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O Tribunal da Internet
O Tribunal da Internet

O TRIBUNAL DA INTERNET

Esse superego coletivo e virtual tem se mostrado impiedoso.  Mas de onde vem e por que adquire feições tão potentes e intolerantes?

 

Todos temos um tribunal que habita nosso psiquismo.

Para alguns, esse tribunal é muito rigoroso: ele julga cada escolha, cada desejo, cada anseio.  E não são julgados apenas atos presentes.  Muitas vezes, os membros desse júri íntimo reabrem arquivos que pensávamos prescritos, revirando o passado atrás dos pequenos ou grandes delitos que cometemos ou que julgamos ter cometido.  A culpa, para esses réus de si mesmos, por vezes se torna uma companhia constante na vida.

 

Para outros, mais afortunados, o tribunal não é lá tão rigoroso.  Erros são amenizados, deslizes são contextualizados e as vontades são mais tranquilamente vivenciadas.  Nesses casos, a culpa pode até volta e meia dar as caras, mas ela raramente toma conta da vida.

 

Sigmund Freud, o inventor da psicanálise, deu o nome de superego a essa instância interna julgadora.  Essa dimensão da nossa vida psíquica é como um atento olho que faz com que vivamos autoconscientes de nossas ações e mesmo de nossos desejos secretos.  O superego é a internalização dos tabus, dos códigos e também dos ideais da cultura.  À medida que vamos crescendo, somos apresentados às restrições e às demandas da sociedade.  Civilizar-se implica registrar psiquicamente que não só não podemos fazer tudo o que queremos, mas que também os outros esperam algo de nós.

 

Um fato curioso é que, ainda que nos sintamos constrangidos pelo superego, muitas vezes não hesitamos em nos tornarmos a instância julgadora do outro.  Colocar-se como o tribunal alheio, fazendo do outro réu, dá uma folga para a nossa própria culpabilização.  Além disso, deliberar sobre as atitudes dos outros também traz uma estranha satisfação sádica.

 

Ainda que cada um de nós tenha o nosso júri íntimo particular, também é corriqueiro que falemos dos outros nas conversas entre amigos, como um ritual grupal de julgamento e prescrição da pena.  Isso fortalece o laço do grupo, como se os membros do coletivo firmassem um acordo de superioridade moral, relegando as faltas e os erros a um elemento externo.

 

Agora pensemos nas dimensões que esse pacto julgador pode tomar quando falamos na grande ágora em que debatemos as mais variadas questões hoje em dia, a internet.  Essa é uma questão tão presente que até utilizamos o termo "tribunal da internet" para falar desse superego coletivo e virtual.  As redes sociais são contemporaneamente o campo mais propício para dar vazão à face sádica do superego: atrás das telas, todos somos anônimos e lidamos apenas com uma representação que fazemos do outro.  Quando o réu passa a ser apenas mais um usuário das redes, ele é desumanizado, se tornando o alvo de uma turba feroz, sedenta por achar um bode expiatório para a sua própria culpa através da demonização de um outro.

 

Importante notar que nem sempre o tribunal da internet é tão nefasto.  Há situações que podem ter um efeito pedagógico, como quando são visibilizados episódios de assédio sexual como aqueles denunciados pelo movimento #metoo, em 2017.  A pressão popular pode servir para convocar a justiça comum a tomar as devidas providências.  Infelizmente, esta não é a tônica da dinâmica das redes. O que se destacam, ainda, são os casos de cancelamento, de punição indiscriminada.

 

Um exemplo característico disso foi o caso de Catharina Lima, uma mulher que, no ano passado, precisou se alimentar por alguns dias apenas com comidas geladas após realizar uma cirurgia.  Seu "erro" foi ter publicado no Twitter que seu pai havia comprado para ela cinco potes de sorvete de uma marca cara.  Um erro?  Pelo menos foi assim que o tribunal da internet julgou.  Alguns acharam um absurdo que ela "ostentasse" nas redes ter ganhado um sorvete de preço tão elevado.  Outros criticaram Catharina por ter exibido o fato de ter um pai cuidadoso.  Para estes, era um absurdo ela se gabar de ter um pai assim enquanto tantos outros são órfãos.  E assim vai.

 

Com as celebridades, a coisa é ainda mais aguda.  Em setembro deste ano, Carolina Dieckmann publicou um vídeo em que deixava cair o seu bolo de aniversário.  A internet foi impiedosa ao acusá-la de desperdício, julgando que a queda havia sido proposital.  O fervor foi tanto que a atriz precisou publicar um outro vídeo provando que não só tudo tinha sido um acidente como também que o bolo havia sido aproveitado.

 

Nesses casos, há o prazer complementar de julgarmos aqueles que, por sua riqueza ou fama, além de admiração, também nos provocam inveja.

 

 

Fonte:  Zero Hora/Caderno DOC/Luciano Mattuella/Psicanalista, doutor em Filosofia, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa) em 12/11/2023