Era do Plástico - Sobreviventes
O ser humano atingira uma linha sem volta.
Tudo se esgotara no planeta terra nos últimos três anos. Lavouras, mananciais, o tão imenso e sagrado oceano.
A ganância do homem, um verdadeiro carrapato, levara à essa condição sem retorno. Não adiantou os inúmeros avisos, os gritos da natureza. Nada mais era possível. O final fora decretado.
O desastre começou com as chuvas repletas de detritos plásticos. Isso poluiu cada ponto do planeta. Agregando-se ao aquecimento global e a crescente poluição, trouxe pavor ao culpado.
A derrocada da civilização foi como o “efeito dominó”
É impossível tentar descrever o que hoje são as grandes cidades, ou mesmo os pequenos povoados. Imagine o caos multiplicado por mil. É algo assim.
Mas como esperado, alguns conseguiram se adaptar, e sobreviver.
O esgoto já não era úmido como em outros tempos. Estava mais para um labirinto de despejos. Um fluido insistia em se aventurar por baixo dos detritos.
- Poxa meu amigo, fico contente em o ver perdido aqui embaixo. Pensei que nunca mais o veria. Que você tivesse batido as botas.
- Quase passei desta para a melhor, mas com força de vontade e, claro, muita sorte, eu sobrevivi, me adaptando ao pior.
O calor dentro das galerias atingira níveis altos. Mas a adequação fazia milagres.
- Lembro-me da última vez que eu o vi, Spencer. Estávamos nas proximidades de uma balada. Você andava atrás de um rabo de saia.
- Sim, ela era conhecida no pedaço como Sofie. Ah! Não esqueço aquele perfume -ele se acomodou melhor sobre um grande bloco de tereftalato de polietileno, mais conhecido como PET – Uma verdadeira belezura.
- Como sempre estávamos no Pierre. Aquele pequeno bistrô do outro lado da rua.
- Sim. Não preciso dizer que morei lá. Local muito aconchegante, música francesa, vinhos selecionados. Ambiente ideal para os casais.
- Isso. Mas não foi fácil. No começo ela só me deu fora, pensei que a tinha perdido. Mas na hora “H”, meu charme de ator de cinema falou mais alto.
- Para Spencer. Não me faça rir. A minha barriga irá doer de tanto gargalhar. Ator de cinema.
A temperatura passara de cinquenta graus.
- E você Jean? Lembro-me de algo sobre cantar na noite.
A nostalgia apareceu estampada em seu semblante.
- Bem que eu quis meu amigo, mas nunca consegui. Naquela época eu era apaixonado pela música. Para mim nada mais existia. Agora tudo acabou.
- E sua família, como anda?
Não era o momento certo para tal pergunta. A tristeza ao lembrar da música, mas a menção à família, fez com que uma micro partícula de polipropileno (PP) fosse visível em seu olho.
- Depois do sofrido período de adaptação à nova realidade, alguns de nós se tornaram estéreis. É o meu caso. Só sobramos eu e a dona patroa.
- Sim, comigo aconteceu o mesmo, mas não reclamo. Posso namorar a vontade sem o risco de “pãezinhos no forno”. Hehehehehe. Mas me conta:
- Você tem problemas de evacuar com essa nova dieta? Eu as vezes passo uma semana inteira e não consigo. Olha o tamanho da minha barriga.
Jean esboçou um sorriso
- Eu sou um relógio, como sempre fui. Só o formato, que ainda não me acostumei. Quando me empanturro fica igual aqueles antigos brinquedos de modelagem, e pior, coloridos. Agora, se me alimento normal, parece um comprimido encapsulado.
Spencer levantou-se sobre as patas traseiras, farejando o ar.
- Falando em se empanturrar que tal fazermos uma boquinha? Sei aonde tem um amontoado de polietileno de alta densidade (PEAD) fresquinho.
- Demorou.
Após três galerias e muitos entulhos, colocaram os compridos dentes na guloseima.
- Está gostando Jean?
- Sim – mas seu pensamento vagou: “Nada melhor que o velho e delicioso queijo do Bistrô do Pierre”.
FIM