapaz de dar às crianças as condições que elas têm de aprender.
Como dar essas condições?
Há um conjunto de fatores que fazem com que uma criança aprenda, e todos nós temos responsabilidade. Não é só o professor, o diretor, o pai, a mãe, o coordenador regional. Desde que cheguei aqui, a gente trabalhou muito essa ideia da coesão sistêmica. Meu mantra é aquele ali (aponta para um quadro na parede): "Nenhum de nós é tão bom quanto todos nós juntos". Não adianta uma escola ser boa: todas têm que ser boas. Agora, a gente está entrando no nível de individualização, personalização, e nós temos dados para isso. As avaliações (diagnósticas) que fizemos permitem uma devolutiva em que cada professor, hoje, tem os dados de desempenho de todos os seus alunos nominalmente. Uma coisa que nós trabalhamos muito no ano passado é um sentimento de valorização da avaliação da aprendizagem como parte da rotina escolar. Avaliação não é um episódio em que a secretária manda aplicar uma prova um dia e acabou. Avaliação é um ciclo. Envolve um processo de mensuração, que é a aplicação da prova, depois exploração, compreensão e análise de todos os dados, e, após isso, há ainda um período de ação, com a intervenção pedagógica que faremos na sala de aula com cada aluno a partir dos resultados da avaliação dele.
Qual o objetivo desse investimento em avaliações?
Um sistema robusto de avaliação funciona como um Waze: onde eu estou? Sem saber de onde parto no início de cada ano, não tenho como chegar nos objetivos, mesmo que saiba onde quero chegar. A Base Nacional Curricular Comum (BNCC) é isso. Ela diz: o aluno de segundo ano, em língua portuguesa, ao final do ano tem que ter determinadas habilidades e competências. Ao saber onde estou, tenho a oportunidade de discutir como chego lá. Por isso estamos discutindo a formação dos professores, que é definir, a partir dos dados da avaliação, qual o melhor caminho e quais as metodologias que permitirão chegar lá, porque claramente aquela metodologia tradicional da aula expositiva já era. Está provado: em uma aula expositiva, em que o professor aparece como o dono do conhecimento e, de forma autoritária, hierárquica, passa a aula para o aluno, menos de 10% aprendem. É por isso que hoje a gente fala nas metodologias ativas, em que o aluno se envolve mais. Se a mente do aluno não está ativamente envolvida no processo, ele não vai aprender. Mas tudo isso é muito novo, e os professores não aprenderam isso na faculdade. As formações iniciais, com raras exceções, continuam teóricas, acadêmicas, sem prática docente, então esse é um problema. Aí, na falta da formação inicial, sobre a qual não tenho ingerência, eu invisto na formação continuada. É um trabalho monstruoso, e os professores, às vezes, têm excesso de formação. Não é um momento fácil, porque estamos vivendo uma mudança profunda na legislação, que implica em mudanças metodológicas, tecnológicas, uma mudança profunda no jeito de estar no mundo.
Quais as principais mudanças quando se pensa em Educação para o século 21?
A revolução tecnológica define novas competências e novas habilidades. O mundo mudou, e não adianta pensar que a escola não vai mudar, principalmente a escola, que forma a criança de hoje, que vai ser o futuro condutor do Estado e do país. Uma criança que tem cinco anos hoje e entra numa escola, quando tiver 20 terá sido exposta ao correspondente de informação nova que era gerado em 150 Anos. O desafio da escola não é dar ensinamentos memorizados que vão se tornar obsoletos. A escola precisa ensinar não só fração, mas também a trabalhar em equipe, a ter criatividade, iniciativa, curiosidade, buscar soluções. Quando o aluno terminar o Ensino Médio e procurar um emprego, nenhum empregador vai dizer: "Resolve para mim aí a fórmula de Bhaskara". Ele vai dizer: "Eu tenho este problema na empresa, o que você sugere para resolvê-lo?". Essa capacidade de resolução de problemas complexos é o que a escola tem de fazer hoje, e isso é muito diferente de tudo o que a escola sempre fez. É claro que as mudanças não acontecem da noite para o dia. Nenhuma semente plantada hoje vira árvore amanhã. Tem um tempo de regar, de cuidar. Mas a gente está plantando as sementes e já cuidando, para que comecem a florescer. Acho que o governador Eduardo Leite teve muita coragem em dizer que a educação é uma prioridade, porque ele sabe que o benefício que ele conseguir em quatro anos provavelmente será colhido pelo próximo governador. E é por isso que a educação sempre foi discurso fácil. Em época de campanha, então, nem se fala: é "educação, educação". Mas na hora de implementar...
Em que área da Educação é mais importante investir?
A desigualdade educacional começa quando a criança é pequena. Com dois anos, meu filho estava numa creche e chegava em casa todo pintado, tinha massinha, passava por um desenvolvimento motor, se familiarizava com formas, cores, tinha interação com os colegas. Até cinco, seis anos, crianças mais ricas têm contato com um volume de palavras que é de 30 milhões a mais, na comparação com aquelas com nível socioeconômico menor. Uma criança de dois anos, sozinha em casa com o irmão mais velho, porque a mãe saiu para trabalhar e o pai nem existe, quando tem seis anos e vai ser alfabetizada, tem um repertório cognitivo, afetivo e emocional muito menor. Aí começa a desigualdade. Por isso é tão importante investir na Educação Infantil e, depois, na própria alfabetização. Por que estamos lançando um pacto pela alfabetização, em regime de colaboração com os municípios? Porque na pandemia foi a faixa etária mais prejudicada. Nenhuma criança de sete anos sozinha em casa, com um celular na mão, vai se alfabetizar. Essa é uma das nossas ações prioritárias, um programa que a gente chama de Alfabetiza Tchê, em que vamos trabalhar em parceria com os 497 municípios do Estado.
Quais os pilares de uma Educação transformadora?
Se você perguntar para 10 pessoas o que é educação de qualidade, provavelmente vai ter 10 respostas diferentes. Uns vão dizer que é um salário bom para o professor, outros, que é o resultado da aprendizagem do aluno, outros, que é uma escola feliz. Se você pega aquela mandala ali (aponta para um quadro na parede), aquele é o nosso planejamento estratégico. Lá está a nossa missão como Secretaria de Educação: "Garantir a aprendizagem de qualidade, de forma equitativa e inclusiva". Por que "garantir a aprendizagem", e não "oferecer educação"? Já é algo diferente. Antigamente, quando a educação tradicional era focada no ensino e no professor, eu mesma ouvia professores falarem: "Eu ensinei, o aluno não aprendeu porque não quis". Ou seja, ele não ensinou. E tem "de forma equitativa e inclusiva", que não é a mesma coisa do que "garantir". Inclusão está ligada ao conceito de inclusão social. Equitativa é algo mais técnico: é você trabalhar em cima das diferenças evitáveis num mesmo grupo de pessoas. É falta de equidade que um menino do Moinhos de Vento e um do Partenon não tenham o mesmo nível de aprendizagem, porque são desigualdades evitáveis, por meio da qualidade de aprendizagem que devemos garantir a eles. Para garantir uma educação inclusiva e equitativa, uma criança indígena tem de ser tratada diferente de uma não indígena. Uma criança negra que sofre com racismo estrutural e uma criança branca que não sofre: tem de ter um olhar distinto. Uma criança com necessidade especial tem de ter um olhar especial. Então, vamos começar a aprofundar essas especificidades, até porque a educação, daqui para a frente, tende a ser cada vez mais personalizada.
Depende do quê?
De acréscimo de tecnologia, de formação de professores, uma série de coisas. É claro que toda mudança gera insegurança. Tem uns que falam: "Na minha época, a escola pública era de qualidade". Esse é um pensamento equivocado. Esses dias, eu estava conversando com um senhor super-respeitado e muito querido, que falou "ah, porque na minha época...". Eu disse: "O senhor já parou para pensar que na sua época 10% da população chegava ao Ensino Médio?". Hoje, 100% das crianças chegam, vindas de estruturas familiares completamente diferentes, o que é muito desafiador para o professor. Mas os professores são muito receptivos, apesar de alguns terem medo da mudança e até um pouco de acomodação. Mudar é complicado. Se você perguntar "quem quer mudança?", todo mundo vai levantar a mão. Se você perguntar "quem quer mudar?", poucos vão levantar. Eu quero mudança, mas quero que o outro mude, não eu. Só que não adianta: quem não perceber a mudança de mundo vai ser atropelado. Claro que você não vai adotar qualquer mudança, mas tem que ter um senso crítico do rumo que o mundo está seguindo. Em 2002 ou 2003, fui ao aniversário de 970 anos da Universidade de Bologna, na Itália. A fala do reitor me marcou para o resto da vida e é meu direcionador até hoje. Ele disse: "A universidade é uma das instituições mais antigas do mundo. Só o exército e a igreja são mais antigos. Só que muitas universidades desapareceram. Por que nós chegamos aos 970 anos? Porque tivemos a capacidade de antecipar as mudanças e nos prepararmos para elas". É isso que deve direcionar qualquer instituição de ensino, não só a universidade, mas qualquer escola básica: antecipar o futuro. O nosso papel como educador é preparar o jovem para o futuro.
Preparar para o futuro, mas sem esquecer do passado.
A escola tem dois aspectos muito fortes e importantes. Ela é, por natureza, conservadora, e tem que ser, porque o papel da escola é sistematizar todo o conhecimento acumulado na história da humanidade e passar aquilo para os alunos. Nisso ela tem responsabilidade, porque a formação geral básica de línguas, matemática, ciências, tem um lado conservador essencial. É organizar, sistematizar e fornecer aquilo para o aluno. Por outro lado, tem de preparar o aluno para o futuro, e aí tem de perceber as demandas do futuro. Costumo usar a imagem do espadachim chinês, que tem duas espadas. Com uma, a gente tem de resgatar tudo o que deixou para trás e, com a outra, abrir fronteiras para avançar no conhecimento. É muito desafiador. Por isso, talvez, o governador tenha dito, no meu evento de recondução, que todas as secretarias têm de ser da Educação. É isto: a educação perpassa todas as áreas da plenitude do ser humano.
Quais pautas de Educação ganham força e quais perdem com a mudança no governo federal?
Estou bastante otimista, porque, durante quatro anos, tivemos uma omissão total do Ministério da Educação (MEC). Por que a educação foi conduzida nos Estados e municípios nesse período? Porque existe uma organização dos secretários estaduais de Educação que é o Consed, e uma de secretários municipais, que é a Undime, e esses dois órgãos trabalharam juntos. E também junto ao Conselho Nacional de Educação, que fez o papel do MEC, regulamentando tudo em comum acordo com o Consed e a Undime. Isso funcionou por quatro anos, mas não é sustentável, até porque o papel coordenador de tudo tem de ser do MEC, inclusive o papel de Apoio técnico e financeiro. Se você prestar atenção ao discurso de posse do ministro da Educação, Camilo Santana, e também nos meus discursos, vai ver que há afinidade: as prioridades são a Educação Infantil, nosso caso com o Alfabetiza Tchê, e a expansão do Ensino Médio em tempo integral. Esses são os reais problemas do Brasil. Homeschooling, escola cívico-militar são marginais em termos do universo de demandas. Há mudanças muito profundas que ocorreram na legislação, e o MEC tem de apoiar na implementação delas. Estou bem confiante de que vai acontecer isso. Inclusive, a secretária-executiva de Educação, Izolda Cela, tem uma experiência enorme no Ceará que hoje é modelo, e a secretária de Educação Básica, Katia Schweickardt, que é ex-secretária de Manaus, fez um trabalho brilhante lá. O próprio secretário nacional de Articulação de Sistemas de Ensino, Mauricio Holanda, já foi secretário de Educação. Acho que tem tudo para ter, pelo menos com o Consed e com a Undime, uma relação extremamente rica e produtiva.
Existe algum país em que a senhora se inspire no modelo de educação?
Antigamente, a gente falava muito em Coreia do Sul e Finlândia. Continuam sendo inspirações, mas a gente não precisa mais desses exemplos internacionais. O Brasil tem dois exemplos com os quais a gente pode trabalhar: a alfabetização do Ceará e o Ensino Médio em tempo integral de Pernambuco. Ambos são inspirações muito mais próximas da nossa realidade e têm mais de 20 anos de continuidade, independentemente do governador, do partido, de quem entrou. Esses são exemplos que estamos seguindo, tanto que, para os próximos anos, vamos seguir em regime de colaboração no pacto pela alfabetização com a equipe do Ceará, e vamos trabalhar a expansão do Ensino Médio em tempo integral com a equipe de Pernambuco. Para que eu vou reinventar a roda, se há modelos que já deram certo aqui perto de nós? Claro que a gente não vai copiar de lá e implantar aqui. Para a alfabetização, quem vai elaborar o material didático são os nossos professores recrutados de escolas municipais e estaduais, até porque, depois que eu for embora, temos de ter gente local, professor efetivo da rede sabendo como fazer. É assim que se mantém uma política pública.
No que a educação o Rio Grande do Sul pode se tornar modelo nacional?
O Estado tem tudo para ser modelo em Educação Profissional, que agora, entra como parte do Ensino Médio. Na reforma do Ensino Médio, temos quatro itinerários formativos: Linguagens, Matemática, Ciências Humanas e Sociais Aplicadas e Ciências da Natureza. E tem o quinto, que é a Educação Profissional e Técnica. Ninguém no Brasil sabe fazer isso direito, nem nós, mas temos aqui uma Educação Profissional consolidada. Temos 157 escolas técnicas profissionais e um volume grande de cursos técnicos. Nós criamos uma ferramenta muito importante que dá aderência econômica e pedagógica para a abertura de novos cursos, estamos atualizando os currículos de todos esses cursos e temos uma possibilidade de trabalhar junto com o Ensino Médio, inclusive usando laboratórios do Sistema S, de universidades. Estamos mais avançados do que outros Estados do Brasil, no sentido de fazer uma proposta sobre como trabalhar o quinto itinerário no Ensino Médio. Temos um potencial grande aí.
Fonte: Jornal Zero Hora/caderno DOC/Isabela Sander (isabela.sander@zerohora.com.br) em 22/01/2023