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Entrevista com Jorge Forbes / Psicanalista
Entrevista com Jorge Forbes / Psicanalista

 

COM A PALAVRA JORGE FORBES

Psicanalista, 69 anos. Um dos criadores da Escola Brasileira de Psicanálise e atual presidente do Instituto de Psicanálise Lacaniana de São Paulo, é apresentador do programa "TerraDois", na TV Cultura, e autor de VOCÊ QUER O QUE DESEJA (Ed. Best Seller, 2003), entre outros.

TUDO MUDOU. É A MAIOR REVOLUÇÃO ÉTICA QUE JÁ ENFRENTAMOS

 

Um dos introdutores do ensino de Jacques Lacan no Brasil, Jorge Forbes foi o primeiro diretor-geral da Escola Brasileira de Psicanálise.

 

Tornou-se referência nesse campo no país, com trabalho de clínica e pesquisa difundido, entre outras iniciativas, pelo programa TerraDois, da TV Cultura. No dia 27, será atração da 22ª edição (a primeira exclusivamente online) da Jornada Científica do Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre (CEPdePA), evento que tem início neste fim de semana (em 14 e 15/11/2020) e que debaterá questões sociais candentes da atualidade, dos laços sociais em meio à pandemia à presença marcante da morte no cotidiano.

 

Nesta entrevista, concedida em conversa via aplicativo de vídeo desde seu sítio, em Campos do Jordão (SP), ele comenta o que considera ser a maior revolução da vida em sociedade dos últimos 2,8 mil anos e faz conjecturações sobre temas que vão da identidade brasileira à pós-verdade, passando pelo impacto do novo coronavírus no comportamento coletivo.

 

 

"Estamos vivendo a maior revolução dos laços sociais dos últimos 2,8 mil anos." Essa frase é sua. Que revolução é essa?

Primeiro, é importante entender a diferença fundamental entre homens e animais: enquanto os animais nascem sabendo o que fazer, os homens precisam ser educados. O cavalo, o cachorro e a abelha não vão ao colégio, não fazem congresso, não duvidam. O homem duvida. Porque se sente incompleto. Foi encontrando formas de se completar, se orientar, a partir de seu meio. Na primeira dessas formas, o primeiro período ético, datado do século 8 a.C. - quando, a partir de Homero, a filosofia substituiu a mitologia - até 300 d.C., para acalmar sua angústia em busca de orientação, o homem se inspirou na natureza. O homem faz o seu percurso, nascendo, amadurecendo e morrendo, em categorizações com figuras estanques: o guerreiro, o chefe, o artesão, o escravo. O segundo período ético é o religioso, de 300 d.C. até o século 18. Nele, as religiões se impõem com o discurso de que, se você nasceu uma coisa, pode virar outra, porque todos são iguais perante Deus. Esse discurso diz que, ao morrer, o homem entra para a vida eterna. Há essa promessa. Essa ética era imbatível frente à anterior, convenhamos. Mas aí vem a terceira, com os iluministas e a "ousadia do saber", citando Kant, em que é preciso se constituir como homem, criar a existência a partir da razão. O homem é um vazio, e, para ser preenchido, nesse terceiro período, passa a usar a razão.

 

 

O que houve no século 18 até hoje para que estejamos vivendo a maior revolução dos laços sociais?

Cada ética tem uma transcendência, seja a natureza, a religião ou a razão. Em cada uma, imaginando uma pirâmide, o homem está na base e quer chegar ao topo, para transcender. Ocorre que as três foram postas em xeque. Porque o mundo deixou de ser vertical, deixou de ter esse desenho. Nietzsche, no século 19, já desconstruía as três transcendências, mostrando que elas são mentiras sobre a essência vazia do homem. Já dizia, de algum modo, que o mundo era horizontal e, por isso, não estava contemplado nessa busca por transcendência. Mas isso só fica mais claro na década de 1960, com as revoluções comportamentais, e definitivamente escancarado com a web, nos anos 1990. A web comprova que horizontalidade que vinha se desenhando desde um século antes é a nova vanguarda na ética coletiva e no estabelecimento dos laços sociais.

 

 

Foi um longo processo de mudança.

É uma mudança que se dá em um período grande. O iluminismo já foi um período ético curto, se comparado aos dois anteriores. Mas não há rompimentos. As éticas coexistem. O que acontece é que uma substitui a outra na posição de vanguarda. Um exemplo banal: na praia, um vendedor passa anunciando "sanduíche natural"; você simpatiza justamente porque é natural, o que remete à primeira ética, que nos indicou que o natural é bom; você se dá conta de que bactérias também são naturais e, sem higienização, elas podem estar no sanduíche, o que faz você torcer para Deus, ou algo equivalente, que o sanduíche não faça mal; por fim, e aí entra a terceira ética, você ficou mal e teve de recorrer aos medicamentos, à ciência, ao que o conhecimento criou para te salvar. Veja com o tudo anda junto, paralelamente, na sociedade.

 

 

A verticalidade é uma característica da sociedade edipiana, que é construída a partir dos referentes de paternidade que inclusive são a base da nossa memória. Fale mais sobre a mudança para a sociedade horizontalizada nesse sentido, por favor.

Na sociedade vertical, os laços sociais são padronizados. Há uma hierarquização desde a base até o topo. Os processos são lineares, previsíveis, garantidos e disciplinados. Tudo por conta dos referentes pré-estabelecidos. É o que eu chamo de TerraUm. Na TerraDois, que é a sociedade horizontalizada, há múltiplas escolhas. E isso nos desespera, inclusive, porque temos medo de escolher, é da nossa natureza. A sociedade TerraDois é diversa em vez de ser focada, é colaborativa em vez de ser hierárquica, é múltipla em vez de ser padronizada. É flexível e não rígida, como Bauman tanto insistiu. É criativa, surpreendente, arriscada. Nos últimos anos, em um período que historicamente ainda é curto, tudo mudou nas nossas vidas. Do nascimento à morte, os padrões estabelecidos na sociedade vertical não nos satisfazem mais, não preenchem o nosso vazio. A horizontalização é a maior revolução ética que já enfrentamos.

 

 

Antes não se tinha tanta escolha e agora se tem? É isso mesmo?

Vou dar outro exemplo. Se quiser saber o que nos une como sociedade em busca da transcendência, você faz a seguinte pergunta: pelo que você morre? Já se morreu por guerras travadas pelas nações em busca de soberania, já se morreu por revoluções, por ideais - até os anos 1960, inclusive. Hoje não se morre mais por isso. Pacientes meus, em análise, comentam que seus filhos não se comovem nem um pouco por eles terem ido às ruas em 1968 para integrar-se a uma luta coletiva. Pelo contrário. Em vez de acharem os pais heróis, criticam o fato de eles terem deixado a família em segundo plano. É importante dizer que estou falando do Ocidente. No Oriente, ainda se morre por religião. No mundo ocidental, não mais. É só um exemplo, mas mostra o quanto a ética coletiva mudou. As pessoas pensam que liberou geral, porque a busca por transcendência na pirâmide vertical é um elemento limitante da vida. Você não precisa mais seguir caminhos pré-estabelecidos. Você não dá sua vida por coisas que você daria antes, porque agora há outros caminhos a serem seguidos. Há uma sensação de liberou geral.

 

 

Estamos mais individualistas?

É o que algumas pessoas costumam concluir, mas a visão psicanalítica indica que não, que as coisas não são bem assim. Você não morre pelo seu país, por um ideal ou pela religião, mas morre pelo seu filho. Então não é verdade que não tenhamos mais nenhuma transcendência. Mantemos a necessidade fundamental de conviver com o outro, estabelecendo laços sociais. Acontece que os laços não são mais verticais. Não vêm necessariamente de cima.

 

 

Falando especificamente da pandemia e de como reagiremos a esse trauma coletivo. O senhor acredita que ficaremos mais solidários ou, contrariamente à isso, não "melhoraremos" como sociedade?

O coronavírus mostrou que somos capazes de mudar subitamente de hábitos, com efeitos práticos muitas vezes bem interessantes, tanto quanto talvez muitos de nós não imaginassem ser. Somos capazes de nos adaptarmos, sim, uma prova é essa entrevista realizada em vídeo, a tantos quilômetros de distância, como se estivéssemos perto. Além de mostrar que não precisamos estar tão presos a vícios da nossa rotina, a pandemia também mostrou como a vida humana é necessariamente solidária. Isso também já estava presente na sociedade, mas não de modo tão evidente. Na falta de um padrão organizacional vertical, todos nós viramos GPSs ambulantes. Vamos modificando a rota a todo instante, de acordo com o que encontramos no caminho percorrido. E, fundamentalmente, é um caminho que depara a todo instante com outras pessoas. São os encontros que nos fazem mudar a rota. Acredito que a pandemia nos fará recuperar aspectos do desejo a partir das novas possibilidades e inevitabilidade desses encontros.

 

 

A próxima pergunta seria justamente sobre como ficam os desejos e os afetos nesse contexto.

Quando você tem uma perda dos elementos referentes da verticalidade, você tem de inventar soluções. E você precisa legitimar essas invenções. Vamos pensar sobre isso a partir de um paralelo entre necessidade e desejo. Vivemos entre esses dois planos, o que precisamos fazer e o que queremos fazer. Na pandemia, vários aspectos do nosso comportamento precisaram mudar. Passamos a usar máscara, lavar mais as mãos, manter distanciamento. E os desejos individuais? Tiveram de ficar em segundo plano. Foram sufocados pelas necessidades coletivas. Até que explodiu. Foi por isso que praias e parques superlotaram nos últimos dias. Nós precisamos de contato físico. É onde surgem a surpresa e o acaso, que são alimentos para o nosso desejo. Freud definiu bem isso ao falar do mal-estar da civilização: nosso desejo não é respondido imediatamente porque ele precisa ser negociado com a convivência coletiva. Só que, aí, se você manda o desejo calar a boca durante muito tempo, a tendência é ele ressurgir com tudo lá na frente. A civilização precisa responder aos desejos individuais de cada um. Se não, dá problema. E deu. É nesse sentido que, como consequência do período de pandemia, vejo os desejos sendo retomados, reelaborados.

 

 

O brasileiro sempre foi conhecido pela simpatia, pela alegria e tolerância. Isso parece ter mudado nos últimos tempos, com polarização, debates virulentos e inclusive violência. Ou sempre fomos agressivos? Qual sua visão sobre essa dualidade do brasileiro?

Em parte, a resposta toca no mesmo ponto da questão anterior: a gente se comporta em um equilíbrio com a civilização. Quando a civilização não nos responde, nós viramos bicho. Mas, bem, essa visão do brasileiro ficou conhecida a partir de Sérgio Buarque de Hollanda e da ideia do sujeito cordial, não no sentido de ser bonzinho, mas de misturar a lógica de uma ação com o afeto. O brasileiro é profundamente criativo. O brasileiro sabe que o mundo é incompleto e por isso inventa soluções. Acabamos usando muitos diminutivos, sendo informais, considerando a presença mais importante do que a tradição familiar. Eu inclusive não temo dizer que a forma do laço social brasileiro é a que melhor se adapta às características do mundo horizontalizado. Vejo o conceito de TerraDois e imagino um brasileiro para ilustrá-lo. Domenico De Mais, referenciando Stefan Zveig, já disse que o mundo deveria tomar lições de laços sociais com o Brasil. Justamente por conta da nossa "razão sensível" tão bem descrita por Buarque de Hollanda. E é justamente porque o brasileiro mantém o contato afetivo muito grande que está no limiar de virar uma verdadeira fera. Quando a civilização não responde, quando o coletivo não responde ao desejo individual, a tendência do brasileiro é agir de forma virulenta.

 

 

O que pode explicar o negacionismo de líderes políticos e de pessoas comuns mesmo diante de tantas mortes e do impacto da pandemia em nossas vidas?

Esta resposta está na pergunta: o que pode explicar o negacionismo é a presença de tantas mortes, com impacto tão forte em nossas vidas. Freud fala da negação em fantasia, ou seja, além de negar algo que vê, você imagina outra coisa, fantasiosa, que substitui o fato. Eu nego que o coronavírus seja mortal dizendo que a cloroquina não deixa que ele mate ninguém. A cloroquina é uma fantasia que me permite negar o coronavírus. E eu só nego a doença porque não consigo elaborar toda a carga de afetos que existe em certo momento. A gente pode não saber controlar afetos internos e externos; podemos negar as duas coisas. Quando nosso organismo recebe uma voltagem com a qual não estamos acostumados a lidar, negar o recebimento desse impulso é natural. Ainda mais no Brasil: "Vírus? Que vírus? Chama esse vírus para tomar um chopinho aqui, isso é uma gripezinha, traz aí que a gente resolve". A imagem de Bolsonaro com a caixinha de remédio, como se fosse um comercial do Biotônico Fontoura de 50 anos atrás, é exatamente isso: ele cria uma fantasia com a qual nega o impulso que recebeu porque não soube lidar com esse impulso.

 

 

Estamos na era da pós-verdade, com profusão de desinformações capazes de mobilizar as massas. Seria uma negação em fantasia coletiva?

Umberto Eco estava certo quando afirmou que a internet "promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade". A ideia de que, nas redes sociais, as pessoas perderam a vergonha de falar e espalhar besteiras, me parece correta, mas ela é essencialmente TerraUm. Porque ela admite que há verdades melhores e verdades piores. Essa questão é chave no mundo atual, porque toca em um ponto sensível que são asa fake news. Elas serão controladas ou não? Do ponto de vista psicanalítico, tudo é fake news. Porque a verdade é variável. Assim é TerraDois. Não há uma verdade, e sim verdades, no plural. Lacan tem uma frase muito bonita: "O máximo que você chegará, em uma análise, é a uma verdade mentirosa". A esperança de se ter uma verdade absoluta em relação ao mundo é vã. Quando você sai de uma estrutura vertical e passa a existir em uma horizontal, essa ideia fica mais clara.

 

 

Não há uma única verdade, certo, a filosofia trabalha com essa premissa há muito tempo. Mas entre isso e a discussão da existência ou não de uma mamadeira em formato de pênis vai uma distância muito grande.

Mas não vai funcionar você dizer que o jornalismo traz a verdade absoluta, e as redes sociais, as fake news. Esse é o ponto. Temos de encontrar um fazer verdadeiro que seja mais encantador para as pessoas do que aquilo que consideramos uma bobagem, mas que seduz muitas pessoas. Nesse sentido, os jornais, assim como todas as instituições, o Judiciário, a psicanálise, têm de se reinventar. O Édipo precisa ser readequado às sociedades horizontais. Esse é o tamanho da revolução. Não é que tudo o que vinha sendo feito estivesse errado, longe disso. É uma questão de reinvenção. O Complexo de Édipo precisa ser reinventado. O Complexo de Édipo é um software, digamos assim, criado por Freud, que foi excelente para analisar o mundo ao longo de cem anos. Bill Gates jamais criou um software com tanta durabilidade. Mas mesmo o Complexo de Édipo precisa de atualização. A análise, hoje, tem de ser pós-edipiana. Ela passa pelo Édipo, que ainda diz muito, mas hoje é necessário ir além. Posso explicar, por A mais B, que Suzane von Richthofen matou os pais porque é histérica, perversa, psicótica, obsessiva. Só que tudo isso junto... Eu não estarei explicando nada. Psicanálise, direito e jornalismo estão se reinventando. Mas muito devagar. Estão muito presos, ainda, à TerraUm. Ainda não legitimamos novos modos de viver em TerraDois, as instituições não legitimaram. Por isso convivemos com fake news absurdas tomando um lugar que não deveria ser delas.

 

 

O senhor é otimista diante dessa revolução dos laços sociais? Pensa no nosso futuro, como sociedade, com otimismo?

Lacan dizia que, se uma análise não leva ao entusiasmo, ela não é válida. Sou otimista. Mas meu otimismo não é aquele que nega os problemas. Meu otimismo é um método de pesquisa, uma forma de aproximação das questões, um afeto. A dificuldade de amparar o ser humano no mundo, hoje, é grande. A frustração é inevitável. Por exemplo, o amor. A decepção com os relacionamentos é recorrente, para todos. E não é por isso que devemos deixar de acreditar no amor. Para fazer as coisas, para realizar, para viver, você precisa apostar. O otimismo tem de ser a aposta. Alojar-se em uma neurose, que é um impulso natural de defesa, não pode ser o caminho. Temos de insistir, mesmo que às vezes não dê certo. Esse tem de ser o método. A vida é um exercício constante de arriscar, e a melhor forma de fazer isso é com otimismo.

 

Fonte: Zero Hora/Caderno Doc/Daniel Feix (daniel.feix@zerohora.com.br) em 15/11/2020.