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Desumanização — Contra o Embrutecimento
Desumanização — Contra o Embrutecimento

CONTRA A DESUMANIZAÇÃO

Em Porto Alegre, um homem é agredido enquanto as pessoas ao redor estão preocupadas apenas em filmar. No litoral sergipano, os celulares registram a agonia de outro em uma viatura policial transformada em câmara de gás. Em Foz do Iguaçu (PR), um assassinato é cometido em uma festa com temática política. Trata-se, afinal, de uma crise coletiva de falta de empatia, avaliam psicólogos, psiquiatras e psicanalistas ouvidos por ZH. Mas é possível fugir do embrutecimento e da dessensibilização, indicam os especialistas

 

Diariamente, casos envolvendo violência física, psicológica, moral e sexual são compartilhados milhares de vezes nas redes sociais e acumulam-se nos noticiários. Nos últimos dias, houve quem agredisse e não se importasse em ser filmado durante o ato. Houve também registro de violência em área pública acompanhada de sorrisos de deboche e da promessa do compartilhamento da gravação — sem o medo das consequências legais de tal gesto. Sem contar o fato de que, hoje, atos de agressão dificilmente passam incólumes sem o registro em vídeo, tamanha a vigilância existente na sociedade. E são muitos atos, reiteradamente.

 

Ainda que inexistam números confirmando o aumento desses casos de violência, e mesmo estudos que listem os motivos para a aparente falta de empatia com a subjugação e o sofrimento alheios, psicólogos, psiquiatras e psicanalistas ouvidos por Zero Hora acreditam que se trata de uma tendência real, justificada por diferentes fatos da vida em sociedade hoje. Um desses fatores, citado por todos, é a conformação de um cenário pós-traumático. A pandemia pode ainda não ter oficialmente terminado, mas a sensação coletiva já é de uma "ressaca" do período, sobretudo no que diz respeito aos problemas de saúde mental — diretamente conectados com esse embrutecimento e essa dessensibilização das pessoas.

 

Para o psiquiatra Vitor Calegaro, professor da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e coordenador do estudo COVIDPsiq, o fenômeno atual tem semelhança a diversos outros na História, registrados em períodos de pós-guerra e pós-epidemia. Na Praga Ateniense, como ficou conhecida a epidemia que atingiu a cidade grega de Atenas entre 430 a.C. e 427 a.C., por exemplo, além da mortalidade em massa, o desespero levou as pessoas a ficarem indiferentes às leis dos homens e dos deuses. Muitos se entregaram à autoindulgência. Já na Idade Média, durante e logo após o período da peste bubônica, que matou até 200 milhões de pessoas entre a Europa e a Ásia, confessores itinerantes, sob a aprovação das autoridades religiosas para ouvir confissões, vendiam as indulgências — muitas falsas — a quem pagasse por elas.

— Nesses contextos de crises coletivas, as pessoas passam a ter comportamentos mais instintivos e até fora do que é considerado normal. Perdem a noção por uma questão de sobrevivência e, às vezes, maldades acabam aflorando — relata Calegaro.

 

O professor cita o livro Psychiatry of Pandemics: a Mental Health Response to Infection Outbreak (ainda sem lançamento no Brasil), no qual o autor, Damir Huremovic, afirma que "as pandemias incluem não apenas a disseminação de doenças físicas, mas de propaganda racista, antissemita, homofóbica e pró-violência, agendas límbicas que servem para permitir que nossos desejos agressivos sejam simultaneamente saciados, projetados no outro e destruídos sem culpa".

— Particularmente, no Brasil, estamos vivendo tempos em que a violência está muito banalizada. Basta ver o noticiário para encontrarmos assuntos relacionados a esse tema a todo instante. No convívio diário com esse tipo de situação, já não deixamos de perder o sono por notícias violentas. Acabamos perdendo a sensibilidade, não no sentido afetivo da palavra, mas no sentido do nosso organismo não entrar mais no estado de alarme por qualquer notícia. A não ser que o fato ocorra conosco. Vamos levando como certa normalidade, mas não podemos deixar cair na banalização — ressalta Calegaro.

 

INTOLERÂNCIA COM O DIFERENTE

 

A psicóloga e professora do curso de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) Luísa Habigzang, que também é coordenadora do Grupo de Pesquisa Violência, Vulnerabilidade e Intervenções Clínicas na mesma instituição, aponta a importância de olhar esse possível fenômeno de violência generalizada como coletivo, E NÃO INDIVIDUAL. Luísa ressalta que estamos vivenciando um momento em que a coletividade, de um modo geral, se mostra mais violenta e pouco empática com o sofrimento do outro.

— Podemos entender a pandemia como um evento estressor coletivo que piorou muito as condições de vida das pessoas. Todos, uns mais e outros menos, vivenciaram de uma forma negativa a experiência do coronavírus. Vivemos um processo de extremo estresse.  É possível observar um aumento de níveis de depressão, de ansiedade, de estresse e de consumo de substâncias como o álcool. E essa piora, em termos de saúde mental, está atrelada a toda uma questão gravíssima de desemprego, de insegurança alimentar e habitacional que estamos vivendo no nosso país. O empobrecimento também eleva níveis de estresse. As pessoas estão esgotadas — explica a psicóloga.

 

Embora reconheça que as manifestações de violência, em suas mais diversas matizes, sempre existiram, Luísa acredita que estejamos vivendo "um momento mais delicado como sociedade, como coletividade", no qual os fatos ganham ainda maior proporção a partir da disseminação nas redes sociais.

— Quando ocorre a divulgação de um caso como o da menina vítima de estupro (garota de 11 anos, de Santa Catarina, que teve negado por uma juíza o aborto depois de ter sido abusada sexualmente), que viveu uma violência institucional ao ter seus direitos previstos em lei inicialmente negados, vemos a mobilização de pessoas buscando apoiar e de outros grupos com julgamentos morais muito severos e expressões de ódio e de violência psicológica. As pessoas se sentem mais autorizadas a expressar a violência. Isso agrava a situação — explica.

 

Nessas situações de crise, acrescenta a professora, costuma-se observar um aumento de violência, porque as pessoas não toleram suas próprias frustrações e não conseguem lidar com a diferença:

— Destruir o outro parece que é uma forma de manter o pouco privilégio que o cidadão ainda tem ou alguma garantia do que precisa. O que vemos em situações de crise, de pós-guerra e também de pós-pandemia, como a situação atual, é que as pessoas ficam mais violentas. E hoje, diferentemente de outros tempos, temos as redes sociais. Os grupos se autorreforçam nas redes e isso gera um impacto maior.

 

Luísa vai além, frisando que sociedade brasileira especificamente estaria passando por processo de embrutecimento:

— Vejo duas pessoas brigando, lutando e se machucando e as pessoas ficam filmando e rindo. O que está ocorrendo conosco enquanto coletivo e que se está perdendo essa empatia e o cuidado com o outro? Isso só mostra que não estamos bem enquanto sociedade

 

A BANALIZAÇÃO DO ATO VIOLENTO

 

No mês passado, uma agressão acabou em um assassinato filmado por pedestres em Porto Alegre. O aposentado Linton Ferreira, 46 anos, foi morto durante uma briga em meio a uma aglomeração noturna no Bom Fim. A cena em que ele é agredido e morto foi registrada por diversas pessoas com seus celulares e compartilhada nas redes sociais. Numa das gravações, é possível ouvir pessoas rindo e uma delas comentando que quem está filmando poderia postar o vídeo. O agressor, que chegou a arrancar parte da orelha da vítima, foi preso e depois indiciado por homicídio qualificado por meio cruel.

 

Mesmo que, nesse caso específico, não se saiba exatamente por qual motivo as pessoas riram e seguiram filmando, sem se importar com o que ocorria do outro lado da calçada, a doutora em Psicologia e professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Unisinos Ilana Andretta, que também é coordenadora do grupo de pesquisa Intervenções Cognitivas e Comportamentais na instituição, destaca uma exacerbação de determinados comportamentos em prol da busca de likes, de compartilhamento dos vídeos e de mais seguidores nas redes.

 

Para Ilana, que pesquisa o comportamento humano em relação às mídias sociais, a maior reflexão a ser feita, no momento, é sobre o que está ocorrendo em relação ao efeito das mídias sociais nos comportamentos humanos.

— Que tipo de sociedade estamos criando que, em prol dos likes, dos compartilhamentos e de seguidores, produz conteúdos que banalizam situações de violência? É como se eu fosse um espectador da vida real e estivesse transmitindo a realidade, passando por cima dos princípios de preservação da espécie — comenta a professora da Unisinos.

 

De acordo com Ilana, pesquisas mostram que as redes sociais causam o mesmo circuito neuroquímico que a dependência causada pelo uso de drogas.

— Talvez essas pessoas que filmam cenas de violência sem se preocuparem com a situação registrada estejam buscando a gratificação do compartilhamento, o que é um a deturpação do senso de humanidade. A sociedade precisa fazer reflexões profundas acerca da função das redes sociais: para que elas servem, o uso que a gente está fazendo delas, e, principalmente, quando envolve violência, as pessoas estão perdendo princípios da convivência social em prol do vínculo nas redes — afirma.

 

O psicanalista Robson de Freitas Pereira, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa), adiciona a possibilidade de aquelas pessoas terem encontrado na filmagem do acontecido uma forma de se defender da situação, na falta de saber com o agir.

— O riso não acontece só em momentos de graça, mas também em momentos de angústia. Efetivamente, hoje, as novas tecnologias também podem ser usadas para testemunhar certas situações. A outra justificativa (para o riso) é "não consegui fazer outra coisa se não filmar e pôr na rede", como se fosse algo cômico mas que, na verdade, não é. É trágico. Estamos em um momento de muita tensão — enfatiza.

 

O pesquisador de mídias digitais Marcelo Fontoura, que é professor na PUCRS, destaca que as redes sociais são uma ferramenta que pode auxiliar no processo de radicalização, mas não são o único motor. Segundo Fontoura, geralmente, a pessoa com acesso às redes já tem questões pessoais que a deixam propensa ou está em um grupo social capaz de influenciá-la.

— O que a rede social pode influenciar é na normalização de um certo discurso e um certo efeito chamado "buraco de minhoca". A pessoa pesquisa determinado assunto e as recomendações começam a indicar temas e grupos relacionados ao assunto cada vez mais extremos. A rede social não transforma as pessoas: é a pessoa quem dá o primeiro passo — reforça.

 

O pesquisador salienta a existência de literatura acadêmica indicando a dúvida sobre as redes sociais estarem radicalizando as pessoas. As pesquisas, até agora, comenta Fontoura, apontam de modo geral que é incerta a resposta. Para ele, é muito difícil as plataformas limitarem discursos considerados inadequados por conta da quantidade de postagens feitas por segundo. A remoção de conteúdo automatizada, sustenta o professor, é difícil:

— Cabe ao ser humano fazer esse filtro, especialmente quando estamos falando de crianças e adolescentes acessando os conteúdos de ódio. O cuidado precisa ser redobrado, para que elas consigam entender o que estão vendo e o que não podem ver.

 

No Brasil, acredita Fontoura, é o momento de exacerbação política que gera o embrutecimento, a perda de empatia e a própria confiança na coletividade. Ao mesmo tempo, o professor lembra que situações como essa já existiram em outros momentos da História. A diferença é que tínhamos mais dificuldade de acesso à informação.

— Precisamos ter mais filtros e desconfiar de nós mesmos. É dito, constantemente, para desconfiarmos dos outros, mas um ponto importante é nos questionarmos: por que tenho tanta certeza de que estou com a razão ou o meu lado está certo? Parece autoajuda, mas é um caminho importante sermos vigias de nós mesmos: quando estamos sendo extremistas? Quando estamos cedendo a instintos mais primitivos? — aponta Fontoura.

 

A TRADIÇÃO AUTORITÁRIA

 

Outro fator que contribui para gerar estresse e irritabilidade, indicado pelo psiquiatra Vitor Calegaro, é dormir menos horas por dia. Publicada neste ano, a pesquisa acadêmica Qualidade do Sono na População Geral Brasileira: um Estudo Transversal, que envolveu membros da Associação Brasileira do Sono, destacou que 65,5% dos 2.635 adultos de várias regiões do país foram considerados maus dormidores. Como se já não bastasse isso, o brasileiro também passou a dormir menos na pandemia. Antes, a média nacional era de sete horas 12 minutos. A partir da chegada do coronavírus, caiu para seis horas e 23 minutos.

 

O estudo traçou ainda o perfil de quem mais sofre com sono ruim: mulheres jovens, que compartilham a cama com outra pessoa e usam smartphone e mídias interativas na hora de dormir.

 

Ainda que a cada década, segundo especialistas, as pessoas estejam dormindo cada vez menos, resultados de estudos recentes indicam como fator a mais para a falta de sono o efeito da pandemia e das condições trazidas por ela: isolamento social, perdas, luto, medo de contrair o vírus, preocupação com a família e ansiedade em relação ao futuro.

— Dormir menos é um fator de estresse e irritabilidade. Estamos mais estressados, mais ansiosos e com várias dificuldades na vida, e isso pode causar um aumento da agressividade impulsiva. Tudo junto leva a um estado mental de termos menos racionalidade sobre os nossos atos. Vamos ficando com mais sangue quente e pensando menos nas coisas. Além desses atos de violência física, tem toda uma violência que ocorre dentro dos ambientes de trabalho em função da irritabilidade. Há uma paranoia coletiva. Certas coisas apavoram mais e, assim, discursos de ódio encontram mais espaço. O estado atual confirma o que os especialistas em saúde mental já imaginavam: o vírus poderá ser combatido, mas o legado emocional da pandemia vai perdurar — acrescenta Calegaro.

 

É um combo que contribui para a dessensibilização, concordam os especialistas ouvidos por ZH. Mas e qual seria a saída para uma retomada da empatia, da sensibilidade para com o outro? O psicanalista Robson Pereira justifica que o Brasil não estaria regredindo, mas, isso sim, expondo de forma mais explícita uma determinada faceta da sociedade brasileira: a da tradição autoritária e violenta. Para ele, reforçar um caminho de confiança no futuro começa por olhar para o lado com mais compreensão e capacidade de entendimento.

— O primeiro medo a ser enfrentado é que a retomada do espaço público pós-pandemia só é feita juntamente com os outros. Não se faz sozinho. Porque sozinho ficamos entregues somente ao medo da violência social, que sempre existiu e seguirá existindo — aponta Pereira.

 

Já Calegaro ressalta que, em cenários de crise, as pessoas precisam de guias, de bons exemplos de formadores de opinião. Pessoas tidas como referências para a sociedade, aponta o psiquiatra, podem contribuir auxiliando na reflexão sobre este momento.

— Temos visto uma crise ideológica no sentido de quem são os nossos ídolos. Precisamos refletir mais, nos acalmar mais e entender sob uma ótica mais ampla o que está ocorrendo conosco, com a humanidade. Porque a gente precisa se preparar para os próximos anos. Se estamos preparados para reconhecer uma situação de violência, podemos reagir de uma melhor forma. Precisamos aprender com o que está ocorrendo para que a nossa situação não piore ainda mais. Não estou sendo pessimista, mas realista — diz Calegaro, acrescentando uma nota otimista em meio a esse cenário sombrio:

— As crises fazem parte da humanidade e são pontos de virada na História.

 

COMO NÃO EMBRUTECER

 

Quando o ser humano passa a viver "no automático", é preciso acender o alerta e retomar a consciência do que está ocorrendo. Como fazer isso?

Siga uma série de dicas:

 

— Tenha com o princípio de vida: nenhuma forma de violência é aceitável, em qualquer ambiente. Não se pode banalizar a violência.

 

— Perceba as "pequenas violências" do dia a dia: o grito, a raiva, o gesto obsceno, e procure refletir sobre os momentos em que se está agindo com violência, com raiva ou com impulsividade.

 

— Tome consciência das suas emoções e trabalhe com elas: o que te faz ter raiva? O que te faz sentir medo? Como você lida com os outros?

 

— Se você se percebe agindo de forma agressiva, além de procurar formas de lidar com sentimentos interiores que levam a agir dessa forma, pense também nas pessoas para as quais você está direcionando a violência. Que conflitos levaram a isso? Há como resolver esse conflito sem agressividade?

 

— Aprenda e exercite formas de comunicação não violenta: procure comunicar o que te incomoda sem levantar a voz, sem fazer um drama ou sem tom emocional. Comunique de forma clara, objetiva e direta.

 

— Não discuta com a cabeça quente. O melhor momento de se comunicar é quando estamos de cabeça fria.

 

— Se a conversa começa pacífica, mas os ânimos se elevam, interrompa, se acalme e recomece depois, com a cabeça fria.

 

— Se não há conversa ou diálogo em uma relação interpessoal, é preciso se perguntar se é possível tolerar essa forma de relação com o outro? Se é intolerável, o melhor é se afastar da pessoa que te faz mal e se aproximar de quem te faz bem.

 

— Estresse crônico, irritabilidade, crises de raiva, agressividade e medo podem representar problemas de saúde mental. Nesses casos, procure a ajuda de um profissional da área. Faça terapia com psicólogo, psiquiatra ou psicanalista e, juntamente com esses profissionais, avalie o que está ocorrendo.

 

Fonte: Psiquiatra e professor da UFSM Vitor Calegaro. 

Fonte: Zero Hora/Caderno DOC/Aline Custódio (aline.custodio@zerohora.com.br) em 17/07/2022