O DIA A DIA NA MEMÓRIA
Velha prática de registrar a rotina em diários ressurgiu em alguns projetos literários e também visuais implementados durante a pandemia
A primeira pandemia da era das redes sociais vem sendo experimentada, no mundo todo, com a publicação simultânea de farta documentação sobre o isolamento social. E não apenas pelos registros no Twitter, no Instagram ou no Facebook, que permitem um acompanhamento detalhado das vivências cotidianas no período, ou mesmo pelas pesquisas que já estão em curso nas universidades, nos mais diversos campos do conhecimento - inclusive o da literatura. O exercício de registrar em diários essa rotina parece ter ganhado novo status, com inúmeros projetos de publicações, individuais e em grupo, que vão da prática despretensiosa de escrever sobre as atividades ordinárias até a tentativa sistemática de documentar detalhes de um momento da vida que certamente merecerá recordações posteriores.
E aí ocorre, por exemplo, o que aconteceu com a escritora e colunista de ZH Julia Dantas:
- A gente vai pegando gosto pelas miudezas do cotidiano.
Julia é a criadora do blog Diário da Pandemia, uma coletânea de publicações no sistema "uma pessoa por dia, um dia de cada vez" com textos postados desde a chegada do novo coronavírus ao Brasil, em março.
- Apesar de ter dado a largada no projeto, depois do primeiro dia fui apenas leitora - ela explica.
- Considero um privilégio ter tido a chance de espiar a vida de tantas pessoas que estiveram dispostas a revelar algo da sua intimidade e dos seus pensamentos. Quando vemos que os outros experimentam coisas de modo similar a nós (que eles também estão angustiados, também prestam atenção nas conversas dos vizinhos, também compraram plantas, também aproveitam cada ida ao supermercado como se fosse uma aventura), nos tranquilizamos quanto à normalidade das nossas reações e nos sentimos menos sozinhos.
Julia também é colaboradora de outro diário coletivo publicado na internet: Os Dias e as Noites. Esse projeto, idealizado pela escritora e pesquisadora Moema Vilela, é assim apresentado em sua página inicial: "Relatos de sonhos, um café coado, as reticências e os estardalhaços íntimos. Tanta coisa cabe em um diário. Nos diários de Kafka, há uma anotação célebre, no dia 2 de agosto de 1914: 'Hoje a Alemanha declarou guerra à Rússia. De tarde fui nadar'. No diário escrito, cabe a natação, uma guerra, a Rússia. Do outro lado, na leitura, abraços de abismos, companhia para sobressaltos, brechas em uma perspectiva que de repente lembra que não é a única".
"Um refúgio para a expressão mais autêntica"; "um registro histórico que apoia a construção de um panorama coletivo do momento"; "um lugar para encontrar alguém com quem tenhamos algo em comum"; "um lugar para contar histórias" - as histórias de todos. São definições possíveis dos diários apontadas na sequência do mesmo texto. Um diário é, também, uma busca por companhia. Ou pode ser um exercício solitário, como é o caso do que faz o pesquisador Rafael Valles, que dedicou sua tese de doutorado, defendida em 2018 na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), aos diários escritos e filmados pelo cineasta Jonas Mekas. Durante a pandemia, Valles tem escrito e guardado, por enquanto apenas para si, registros da sua rotina pessoal, entremeados com pensamentos e reflexões que dão conta de seu estado de espírito nesta época tão particular.
- Primeiro existia a intenção de registrar um momento histórico, de poder olhar, lá adiante, ao que sobrevivemos (ou para o que perdemos de nossas vidas anteriores à pandemia). Depois, escrever um diário virou uma necessidade de comprovar que todos os dias em quarentena não são iguais, por mais que pareçam ter transformado nossa noção de tempo num bloco maciço e uniforme. O processo está me mostrando que essa escrita pode ser um importante exercício terapêutico, pois ajuda a lidar com as oscilações de ânimo - observa o autor. - O diário surge assim como um confidente.
O caso de Mekas lembra o de Kafka, como comenta Valles:
- Na pesquisa do doutorado, me interessava entender como os registros de Mekas mostravam a Segunda Guerra Mundial e o período pós-guerra por uma perspectiva cotidiana e de uma escrita em primeira pessoa. Ler o diário de alguém como Mekas, que registrou o seu dia a dia como prisioneiro e depois como exilado, de certa forma te insere na intimidade e na intensidade daquele momento, o que também te faz ter outra perspectiva sobre certos acontecimentos históricos.
Mekas construiu, décadas atrás, "uma relação intrínseca entre narrar o vivido e viver o narrado", aponta Valles em sua pesquisa. É o que se pode depreender de certas narrativas que funcionam ao mesmo tempo como representação do cotidiano pandêmico e como sintomas de aspirações alimentadas pela vida em isolamento. Em uma das entradas do projeto Diários do Isolamento, levado a cabo pela editora Companhia das Letras, a cordelista Jarid Arraes sintetizou: "9 de abril de 2020, 18º dia de isolamento. Hoje meu maior desejo é conseguir escrever". Ela prosseguiu: "Quero escrever, mas a dança faminta das notícias não me permite. Quero escrever poesia, começar a trabalhar num romance, mas a agonia das palavras ditas pelos outros me paralisa. O que eu quero escrever está grudado nas pontas dos meus dedos, quase se tornando parte das minhas digitais, e uma vez que isso se complete minha voz ficará para sempre presa no meu corpo".
Uma particularidade deste momento histórico é a abundância de diários imagéticos, construídos com fotografias ou vídeos. Há projetos colaborativos que não fazem distinções entre esse tipo de registro e os escritos, caso, por exemplo, dos Corona Diaries, publicados em inglês a partir de um projeto dos pesquisadores do Laboratório de Jornalismo da Universidade de Harvard (EUA). Já a Universidade de Cambridge e o grupo de empresas UK Web Archiving Consortium (Inglaterra) fecharam uma parceria para realizar o arquivamento sistemático de textos e imagens publicados em blogs e sites que se propõem a documentar o cotidiano durante a pandemia. Para além da censura governamental, o uso político desse tipo de conteúdo é comum na era da pós-verdade, por vezes limitando a circulação de informações sobre o próprio vírus, como ocorreu na China no início da pandemia e como tem ocorrido em outros países desde então.
A pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Miriane Peregrino também foi radical: compilou relatos que detalham o cotidiano de quem viu a doença de perto, tendo sido diagnosticado com a covid-19 ou perdendo pessoas próximas durante a pandemia. O material, que está reunido nos Diários de Emergência do jornal LiteraturaComunica, é um exemplo de como cada diário pode ter uma especificidade.
Outro exemplo: o projeto Habitar a Quarentena, criado no Instagram pela arquiteta Camila Thiesen, de Porto Alegre, e focado nas relações das pessoas com os espaços em que viveram, ou ainda vivem, seu isolamento social. Outro ainda: a chamada da fotógrafa e pesquisadora Anelise De Carli, que, igualmente no Instagram, a partir de seu perfil pessoal, convidou colaboradores a enviarem descrições e também registros visuais de seus sonhos - e está recebendo o material.
Seu objetivo, como ela anunciou na rede social, é "partilhar um pouco melhor o nosso mundo interno em forma de narrativa". E, assim, tentar "saber melhor o que fazer com o nosso mundo externo compartilhado".
ONDE LER
Diários de Emergência
Edições especiais do jornal LiteraturaComunica com relatos de pessoas convivendo com o vírus. issuu.com/literaturacomunica
Diário da Pandemia
Blog coletivo criado por Julia Dantas. diariodapandemia.blogspot.com
Diários do Isolamento
Projeto da editora Companhia das Letras. blogdacompanhia.com.br
Os Dias e as Noites
Site criado por Moema Vilela que, além de apresentar diários de autores convidados, indica outras iniciativas semelhantes. osdiaseasnoites.com.br
Habitar a Quarentena
Projeto de Camila Thiesen com relatos no Instagram, em texto e imagens, sobre as relações das pessoas com os locais em que vivem o isolamento.
@habitaraquarentena
TRECHOS
Do diariodapandemia.blogspot.com, organizado pela escritora Julia Dantas com textos de autores convidados
Dia 133 (28/7): por Laura Peixoto
Preciso contar pra alguém. O Cirilo veio aqui ontem à noite. Juro. Escondido, claro. Aproveitou a noite úmida e quente, viu a janela aberta e não hesitou. E eu também não. A gente se curte, nunca escondi meus sentimentos. Da cama, percebi quando chegou. Meu sorriso cúmplice tranquilizou sua audácia. Sabe como é... vidinha confinada esconde algumas petulâncias. Cirilo se acomodou na minha cama e eu deixei - mesmo com medo de alguma possível contaminação. Suspirei. Ando carente. Ele também. Algumas carícias e Cirilo deixou escapar um ronron satisfeito entre os bigodes. Vadio, partiu antes de eu acordar. Mas pelo menos relaxou a tensão que a semana promete.
Dia 186 (19/9): por Rita Cavalcante
Quanto tempo dura o tempo: Quando vira a hora e anuncia o dia? Quando o alarme canta o compromisso? Quando o risco corta o papel preso ao imã de geladeira? Um dia na pandemia leva muito tempo. Anos. Do primeiro dia até a consulta médica da filha, 113 (não era. era alergia). Dia zero. 19/7: os pais se mudaram pra lá, domingo, depois de 4 dias: 44 anos. Era agosto. 46 dias hoje. Um dia na pandemia leva 1 vida. 133 mil, hoje, eram. Amanheceu 3 vezes depois que a Mãe foi dormir. Nunca mais "bom dia". não era. 14 meses. neoplasia.
Dos escritos de Rafael Valles, pesquisador de cinema, doutor em Comunicação com tese sobre os diários de Jonas Mekas
1º/6 - E chegamos a junho, 75 dias confinado. A ansiedade por sair já é real, comer num rodízio de carne, ir ao shopping, tomar um ar, caminhar na Redenção. Nada de muito especial, mas que era a minha vida antes do senhor Corona aparecer. (...) escrevo esse diário para mostrar para mim que, por mais que todos esses dias de confinamento pareçam iguais uns aos outros, o diário contribui para mostrar que não, que, mesmo diante dessa imobilidade, desse confinamento em casa, a vida segue o seu curso e cada dia possui a sua história. Quando for ler, mais adiante, isso o que escrevi, lembrarei dessas singularidades. Não será apenas um bloco com dias iguais. É a escrita sobre o cotidiano que ressignifica o cotidiano.
15/9 - Muito louco pensar que hoje marca exatamente seis meses de quarentena, exatamente meio ano. Faz tanto tempo e, ao mesmo tempo, parece ter passado tão rápido. Parece que, quanto mais passa, mais o tempo adquire outro sentido, nos traz uma referência que é como a quase falta dela. Muitas coisas foram feitas e, ao mesmo tempo, tão poucas.
18/10 - Diante desse bloco de notas que ainda não sei quando irá terminar ou que fim levará após essa pandemia, decido fazer alguns exercícios de rememoração para ter uma mínima dimensão do que está sendo viver esse período de isolamento social. Passo o arquivo de notas do formato word para o pdf. Decido buscar as palavras-chave dessas 223 páginas, aquelas que mais percorreram as minhas anotações. Penso que algumas dessas palavras são sintomáticas dos tempos em que vivemos. Os termos mais recorrentes são "morte" (234 vezes), "Bolsonaro" (199), "pandemia" (127), "Brasil" (121), "vida" (120), "óbito" (111), "coronavírus" (91). A palavra "morte" constituí uma média de 1,04 por página. Bolsonaro, 0,89% por página. Por outro lado, o contraste acaba sendo flagrante quando procuro palavras-chave que possuam um sentido mais alentador. Ao buscar expressões como "felicidade" (25 vezes), "amor" (19), "afeto"(16), "alegria" (5), "esperança" (5), vejo que são termos bastante ausentes nas anotações que fiz ao longo desses sete meses.
Fonte: Zero Hora/Caderno Doc/Daniel Feix (daniel.feix@zerohora.com.br) em 08/11/2020