ÚLTIMA ESTAÇÃO
Seria o Antropoceno a quadra derradeira do planeta como o conhecemos?
Quadro Pessimista: O declínio da biodiversidade é dramático, e a causa, conhecida: a ação humana
O conceito de anthropos (humano) kainos (novo) foi criado pelo Nobel de Química, Paul Crutzen, em 2000. O antropoceno designa a era geológica marcada pelo impacto causado pelo homem no planeta. Nossas construções físicas (massa antropogênica) há muito transcendem a massa conjunta dos seres vivos (biomassa), sem considerar o absurdo volume de lixo. Para se ter ideia, em Nova York o peso total de edifícios, viadutos, pontes, carros, etc. ultrapassa o peso total dos peixes nos oceanos e rios; enquanto a concentração de plástico é o dobro da concentração de animais terrestres e aquáticos sobreviventes na enferma Gaia, em fase terminal.
Dados da plataforma intergovernamental Ipbes Global Assessment apontam um quadro dramático. O declínio da biodiversidade planetária se acentua, com a extinção dos ecossistemas. Um milhão de espécies vão desaparecer, se não forem restaurados seus habitats originais. Os grupos exóticos aumentaram em 70%, desde 1980. Sem os predadores naturais, o peixe-leão do Indo-Pacífico ameaça o Caribe e o Atlântico, e a palometa da Bacia do Rio Uruguai invade a Bacia do Jacuí e a Lagoa dos Patos, no Sul do Brasil, inviabilizando a pescaria dos nativos.
A situação é insuportável, aponta a geradora pioneira em energia eólica e uma das maiores empresas de eletricidade por capitalização de mercado. Quer dizer, o próprio capital admite o perigo. Não é por falta de conhecimento que a vida se degrada, e o degelo corrói ambos os polos. Apesar disso, as nações ricas recusam o pleito de ressarcimento (US$ 1,3 trilhão) às nações pobres, pelas sequelas da contaminação em nome de uma discutível modernização. No plano internacional, as classes dirigentes lavam as mãos e passam pano na dívida moral. Danem-se os povos e as gerações atingidas. A ambição de ganho desenfreada impede o comprometimento com o futuro. As normas, exigidas para a preservação das florestas tropicais, não encontram correspondência em medidas efetivas na área de energia e combustíveis fósseis, principais responsáveis pela poluição.
Os países desenvolvidos ainda não se comprometem com a transição da energia suja para fontes renováveis. A pressa de acumulação inviabiliza a implementação de uma energia limpa. Tempo é dinheiro, alega-se na Bolsa de Valores. Os compromissos para a redução do efeito estufa são rejeitados. Com o que o limite de aquecimento da Terra em 1,5°C, aprovado no Acordo de Paris (2015), vira uma quimera inalcançável. A desrazão se espalha, anuncia o portfólio de qualquer consultoria ambiental. Existe um amplo consenso a respeito. Porém, os Estados nacionais não reúnem condições políticas sob a globalização para estabelecer uma regulamentação rígida e disciplinadora, que institua a racionalidade na economia mundial.
Para evocar uma metáfora recorrente, a humanidade viaja em um trem-bala na direção do abismo sem que os poderosos puxem o freio de emergência para conter o avanço da locomotiva. O capitalismo neoliberal mostra-se incapaz de cancelar as agressões aos biomas existentes. Ao contrário, agrava-as. Os fracassos das sucessivas Conferências das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas provam que, de boas intenções, o inferno está cheio. Memorandos perderam a eficácia, não bloqueiam a acelerada dinâmica disruptiva da engrenagem.
"Neste contexto, impõe-se a urgência de um outro tipo de democracia: a socioecológica ou a ecossocialista, que nada tem a ver com o frustrado socialismo real já desaparecido. Devemos gerar uma nova consciência", assinala frei Leonardo Boff em artigo sobre o tema. Trata-se de estender direitos para o meio ambiente. A crítica radical ao produtivismo e ao consumismo é incontornável, no presente. A questão supera as relações de produção e as relações de propriedade, isto é, as ideologias. Urge reestruturar o aparelho produtivo poluente, tendo no horizonte, o bien vivir y convivir livre do espírito dominador do oitocentismo. Em lugar da exploração, que se faça qual São Francisco a comunhão na natureza com o irmão Sol e a irmã Lua.
A estratégia visa à reversão da lógica produtivista e da rentabilidade às expensas da Mãe-Terra. O giro civizacional implica na superação do modo de operar ocidental, com o empoderamento da ONU para coordenar as sanções. Os atentados às etnias indígenas não visam somente ao ouro, ao diamante e a cassiterita, mas a suprimir o exemplo de ecossocialismo dos povos originários. Fica a indagação de Ailton Krenak para quem canta e dança, para o céu: "Como ir além da violência, que confirma todos os dias o equívoco da narrativa que diz que o mundo foi criado para nos servir e que nós estamos aqui para incidir sobre ele? Como deixar de acreditar no mundo como uma plataforma extrativista? Como escapar do vírus gigante homo sapiens?".
Fonte: Jornal Zero Hora/Caderno DOC/Luiz Marques/Docente de Ciência Política na UFRGS, ex-secretário da Cultura do RS, em 23/07/2023