MULHERES DA HISTÓRIA
Desde meados do século XIX, examina-se o tema do matriarcado da Idade do Bronze, precursor dos estudos sobre a condição histórica das mulheres e raiz do feminismo que cresceu no século XX até se tornar um dos principais fatos culturais do século XXI. O ajuste de contas atual ambiciona muito mais do que retomar passado distante, mas é bom compreender o que foi perdido e como se construiu a supressão social da mulher, na Idade do Ferro, em que vivemos. O passado aparentemente longínquo torna-se próximo, quando compreendemos que ainda oferece fundamentos culturais.
No segundo milênio a.C., viveu-se o apogeu da Idade do bronze no Mediterrâneo. Em Creta, uma sofisticada sociedade palaciana era cenário para protagonismo público feminino, evidente em pinturas, esculturas, joias e inscrições que mostram mulheres entronadas e presidindo ritos com poderes de grandes sacerdotisas. O matriarcado da Idade do Bronze era um regime em que a autoridade religiosa e social de rainhas e princesas era conjugada com a atuação econômica e militar de reis e príncipes.
O colapso da Idade do Bronze, no século XII a.C., pôs fim a esse quadro, e à escrita, á pintura, à arquitetura, ao Estado e à diplomacia; foi a maior catástrofe cultural da História, em que ruíram também impérios e cidades e iniciou-se a formação de uma nova era, a Idade do Ferro; as eras do papel, do silício e da nuvem são subcapítulos do ciclo iniciado há 3 mil anos. Neste, ampliou-se o acesso aos instrumentos de combate, outrora controlados por senhores da guerra, e homens em armas predominaram. O litígio se expandiu na primeira metade do primeiro milênio a.C., até que o muito sangue vertido deu lugar à nova forma de disputa, com argumentos, pacificados por leis produzidas coletivamente. Era a aurora da democracia na pólls grega, e da república, em Roma, regimes de guerreiros urbanizados, que consumaram soberania patriarcal, á custa das mulheres, progressivamente banidas da esfera pública e confinadas ao ambiente doméstico. Dava-se início ao longo ciclo histórico de degradação da condição social feminina, processo que chegou ao apogeu quando, a partir do século IV d.C., tornou-se hegemônica a religião que coroava uma mãe assexuada, símbolo didático da castração feminina, e em cuja base estava o mito de que a mulher é fonte do pecado e da danação humana; entre Maria e Eva, sucumbiu parte importante da humanidade, a mulher e a feminilidade. O cristianismo, o judaísmo e o islamismo consolidaram a autoridade patriarcal e uma severa subordinação feminina, em âmbitos público e privado.
O ataque às mulheres, desencadeado no mundo antigo como um programa cultural amplo e agressivo, no fundo esconde o temor e a covardia de homens incapazes de compreender o poder feminino e conviver de modo complementar e harmônico. Ele que agride mulheres, ele não sabe nada e tem tudo a temer. Mas eis que, após tantos séculos, ressurgiu esse poder e potência, e hoje preside as melhores mudanças históricas. Avante, mulheres, vamos convosco!
Fonte: Zero Hora/Francisco Marshall/Historiador, arqueólogo e professor da UFRGS (marshall@ufrgs.br) em 30/09/2018