ENTREVISTA COM MARY HELENA ALLEGRETTI
Antropóloga, doutora EM Desenvolvimento Sustentável
“É um equívoco falar em ‘salvação’ da Amazônia.”
Eu a conheci em dezembro de 2023, quando ela desceu de um quadriciclo, coberta de barro, chegando à Reserva Extrativista Cazumbá-Iracema, no sul do Acre, local difícil de chegar, mesmo estando a bordo de uma 4x4. Chegava DO Paraná, onde vive, para iniciar um trabalho de capacitação dos extrativistas para elaboração de projetos de geração de créditos de carbono.
O envolvimento de Mary com a Amazônia surgiu por influência do antropólogo acreano Terri Vale de Aquino, que conheceu no mestrado, na UnB. Aos 28 anos, ela subiu um rio no Acre durante cinco dias. Combinou que Terri viria busca-la um mês depois, no lugar onde a havia deixado. Ficou sozinha no meio da floresta, andando a pé, com um indígena como guia, dormindo nas casas isoladas dos seringueiros. Eram casas de tábuas de paxiúba, a palmeira mais usada para isso, e teto de palha. Lá dentro, um fogão de barro e redes. Nada mais.
Nessa região, uma mulher não podia andar sozinha. Perguntavam para ela: — Cadê o seu homem?
Não havia comunicação com outras localidades.
Foi quando ela descobriu que, no meio do Acre, ainda havia “seringal de patrão”, como os da época da Segunda Guerra Mundial. Eram os “soldados da borracha” que restavam por ali, esquecidos no meio da mata.
Mary escrevendo tudo o que via e o que os seringueiros contavam. Para eles, que não sabiam ler, vê-la escrevendo era mágico. E então veio o desejo de fazer uma escola. Ela voltou a Curitiba para retomar sua posição de professora DE Antropologia da UFPR. Resolveu fazer o doutorado na USP, com uma pesquisa que serviu de motivo para voltar ao Acre, já em 1981. Nesse período, conheceu Chico Mendes, que era vereador em Xapuri (AC) e líder sindical.
— Foi uma descoberta. Ele tinha uma visão histórica importante. Tinha sido alfabetizado por um refugiado político de esquerda que apareceu na fronteira da Bolívia com o Peru, onde a família dele morava.
Ouviam programas de rádio da China, a BBC e dos países socialistas. Chico deu aulas a Mary sobre a borracha, a Revolução Acreana, sobre tudo. Ela se deu conta de que o que havia estudado era a realidade dos “seringueiros cativos”, que viviam em uma espécie de escravidão. Quando a borracha nativa não conseguia mais competir com a cultivada na Ásia, os seringueiros ficaram sem atividade econômica. Os patrões saíram, e eles ficaram, como posseiros. Chico dizia: — Somos seringueiros libertos, não temos mais patrão.
Ele explicou a ela que, quando chegaram os paulistas, que haviam comprado as terras, os seringueiros resistiram. Iam com suas famílias para a linha de frente. Inventaram uma técnica chamada “empates” (atrapalhar, impedir). Wilson Pinheiro, que fez o primeiro empate, foi também o primeiro a ser assassinado.
Mary estava determinada a fazer uma escola para eles. E esse era também o sonho de Chico Mendes. Conseguiram uma doação de US$ 5 mil e ergueram a primeira escola dentro da floresta. Depois, com a ajuda de amigos, criaram materiais didáticos e outras casas-escolas. Chegavam nos fins de semana para as aulas e dormiam lá, voltando para suas casas no entardecer de domingo. Anos depois, o governo do Acre assumiu o Projeto Seringueiro, e muitas lideranças de hoje estudaram nessas escolas.
Depois, Mary foi assessora do Conselho Nacional dos Seringueiros e Secretária de Coordenação da Amazônia, no Ministério do Meio Ambiente. Desde 2021, trabalha na capacitação em várias Reservas Extrativistas na Amazônia, através do Instituto de Desenvolvimento da Amazônia, uma das ONGs mais antigas da região (de 1986), da qual é presidente. Ela concedeu a seguinte entrevista.
Dá para resolver os problemas da Amazônia?
É preciso uma intervenção governamental muito forte, em dois aspectos: segurança pública e políticas públicas para os moradores da floresta. Ninguém tem condições de controlar e de se proteger em relação ao narcotráfico. Todas as áreas protegidas que existem na Amazônia estão contaminadas pelo narcotráfico. É uma situação crítica, e o governo ainda não se deu conta da gravidade do que está acontecendo. Antes, o tráfico circulava por pequenos rios, dentro da floresta, e você não via. Agora estão usando os rios principais. As pessoas sempre moraram na beira do rio. Agora elas não têm mais segurança para morar ali. É um risco para todas as pessoas e para as unidades de conservação, porque são forças muito perigosas. Em todas as Resex (Reservas Extrativistas) que a gente visita tem alguma mulher que foi embora e levou os filhos, porque não tinha segurança. Eles invadem as casas para colocar a droga e cooptam aquela família para deixar ali o material em trânsito. E vão criando seu roteiro de transporte de drogas. Obrigam os jovens a trabalhar para eles. A floresta é cheia de gente. É ocupada. Só que não é densa, porque os recursos são extraídos da natureza. Se juntar muita gente na mata, não tem recursos para todo o mundo. Por isso as famílias vivem distantes umas das outras.
E o segundo aspecto, as políticas públicas?
As pessoas querem “salvar a Amazônia”. Quando encontram os moradores simples da floresta, pensam que é uma sociedade faminta. Há situações específicas de precariedade, mulheres sozinhas com filhos, idosos, deficientes. É na periferia das cidades amazônicas que está a miséria, porque os que saem da floresta não têm nenhuma qualificação para enfrentar o mercado. As pessoas que vivem na floresta já sabem que vão viver mal se forem para as cidades. E dentro da floresta elas vivem bem. Todos são muitos solidários. Se morre um chefe de família, as pessoas se juntam e cuidam daquela família. Na Amazônia você pode viver anos sem consumir além do que você precisa para viver. É um outro modelo de sociedade. As pessoas vivem bem assim, o que não significa que não queiram conforto e bem-estar, como infraestrutura de saneamento, transporte, comunicação, saúde e escola. Investimentos necessários, mas invisíveis e que não trazem votos, razão pela qual a realidade das comunidades não muda em décadas. Como os que vivem na floresta não são visíveis, as políticas públicas não chegam. Há 25 milhões de hectares, somando todas as áreas protegidas, com gente dentro. São pessoas que conquistaram as Resx, as Reservas de Desenvolvimento Sustentável, as Florestas Nacionais. Elas vivem bem, mas querem melhorar. Querem aumentar a renda dos produtos da floresta e continuar vivendo lá. Não é a aspiração de posse, de propriedade, de comprar casa, carro, depois outro carro, trabalhar para consumir. Até porque, no caso das Unidades de Conservação de Uso Sustentável, moram em terras públicas cedidas para usufruto mediante contrato de concessão de uso. São simples e gostam dessa simplicidade. E o narcotráfico está destruindo esse modelo.
Na Amazônia você pode viver anos sem consumir além do que você precisa para viver. É um outro modelo de sociedade. As pessoas vivem bem assim, o que não significa que não queiram conforto e bem-estar, como infraestrutura de saneamento, transporte, comunicação, saúde e escola.
Quando se fala em Amazônia, temos de saber sobre qual Amazônia se está falando.
Exato. Tem a Amazônia rural, a urbana, a do pequeno agricultor, a do agronegócio, a da pecuária. Tem muita gente rica com soja, milho. Com nível alto de produção e tecnologia, como em todo o restante Brasil. E tem até a Amazônia que não tem mais floresta.
E o que está comprometendo a Amazônia?
É um equívoco falar em “salvação” da Amazônia. Não há uma única solução. Há soluções segmentadas. O que está comprometendo a Amazônia é o desmatamento, que pode acabar com a floresta, um ecossistema que depende dos recursos naturais. Essa fragilidade de uma região enorme e que tem um ecossistema que necessita de proteção é uma característica insubstituível. A expansão do agronegócio implica em desmatamento. É um problema, porque se expande em cima de áreas protegidas, em terras não destinadas, e é monopolista, porque domina. O Brasil não precisa mais expandir a fronteira na Amazônia. Tem que melhorar a qualidade de vida de quem está lá. Esse expansionismo não pode cntinuar. E tem aqueles que só querem fazer o comércio de terras. São as práticas ilegais que desorganizam a Amazônia: o narcotráfico e a expansão da fronteira agrícola, que se apropria de áreas não reguladas. As que já foram destinadas anteriormente estão regulamentadas. Essas duas realidades determinam o futuro da Amazônia. Geram impactos que serão decisivos para o futuro.
E quais as potencialidades da Amazônia?
O potencial é muito grande. Tem a economia tradicional, os produtos da floresta, a bioeconomia. Tem empresas que pesquisam ativos naturais com potencial de mercado e fazem contratos com as comunidades fornecedoras, acrescentando um valor pelo serviço socioambiental. Outras empresas adquirem os produtos tradicionais da floresta, como a borracha, por exemplo, e acrescentam um valor pelo serviço socioambiental prestado. São modalidades de valoração do papel das comunidades na proteção da floresta que já mudaram a vida de muitas famílias. É um modelo bom, as comunidades são reconhecidas, é um sistema que funciona. Mas há um limite, porque pode ser temporário: as empresas mudam os produtos e buscam novos insumos em outros lugares. Todo mundo quer fazer da bioeconomia um grande negócio. Isso pode se expandir. Existem potenciais como fármacos, com ativos que só a Amazônia tem. Muitas pesquisas ficam fechadas nas universidades, porque não é qualquer investimento que pode transformar uma planta em um medicamento. É um investimento caro, de longo prazo, inseguro porque não se sabe se vai dar certo. É preciso fazer um balanço de todas as pesquisas que existem sobre plantas medicinais, por exemplo, um inventário nas universidades daqui e do mundo, e organizar um portfólio. Chamar investidores e abrir essa caixa misteriosa onde estão todos esses produtos pesquisados e perguntar: qual a tecnologia e o investimento necessários para transformar esse potencial em novos medicamentos ou novos produtos? Fazer uma pré-seleção para ver quais podem ser desenvolvidos se receberem investimentos. Todas as vezes em que um novo produto é desenvolvido a partir de uma planta, traz mudanças importantes.
A visão salvacionista não se aplica à Amazônia. Não tem uma única solução. Depende de cada lugar, da matéria-prima, do modelo de ocupação do território, das comunidades locais. Há muitas Amazônias, com muitas soluções.
O que é preciso fazer para isso dar certo?
Deveria existir uma política adequada a essas características, a essa diversidade. Seria necessário investimento público ou de fundos internacionais. Não há uma solução mágica e imediata para gerar renda para as comunidades continuarem protegendo a floresta a partir do valor da bioeconomia. Se forem iniciativas de pequena escala, já existe o modelo de parceria com empresas. As comunidades estão se organizando e os contratos estão sendo aperfeiçoados por cooperativas locais. Nas áreas de alimentos, sucos e sorvetes, já existem muitos produtos novos, mas ainda faltam incentivos para alcançar uma escala maior. Está havendo um movimento novo de ONGs que criam startups. Estão estruturando, viabilizando investimentos. Estimulam novas iniciativas e produtos e fazem acompanhamento técnico, oferecem crédito para incubadoras e pequenos negócios da floresta. É um formato correto. São pessoas da Amazônia, que conhecem os obstáculos. Novos modelos de negócios estão sendo apoiados, especialmente no Pará, que tem tradição com produtos da biodiversidade.
Como fica a composição de rendas dos que moram na floresta, além da borracha, da castanha e da farinha?
Os projetos de crédito de carbono podem gerar recursos financeiros maiores do que qualquer outra iniciativa. As comunidades podem investir em saneamento, algo que nenhum governo faz. As Resex existem há quase 40 anos e ainda não têm essa infraestrutura. Podem diversificar as atividades econômicas que já desenvolvem. E existem dilemas a respeito de quais investimentos podem gerar um nível mais alto de renda sem a retirada da floresta. É que a floresta amazônica existe pela sua diversidade. As pessoas às vezes não se dão conta de que a diversidade da floresta é, ao mesmo tempo, o bônus e o ônus. A diversidade é o grande potencial e um grande obstáculo. Por isso é difícil encontrar uma solução. Quero reforçar: a visão salvacionista não se aplica à Amazônia. Não tem uma única solução. Depende de cada lugar, da matéria-prima, do modelo de ocupação do território, das comunidades locais. Há muitas Amazônias, com muitas soluções.
Fonte: Zero Hora/Alfredo Fedrizzi em 23/02/2014