COM A PALAVRA: CARLOS NOBRE
Climatologista, 71 anos — Pioneiro em estudos sobre as transformações da região amazônica. É o primeiro brasileiro a entrar para a Royal Society de Londres após D. Pedro II
A AMAZÔNIA ESTÁ À BEIRA DO PRECIPÍCIO
Alguns clubes são para poucos. É o caso da prestigiosa Royal Society, sediada em Londres, no Reino Unido: trata-se da mais antiga sociedade científica ainda em atividade no mundo, criada em 1660. Mas o climatologista Carlos Nobre entrou para o grupo seleto formado por seus membros. Por suas contribuições à ciência, esse paulista de 71 anos é o segundo brasileiro nato a entrar para a instituição — quem o antecedeu na honraria foi D. Pedro II. Engenheiro, doutor em Meteorologia pelo Instituto de Tecnologia de Massachussetts (MIT) e pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP), ele estuda há quatro décadas a relação entre clima e a região amazônica. Nesta conversa com ZH, alerta: a Amazônia está chegando a um ponto de degradação do qual não será possível retornar.
O senhor é o segundo brasileiro nato da história a ser eleito para a Royal Society, ao lado do Imperador D. Pedro II. Por que acha que foi escolhido agora e o que representa esse reconhecimento para o senhor?
Me parece que tem muito a ver com a preocupação do mundo científico com o risco de a Amazônia, a maior floresta tropical do mundo e que contribui muito para a estabilidade climática do planeta, desaparecer. Me dedico à Amazônia há 40 anos. Em 1990, publicamos os primeiros artigos científicos mostrando o risco da floresta com desmatamentos, em uma época na qual não se falava muito sobre mudanças climáticas. Comecei com as atividades de campo em 1999, e o experimento continua até hoje: mais de 25 sítios de pesquisa em áreas de coleta em floresta, pastagem e até mesmo no cerrado, que permitem um entendimento aprofundado do que ocorre na região amazônica. Desde 2008, tenho proposto o que seriam soluções para um futuro sustentável para a Amazônia. Depois que me aposentei do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), onde passei 37 anos, criei o projeto Amazônia 4.0 para pensar em um desenvolvimento sustentável para a floresta, com melhoria socioeconômica de todas as populações, sem destruir a mata — ao contrário, restaurando-a. A Royal Society me elegeu pela minha carreira, pela importância da floresta, mas também porque agora, nos últimos anos, trabalho na busca de soluções.
Explique melhor essas suas pesquisas e sobre o que o senhor chama de "Ponto de não retorno".
Em 1988 e 1989, fui pesquisador-visitante na Universidade de Maryland (EUA) e depois publiquei artigos buscando responder: se houver um grande desmatamento na Amazônia, como isso vai mudar o clima? O clima muda tanto que a floresta poderia não voltar? A resposta que encontrei é muito preocupante: em pesquisas com modelos matemáticos, substituímos a floresta por pastagem de pecuária. E a resposta é: sim, com o desmatamento, o clima em todo o sul da Amazônia — que inclui Amazônia boliviana, Acre, Rondônia, sul do Amazonas, norte de Mato Grosso, sul do Pará e até o oeste do Maranhão — muda. Fica mais seco. A estação seca, que dura no máximo quatro meses, passará a durar de cinco a seis meses. Isso não é mais clima de floresta, mas de savana, que nós chamamos de cerrado. Isso me fez criar a hipótese da "savanização" há 32 anos. A floresta se tornaria um bioma degradado, que não seria igual ao cerrado, mas que teria a aparência de um cerrado muito degradado, com poucas árvores e muito menos biodiversidade do que o cerrado. Isso chamou a atenção da comunidade científica mundial. Centenas de estudos foram feitos depois, chegando à conclusão de que, mesmo com desmatamento zero, se a mudança climática elevar a temperatura em 4°C, a Amazônia virará uma savana degradada.
O quão próximos estamos desse ponto de não retorno?
Muito próximos. Fizemos estudos com projeções, mas inúmeras pesquisas no dia a dia da Amazônia, muitas das quais participei, não deixam nenhuma dúvida de que a Amazônia está à beira do precipício. Os desmatamentos continuaram a aumentar, então a floresta, que era muito resiliente ao fogo, começa a se abrir, aí o sol entra e a vegetação do solo fica inflamável. Quando a floresta está fechada, só 4% da radiação solar chega ao solo, portanto nunca seca o solo. Mas, quando a floresta começa a ser degradada, o sol entra direto e seca, aí o fogo começa a se propagar pelo chão. O fogo queima até três metros de altura do tronco da árvore e aí a árvore morre, caem todas as folhas no solo e entram em processo de degradação, jogando gás carbônico para a atmosfera. O dado que mais nos preocupa é que, de 1979 até agora, a estação seca no sul da Amazônia já ficou cinco semanas mais longa. São 2,3 milhões de quilômetros quadrados dos Andes até o Atlântico. O lugar mais próximo do ponto de não retorno é entre o sul de Rondônia e o norte do Mato Grosso, incluindo o sul do Amazonas e o sul do Pará. Estamos vendo a estação seca 2°C a 3°C mais quente e até 30% mais seca, com menos chuva. Entre o norte do Mato Grosso e o sul do Pará, vários estudos mostram que a floresta se tornou uma fonte de carbono. Na década de 1980, a floresta removia mais de 2 bilhões de toneladas de gás carbônico DA ATMOSFERA. Agora, nessa região, o processo é o contrário: já virou uma fonte de carbono. A floresta como um todo já está quase virando uma fonte de carbono. Não são só modelos matemáticos que fazem projeções, vemos isso no dia a dia da região.
O quanto é esse "muito próximo" do ponto de não retorno?
De 10 a 20 anos. Alguns cientistas acham que o sul e o sudeste da Amazônia já viraram. Eu acho que a gente ainda pode salvar a Amazônia, mas temos que fazer muito para isso. Temos no máximo 20 anos para salvar a Amazônia.
Que tipo de impacto podemos esperar se a Amazônia se tornar uma "savana degradada"?
O impacto para o clima global e especialmente para a América do Sul será enorme. Se a Amazônia de fato completar o processo de "savanização", ganhamos no mínimo 300 bilhões de toneladas de gás carbônico. E isso exatamente no momento histórico em que o planeta tinha de lutar para nos salvar da emergência climática. Para atingir sucesso no Acordo de Paris e não deixarmos o clima do planeta passar de 1,5C de aquecimento global — lembrando que globalmente já aquecemos 1,1°C —, o máximo que podemos emitir em gás carbônico são 400 bilhões de toneladas, contando combustível fóssil, agricultura e desmatamento. Mas só a perda de 70% da floresta amazônica jogaria na atmosfera 300 bilhões de toneladas.
Como o desmatamento na Amazônia pode afetar o clima regional?
A Amazônia recicla água. Ventos alísios trazem umidade do Oceano Atlântico, formam-se nuvens, cai a chuva, grande parte vai para as raízes, que transportam a água até as folhas. Quando as folhas transpiram, o vapor umidifica a atmosfera e ajuda a formar novas nuvens e chuva. Uma molécula de vapor d'água que entra no Oceano Atlântico recicla entre cinco e oito vezes antes de sair da Bacia Amazônica. Essa reciclagem é muito importante, pois estabiliza a temperatura. A reciclagem de vapor d'água ainda leva vapor ao sul da Bacia Amazônica, o que alimenta sistemas de chuva do Cerrado, do Sudeste, da Bacia do Rio Paraná, do Uruguai, da Argentina, do Paraguai e do sul do Brasil. Se desaparecer a floresta, as chuvas nessas regiões diminuirão, prejudicando, por exemplo, a agricultura. Outro impacto: sem a floresta, a temperatura sobe muito na região amazônica, de 4°C a 5°C, o que já acontece em regiões de pastagem na Amazônia. O ar que passa por lá e chega ao Cerrado fica de 4°C a 5°C mais quente, o que perturba a ecologia do Cerrado e, principalmente, a agricultura dessa região, que já está próxima de um limite, ou seja, de não haver mais potencial de agricultura.
O Rio Grande do Sul enfrentou um período de seca e de queimadas, com recorde de incêndios, o que prejudicou a agricultura local. O senhor está dizendo que um cenário desses se tornaria ainda mais favorável com a degradação da Amazônia?
Sim. Esses acontecimentos, no Rio Grande do Sul, têm muito a ver com as mudanças climáticas, mas não só isso. Ao se diminuir a floresta, há menos vapor d'água chegando ao Estado, principalmente nos meses de julho, agosto e setembro. A estação chuvosa na região fica mais seca. Isso altera muito o clima.
O Brasil foi protagonista durante muitos anos nas discussões sobre política climática, mas perdeu esse espaço. Como o senhor enxerga o atual momento da política ambiental brasileira?
É muito preocupante. O governo atual traz um modelo ultrapassado de desenvolvimento da época da ditadura militar, com superexpansão do agronegócio em cima da Amazônia e do Cerrado. A floresta era um inimigo do desenvolvimento. Hoje, só não tiraram o Brasil do Acordo de Paris porque a Ministra de Agricultura comentou que o país fecharia as exportações para Europa e até para a China. Na campanha de 2018 não houve grande discussão sobre a questão ambiental. Creio que isso muda em 2022.
As mortes do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Philips chamaram a atenção do mundo. Parece uma repetição do caso Dorothy Stang ou Chico Mendes. Como o senhor enxerga e contextualiza esse novo crime?
A Amazônia é um dos lugares que, ao longo das últimas décadas, têm as maiores taxas de assassinato de líderes indígenas, ambientais, religiosos e de defensores de direitos humanos. Não só o Brasil: outros países amazônicos também. Mas houve uma explosão recente do crime organizado que tem muito a ver com esse discurso de que o modelo para a Amazônia deve ser o de 50 anos atrás. O ex-ministro Ricardo Salles chegou a dizer que gostaria de tirar a floresta para melhorar a qualidade de vida das populações amazônicas. Só que inúmeros estudos mostram que a desigualdade é maior nas áreas desmatadas, onde há agricultura de baixa produtividade, que só beneficia grandes proprietários. As mortes de Bruno e Dom se inserem nesse contexto, mas constituem uma consequência do crescimento do crime organizado, incluindo o narcotráfico, que se interconectou entre os países amazônicos. O fluxo da cocaína que sai do Peru e da Colômbia e passa pelo Brasil, inclusive no Vale do Javari, para ser consumida no nosso país e exportada para a Europa, existe há décadas. Recentes investigações de jornalistas já mostraram a ligação do PCC e do Comando Vermelho com o garimpo ilegal e a grilagem. É um crescendo que se beneficia do enfraquecimento das políticas ambientais e da ação da Polícia Federal.
Governistas criticam países europeus por terem desmatado seu continente e opinarem sobre a preservação da Amazônia, escondendo interesses na exploração de minérios. O que o senhor acha da pressão internacional sobre o governo do Brasil?
Esse é um discurso falso que vem da época da ditadura militar. Os governos militares falavam em soberania territorial. Mas nunca houve ameaça de invasão. E foram os governos militares que abriram a porteira para empresas canadenses e americanas explorarem os recursos minerais. O manganês do Amapá era todo exportado para os EUA. O alumínio fica até hoje com uma grande empresa canadense. A única mudança do discurso governamental de hoje é que exclui os EUA, concentrando a suposta ameaça nos europeus. Só que, efetivamente, segue não havendo ameaça, até porque a exploração mineral na Amazônia ocorre em parceria com as empresas dos países desenvolvidos. Eles não precisam invadir porque já usufruem desse modelo extrativista na prática.
Como o senhor compara a forma como o Brasil preserva a Amazônia frente à preservação que é realizada nos outros nove países nos quais a floresta também está presente?
A maior taxa de desmatamento se dá na Amazônia brasileira. Mas Bolívia, Peru, Equador, Colômbia e Venezuela têm o mesmo mecanismo desenvolvimentista do Brasil. O problema é muito semelhante, porque diz respeito ao modelo adotado. Há hidrelétricas no declínio dos Andes, onde foram encontradas reservas de petróleo e gás natural. Na Amazônia colombiana, depois da pacificação com as Farc, há cerca de cinco anos, está havendo uma enorme expansão da pecuária destrutiva, a mesma que vemos no Brasil. Inúmeros grileiros brasileiros foram para lá, estão grilando terras na Colômbia e transformando-as em fazendas pecuárias, igualzinho ao que ocorre no Brasil. Treinam colombianos para isso. Suriname e Guiana Francesa preservam mais a floresta, mas é porque são países com populações muito pequenas, e não porque há diferença conceitual de quererem proteger a Amazônia.
Na Universidade de São Paulo (USP), o senhor conduz o projeto Amazônia 4.0, focado em melhorar as cadeias produtivas de forma sustentável. Como a ciência pode impulsionar um modelo de economia e de desenvolvimento sustentáveis?
Trata-se de uma iniciativa de mostrar viabilidade em trazer inovações tecnológicas para capacitação de populações rurais e urbanas e para desenvolver uma bioeconomia com agregação de valor aos produtos da floresta. A ideia é voltar para trás e ver que os indígenas que chegaram à América do Sul 12 mil anos atrás criaram um modelo que sempre mantinha a floresta em pé. Eles desenvolveram a ciência indígena, e podemos mesclar a ciência ocidental com a ciência dos povos originários para desenvolver o que chamamos de uma nova bioeconomia de floresta em pé. Temos exemplos de sistemas agroflorestais, com cooperativas que produzem produtos da floresta e comercializam esses produtos, com muitos benefícios para populações amazônicas.
O senhor poderia dar um exemplo dessa nova bioeconomia?
O açaí, que traz mais de US$ 1 bilhão para a economia do Brasil e melhorou a condição de mais de 400 mil famílias, principalmente no Pará. Queremos transformar o Brasil em um país de classe média? Como fazer isso? A ideia é industrialização. Várias cooperativas da Amazônia que produzem produtos da floresta levaram profissionais a atingir a classe C e alguns até a classe B. Na Holanda, todos os agricultores familiares, que são 75% das fazendas do país, são de classe média. Aqui no Brasil, 95% da agricultura familiar é da classe baixa. Como inverter esse modelo? A Amazônia 4.0 é para demonstrar que a agregação de valor aos produtos da floresta é muito importante para criar uma economia mais vigorosa. Há ainda outros componentes do Amazônia 4.0, como a criação de uma escola de negócios sustentáveis para a Amazônia, em parceria com a Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Também queremos instituir o Instituto de Tecnologia da Amazônia (ITA). Fiz meu doutorado no MIT (Massachussetts Institute of Technology, nos EUA) e vi o quão importante é ter um instituto de tecnologia avançada. Vamos construir um Instituto de Tecnologia da Amazônia panamazônico para alimentar essa nova bioeconomia, com graduação, pós-graduação e laboratórios avançados, com abertura para comunidades indígenas. Seria em parceria público-privada. Queremos trazer empresas para contribuir.
Ao mesmo tempo, ativistas e intelectuais como o indígena Ailton Krenak criticam a própria ideia de desenvolvimento sustentável, por ser baseada na exploração capitalista do meio ambiente. Como o senhor enxerga essa crítica e esse debate?
Não discordo do Krenak. O açaí, que virou produto mundial, começou a ter risco de monocultura, o que pode levar ao desmatamento. Mas esse novo modelo de bioeconomia leva em consideração que a escala do desenvolvimento não é de expansão de mono culturas. A enorme diversidade da Amazônia indicaria o modelo da nova bioeconomia. É muito diferente de tirar toda a floresta e substituí-la por pastagem e agricultura da soja ou de milho. Trata-se de um modelo que mantém a diversidade na economia. A escala é pequena, mas precisa ser em grande número para beneficiar as populações amazônicas.
O senhor já mencionou em entrevista QUE Acredita que a virada para uma nova forma de lidar com o meio ambiente ocorrerá graças à nova geração. Mas há pressas para haver mudança. Os jovens vão nos salvar? Vai dar tempo? Há o que fazer?
Há o que fazer. Um pouco do meu otimismo se dá porque essas gerações mais jovens de 15 a 24 anos, a geração da Greta Thunberg, têm uma visão diferente. E isso não é só na Europa. Eles têm uma visão menos materialista, de que salvar o planeta da emergência climática é essencial para o futuro deles. Vejo com otimismo a hora em que essa geração entrar no mercado de trabalho e na política. Eles terão muito mais poder daqui a 10 ou 20 anos e começarão a transformar o cenário rapidamente. Assim, poderemos atingir o Acordo de Paris e zerar as emissões até 2050, zerar o desmatamento. Se eu fosse pensar apenas pela minha geração, estaria pessimista. Sou otimista graças à geração mais jovem.
Fonte: Zero Hora/Caderno DOC/ Marcel Hartmann (marcel.hartmann@zerohora.com.br) em 24/07/2022