EXISTE VIDA FORA DO FACEBOOK
Há 100 milhões de brasileiros longe das redes sociais. Muitos não têm acesso. Mas outros tantos não querem.
A percepção nacional é de que 83% da população brasileira têm uma conta no Facebook. Na realidade, 47% dos brasileiros estão conectados pelos serviços da empresa de Mark Zuckerberg.
Esse erro de percepção, demonstrado pela pesquisa Perigos da Percepção, do Instituto Ipsos, constrói uma ideia de que “todo mundo” faz parte desse ambiente digital.
Essa distorção influencia decisões desde o processo de comunicação de empresas privadas que dedicam uma parcela cada vez maior de seus investimentos à publicidade nas redes até a definição da agenda da sociedade civil e do Estado.
Da constatação do contrário, nasceu a investigação Todo Mundo Quem? - Um estudo sobre os 100 milhões de brasileiros fora das redes sociais.
Passando por Belém, Salvador, Cuiabá, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre, fomos à casa de pessoas entre 14 e 65 anos, de todas as classes sociais para conversar sobre suas vivências.
Percebemos que há, mesmo nas capitais e em suas regiões metropolitanas, questões estruturais que impossibilitam o acesso de uma grande parcela da população às redes e, muitas vezes, à internet. Essas barreiras estão ligadas à má distribuição de renda, à ineficiência do sistema educacional, ao analfabetismo digital e à precarização na qualidade dos serviços prestados pelas operadoras de telecomunicações.
Vimos que ainda há muito para que o acesso à internet no Brasil atinja o patamar de direito humano como reconhecido pela Organização das Nações Unidas (ONU) desde 2011.
Dentre os que têm acesso, um novo comportamento se fortalece escolher não fazer parte das redes sociais. As pessoas que tomam essa decisão priorizam criar e arquitetar sua rede de relações sem os parâmetros das ferramentas digitais. Denominamos esse grupo como Nativos Sociais. Eles acessam e compram pela internet, são sociáveis, se consideram informados e muitos são ex-usuários das redes. Ou seja, não são refratários às tecnologias e tão pouco eremitas do tecido social. Mas, nas conversas que tivemos com os Nativos, apareciam experiências onde a falta do “olho no olho” e das nuances de tom de voz e expressão corporal causaram ruídos na comunicação. Também eram constantes as reclamações sobre a necessidade de estar sempre disponível às interrupções causadas por mensagens e notificações. Além, é claro, de um cansaço da manutenção dos perfis nas redes.
A busca por um contato mais humanizado, por uma outra noção de tempo e urgência e pela elevação dos níveis de atenção e sinceridade nas relações são pontos de conexão na diversidade de argumentos apresentados pelos Nativos Sociais. Eles percebem as facilidades proporcionadas pela interação nas redes nos campos da comunicação e da informação. Ainda assim, decidem enfrentar os obstáculos criados pela subversão dessa nova norma dos relacionamentos apostando na criação de intimidade para a construção de conexões mais profundas. Conexões essas que propiciam um ambiente próspero para a conversa, a troca e a negociação. Essa abertura torna seu discurso muito mais empático e menos polarizado, mesmo em questões mais agudas como política e religião.
Se a ação de não estar nas redes ainda é um diferencial dos Nativos Sociais, esse questionamento sobre a dinâmica das relações humanas não se restringe a esse grupo. Essas ideias apresentam ressonância entre os que têm perfis ativos em redes sociais. Elas estão se disseminando em campos populares da cultura, como a música e a televisão e se solidificando no senso comum sobre os impactos do uso imagem do uso de redes sociais digitais. Elas também são pauta das discussões contemporâneas em fóruns que vão do SXSW, um dos principais festivais de interatividade e tecnologia do mundo, até o meio acadêmico.
Há um impacto também naqueles que ainda não têm acesso. Com a potencial evolução desse mercado a partir do investimento na diminuição das barreiras estruturais, mais brasileiros tendem a fazer parte desses ambientes. Mas sua entrada se dará já com o conhecimento dessas problemáticas e de suas consequências para a dinâmica das relações.
Como nação, temos a urgência de encarar a presente diversidade tecnológica, seus impactos e o desafio de construir um sistema de comunicação que propicie estabelecermos uma conversa entre os 208 milhões de brasileiros, o real todo mundo do nosso país.
Fonte: Zero Hora/Caderno DOC/Filipe Techera (criador e pesquisador da investigação Todo Mundo Quem?) em 02/09/2018.