A ESCOLA DEVE ABANDONAR CONCEITOS ARCAICOS
CONSIDERADO UM DOS EXPOENTES INTELECTUAIS DO PAÍS, O PROFESSOR MÁRIO SÉRGIO CORTELLA ESTE EM PORTO ALEGRE, EM AGOSTO, PARA FALAR SOBRE GESTÃO DO CONHECIMENTO. NASCIDO EM LONDRINA, NO PARANÁ, O FILÓSOFO E ESCRITOR TEM MESTRADO E DOUTORADO EM EDUCAÇÃO E ATUOU POR 35 ANOS NA PUC/SP, COM DOCÊNCIA E PESQUISA NA PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO.
EM ENTREVISTA AO CORREIO DO POVO, O PROFESSOR DIAGNOSTICOU, OPINOU E TEORIZOU SOBRE ALGUNS DOS PRINCIPAIS ASSUNTOS RELACIONADOS AO TEMA. O FILÓSOFO DEFENDE QUE A ESCOLA PRECISA ENFRENTAR E SE DESFAZER DE CONCEITO ARCAICOS, COMO OS QUE ENTENDEM QUE O PROFESSOR É O DETENTOR DO SABER OU QUE O CONHECIMENTO É ABSOLUTO E INDUBITÁVEL. PARA ELE, A ESCOLA PRECISA TER UMA NATUREZA MUITO MAIS DE SELEÇÃO DE QUE DE ACUMULAÇÃO DE CONHECIMENTO.
O que é a Gestão do Conhecimento?
É a ideia de que nós temos que lembrar que vivemos em uma sociedade que tem o conhecimento como uma referência, e que o conhecimento se constrói a partir das informações. E que nós temos um novo mundo, relativo às informações, novas tecnologias, novos modos de acesso, mas temos também uma dificuldade grande de ter critérios de seleção, tamanha a oferta de informações a que as pessoas acabam sendo inundadas, como se fosse uma avalanche informacional que os captura. [A gestão do conhecimento] tem como necessidade maior a formação da capacidade de ajudar a ter critérios que separem, selecionem e guardem aquilo que de fato importa, diferenciando do meramente passageiro e acessório.
Como a escola pode melhorar sua Gestão do Conhecimento?
A escola precisa dar uma distinção entre aquilo que, vindo do passado, já não serve mais, o que a gente chama de arcaico, daquilo vindo do passado que precisa ser preservado, guardado, que é a tradição. Não é casual que gaúchos entendam isso muito bem e a cada momento façam o seu centro de tradição gaúcha. Porque a tradição tem que ser guardada. Tem que ser colocado pra trás aquilo que não tem mais lugar. E, nesse sentido, a escola tem coisas que são tradicionais e outras que são arcaicas. Uma das bandeiras arcaicas é lidar com o conhecimento como se ele fosse inamovível, absoluto e indubitável. Outra coisa arcaica é supor que só professor detém o conhecimento. A outra coisa arcaica é supor que esse conhecimento só é obtido dentro da escola. Portanto, tudo isso tem que ser ultrapassado para que a gente consiga construir uma capacitação das pessoas e que nos capacite também para a gente fazer melhor aquilo que a gente quer fazer bem.
Qual é a influência do excesso de informações na educação?
Depende da escola que se terá. Nós temos uma diversidade muito grande, no Brasil, de escolas do campo público e privado, seja no seu modo de ação, seja sua localização, seja em relação ao tipo de presença de alunos que ela carrega. Portanto, não há um modo único no qual essa escola se coloque. Mas, independentemente de como ela é, onde se localiza ou quem a frequenta, há desse turbilhão de informações o impacto que é tontear um pouco as pessoas em relação àquilo que elas, de fato, precisam conhecer. De maneira geral, quase gera nas pessoas angústia, imaginando que ela tem que ler tudo, saber tudo, conhecer tudo e não é verdade. Sempre dependerá daquilo que você tem como objetivo. Por isso, a escola, especialmente, tem que ter uma natureza muito mais seletiva do que cumulativa. Não basta inundar o aluno de informações. É preciso que ele construa critérios que elevem a capacidade de boas escolhas, no campo da informação e da conduta, da vida e do conhecimento.
As ocupações das escolas são resultado das reações da sociedade devido ao atual momento político e econômico?
Parte sim. A questão é que, hoje, uma parcela dos jovens começa a entender que há causas que têm que ser construídas. Causas que, por exemplo, pra minha geração se situavam no campo da política nacional, no enfrentamento de uma situação ditatorial, de ausência de liberdade de expressão e de pensamento. Novas causas têm que vir à tona. Por exemplo, o jovem ter o seu lugar sem necessariamente passar por mera constatação, mas ser aquele que reivindica melhoria da qualidade do trabalho, estruturas escolares mais adensadas, participação na decisão dos rumos do trabalho pedagógico. Então, acho que há uma contaminação positiva em relação a isso, seja n o Rio de Janeiro, São Paulo ou Porto Alegre. Houve esses movimentos que tiveram, de um lado, um nível bonito, uma beleza na participação dos jovens, e, de outros alguns, destemperos, que são inerentes a quem não está habituado a fazê-lo e constrói sua forma de fazer no próprio processo. Mas é um aprendizado que traz uma beleza muito forte de uma juventude que não se contenta mais apenas numa consumolatria desesperadora, mas que quer ter voz, afinal de contas é no futuro que viveremos, então é melhor fazê-lo bem desde agora.
Como está sendo tratada a ética dentro das escolas?
A escola não é imune a tudo o que está à volta dela. A escola sozinha não movimenta as coisas. Paulo Freire, nosso grande educador, dizia: “Não é a escola sozinha que vai mudar o mundo, mas sem a escola o mundo não muda”. Portanto, o tema da ética não tem a escola como sua referência mais exclusiva. Afinal de contas, o número de horas que uma criança ou jovem fica exposta ao processo escolar é muito menor do que o inverso. Uma criança ica, em média, quatro ou cinco horas na escola e as outras 19 fora, em contato com a mídia, família e amigos. Aliás, vale muito pouco se uma escola tiver uma matéria chamada ética. O mundo dos valores tem que ser trabalhado no conjunto do projeto pedagógico em todas as disciplinas. E ética, para lidar com crianças e jovens, tem que ser de natureza exemplar e não teórica. Aquilo que se mostra, por exemplo, na educação física, jogos cooperativos em vez de fazer só competição, ter um momento para as crianças da educação infantil do brinquedo partilhado, do lanche coletivo, tudo aquilo que vai moldando valores de convivência que não precisa ser colocado teoricamente.
Como é o momento da educação no Brasil? Quais são as lacunas?
Na educação básica brasileira temos apenas 13% das pessoas que estão na escola privada, 87% estão nas escolas públicas. Portanto, quase a totalidade da população que frequenta a escola está no nível público. Dado que o nível primado é um direito constitucional mas é minoritário, no nível público nós temos quatro grandes questões: a primeira delas é a democratização do acesso e da permanência. Isto é: colocar todas as crianças e jovens dentro da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino médio a frequentar escolas, não apenas a matrícula, mas nelas permanecerem. Segundo, a ideia da democratização da gestão. A nossa Constituição Federal de 88, depois a Lei de Diretrizes e Bases de 96, prevê que a comunidade tenha participação na gestão da estrutura escolar e isso ainda é muito diminuto. Se eu perguntar se você conhece o Conselho Municipal de Educação de Porto Alegre, ele existe e precisa existir por lei. Quem escolhe as pessoas? Como elas lá estão? Quem gere a educação na cidade onde você mora? Ocupa aquele posto por qual mandato? Essa questão é séria, a democratização da gestão. Terceiro, uma nova qualidade de ensino em que a gente, sem perder aquilo que é referência na história da educação, não fique atrasado com plataformas digitais, trabalhar com conteúdo que sejam mais significativos, ter uma atualização do processo pedagógico. Quarto e último, algo que é vergonhoso no nosso país. Um país que faz uma Olimpíada deveria ser capaz também de impedir que, ainda hoje, em 2016, 13 milhões de homens e mulheres não sejam capazes de lerem o lema da própria bandeira. Essa é, absolutamente, uma vergonha inacreditável, que a sétima nação mais poderosa do planeta em termos econômicos tenha ainda 13 milhões de pessoas, com mais de 15 anos de idade, que não leem “Ordem e Progresso”.
Levando em consideração o surgimento de leis sobre educação que nascem já defasadas, não faltam discussões sobre a realidade?
Tudo é sempre bonito no papel. Isso é inerente a atividade da educação. A gente lida com gerações e gerações mudam todos os dias. O fato de você lidar com educação escolar faz com que haja desatualização cotidiana. Afinal de contas, aqueles que entraram na escola esse ano não estavam no passado e aqueles que estavam no passado já estão em outra postura. Portanto, essa desatualização é inerente a quem lida com o processo. É diferente da área de saúde que se tem uma patologia que você cura e ela cessa. Não há cura em educação. Educação é uma formação incurável. Portanto, todos esses planos têm um nível de precariedade que é muito contínua. A grande questão no Brasil é que eles entram em precariedade antes de serem implementados. Tudo aquilo que foi furtado da nação, seja pela atividade pública ou privada, nas últimas décadas, e que agora veio à tona com a Lava-jato e outras operações, seriam o suficiente para não termos essa questão. A gente tem, por exemplo, várias associações comerciais que, com toda a razão, fazem algo chamado impostômetro – que é avaliar o quanto estamos pagando de tributos no cotidiano. É uma coisa ótima. Mas tem que fazer o sonegômetro também. A Receita Federal calcula que, em 2015, tenham sido deixados de serem pagos em impostos, por sonegação, R$ 400 bilhões. Isso é mais do que o orçamento do MEC [Ministério da Educação] para um ano. Se eu não tivesse a sonegação, não teríamos essas questões. A implementação de vagas e projetos de estrutura seriam mais do que suficientes dentro disso. Não é questão de boa vontade, é questão de evitar a ladroagem.
Que escola é acessível para todos?
A gente avançou imensamente nisso. Hoje, 97% das crianças em idade escolar do ensino fundamental estão matriculadas, mas não necessariamente têm permanência. Segundo, há uma defasagem imensa ainda na educação infantil e no ensino médio. Apenas metade dos jovens que deveriam estar no ensino médio o frequentam. Por outro lado, a questão não é confundir qualidade versus quantidade. Numa democracia, quantidade total é sinal de qualidade social. Qualidade sem quantidade é privilégio. Não se confunda qualidade com privilégio. Por exemplo, São Paulo, onde eu moro, se come muito bem. Quem come? Quem como o que? Por isso, se as pessoas não comem, eu não posso falar em qualidade, tenho que falar em privilégio. O que nós temos no Brasil ainda é uma estrutura de escolarização em que há uma apologia do privilegiamento, não da qualidade.
Fonte: Correio do Povo/Marco Aurélio Ruas em 14/8/2016.