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O Desafio do Microplástico
O Desafio do Microplástico

O DESAFIO DO MICROPLÁSTICO

Presentes na água, no solo, no ar e até na placenta, as partículas plásticas impõem a necessidade de um consumo mais consciente

 

O inocente copinho de café jogado na lixeira após o almoço ilustra um hábito prosaico que, finalmente, cobra sua fatura. Ao longo das décadas, o plástico consumido de forma desenfreada pela sociedade sofreu ação do sol, da chuva, do vente e de bactérias. Quebrou-se em minipartículas e se tornou um subproduto indesejado: o microplástico, que está presente na água, no solo, no ar – e até na placenta humana. Hoje, a ciência investiga possíveis efeitos em seres vivos, incluindo o homo sapiens.

 

Microplásticos são partículas de até 5mm que resultam da quebra de plásticos maiores (como garrafas, sacolas, embalagens e copos de café) por ação do ambiente. Em menor escala, são produzidos nessa dimensão para serem misturados a outros produtos, como sabonetes e cosméticos esfoliantes. Em geral, são visíveis a olho nu. Mas, justamente pelo tamanho, espalham-se em proporções magnânimas.

 

Em 2021, o mundo produziu 390,7 milhões de toneladas de plástico, segundo estimativa da Plastic Europe, das quais 32% vieram da China. É muito, o equivalente a 67,8 mil prédios de 20 andares. Desse total produzido no planeta em um único ano, quase metade (44%) forma embalagens e outros 18% vão para o setor da construção. Estima-se que entre 4,8 milhões e 12,7 milhões de toneladas caiam nos oceanos a cada ano – ou seja, é como se 3,25% da produção anual de plásticos saísse das fábricas e acabasse na água. Essa montanha – ou melhor, iceberg – de resíduos é responsável por imagens como a ilha de plástico no Oceano Pacífico, formada por correntes marítimas.

 

Uma das principais fontes de entrada de microplástico no meio ambiente é a lavagem de roupa, que é feita de polímeros como poliéster e náilon, diz Andréia Neves Fernandes, professora de Química da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenadora do Laboratório de Processos Ambientais e Contaminantes Emergentes. Outras origens são descarte inadequado, desgaste de pneus, fragmentos presentes no álcool em gel e também no glitter.

— Quando você está numa janela com sol bonito e vê um pozinho voando, muito daquilo é microplástico: se eu esfregar meu braço, soltam-se microfibras.  A gente está constantemente em contato com o microplástico ao respirar, comer e tomar banho. Há efeitos sendo investigados sobre risco de câncer a humanos. Não sou antiplástico, sou a favor do plástico. Mas estamos no Brasil, um país em desenvolvimento com padrão de consumo de primeiro mundo e com leis e destinações que não são de primeiro mundo. Temos que banir canudos e sacolinha plástica da nossa vida, reduzir o uso de alguns itens, repensar a ida ao supermercado, pedir leis para regular a indústria e investir em reciclagem – resume a pesquisadora.

 

Os plásticos grandes que se quebram chegam aos oceanos e são ingeridos por aves e animais marinhos, do plâncton aos peixes e baleias. Há estudos apontando como resultado, alterações nos sistemas endócrino, respiratório e cardiovascular de animais, explica Guilherme Tavares Nunes, professor de Biologia Marinha da UFRGS e pesquisador do Centro de Estudos Costeiros, Limnológicos e Marinhos (Ceclimar).

— O plástico que a pessoa joga no chão em Cachoeira do Sul pode, em uma chuva, cair no sistema de drenagem da cidade, que acaba no Rio Jacuí. O Jacuí desce no Guaíba, que cai na Lagoa dos Patos, de onde vai para Rio Grande na Barra da Lagoa e, por fim, no mar. O microplástico pode gerar lesão no trato gastrointestinal das aves, mas a grande questão é que pode absorver contaminantes, como pesticidas e hidrocarbonetos oriundos de combustíveis fósseis. O microplástico não mata no curto prazo, mas desencadeia problemas fisiológicos. Temos microplástico também no ar. Nós estamos respirando, e isso vai para a corrente sanguínea – diz Nunes.

 

PLÁSTICO DENTRO DO CORPO

 

Estudos sobre microplásticos em humanos engatinham, mas a hipótese é de que possamos sofrer os mesmos efeitos inflamatórios, hormonais e imunológicos sentidos por animais marinhos e aves. Pesquisa de cientistas italianos publicada em 2021 no periódico Environment International identificou, pela primeira vez, microplásticos na placenta humana. Os autores destacam que o material carrega "substâncias que agem como disruptores endócrinos, o que poderia causar efeitos a longo prazo na saúde" e que a potencial presença na placenta pode trazer consequências para o desenvolvimento embrionário, como alterações no sistema imune.

 

Com base no pressuposto de que microplásticos estão presentes em animais marinhos ingeridos por humanos, uma pesquisa publicada por cientistas da Universidade da Áustria em 2019 no periódico Annals of Internal Medicine identificou microplástico no intestino humano de oito voluntários da Europa e da Ásia. "Microplásticos são uma preocupação ambiental crescente e já entraram na cadeia alimentar", escrevem os autores.

 

Em relatório divulgado em 2019, a Organização Mundial da Saúde (OMS) pediu mais estudos sobre impactos dos microplásticos à saúde. Um ano antes, pesquisadores da Universidade de Minnesota, nos Estados Unidos, publicaram pesquisa na qual analisaram 159 amostras de água da torneira de seis regiões em cinco continentes. Mais de 80% continha partículas de plástico – a maioria, fibras milimétricas. Também foram encontradas fibras em amostras de cerveja e de sal marinho. Quem bebe três litros de água diariamente ingeriria, portanto, 14 partículas plásticas por dia – ou 4 mil micropedaços por ano. Isso sem contar o uso de água em café, chimarrão, chá, entre outros.

 

A presença de microplásticos já é investigada no Rio Grande do Sul – e preocupa. Durante doutorado na UFRGS, a química Crislaine Bertoldi colheu amostras de água de 10 pontos do Guaíba, incluindo perto da Usina do Gasômetro, do Arroio Dilúvio, do Cais do Porto e da Ilha da Pintada. As amostras continham grande quantidade de polipropileno, que vem de embalagens, e de polietileno, oriundo de sacos.

— Muitas vezes, encontramos isopor próximo ao Gasômetro, o que indica contaminação turística com embalagem descartável de alimentos. Também encontramos polímeros associados às roupas, como náilon, poliéster e acrílico, que são usados na lã, perto da Ilha da Pintada e da saída do Arroio Dilúvio, um ponto com menor captação de esgoto, o que indica que são fibras que vêm do esgoto doméstico através da lavagem das roupas. Em locais com maior população, tem maior contaminação de microplástico. Ou seja, o ser humano é o responsável pela entrada dessas partículas no ambiente – explica.

 

Questionado por ZH se o processo de filtragem impede a presença de microplásticos na água da torneira, o Departamento Municipal de Água e Esgoto (Dmae) afirma que "falar em tamanho de partícula não seria correto", uma vez que a fase sólida de floculação/decantação remove impurezas. A instituição diz que o tema de microplásticos nunca foi analisado nas Estações de Tratamento de Água e "ainda está restrito às universidades". Em nota, a área técnica do Dmae diz que "não tem conhecimento de metodologia científica referendada para os estudos".

 

O microplástico também está presente no litoral gaúcho. Quando a reportagem esteve em Imbé na segunda-feira, próximo à plataforma de Tramandaí, não foram necessários nem cinco passos para encontrar pedacinhos na areia. Uma embalagem de refrigerante com palavras em mandarim repousava em uma duna. O passeio foi guiado por Maicon Pegoraro, estudante de Biologia Marinha que pesquisa, no Ceclimar, sob orientação de Guilherme Nunes, a presenças de microplásticos nas fezes da ave pernilongo-de-costas-brancas.

— Em 1g de fezes, já contei 800 partículas de microplástico. Analisamos o que é descartado pelas aves, então há microplásticos que ficam e não foram descartados na digestão. O plástico pode absorver metais pesados. A pele é protetora, mas, quando ingerido, o metal pesado é absorvido direto pela mucosa – diz o estudante.

 

REDUZIR, REUTILIZAR E RECICLAR

 

 Como solucionar o problema? Em consenso, especialistas ouvidos por ZH afirmam que o plástico não deve ser demonizado – afinal, é um produto que facilita a vida de todos. Todavia, chegou a hora de repensar o uso e implementar o que especialistas chamam de três Rs: reduzir, reutilizar e reciclar.

 

Relatório publicado em março pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) mostra que é possível reduzir a poluição plástica em 80% até 2040. A entidade pede que governos incentivem a recompra do plástico pela indústria. "As regras de design para tornar os produtos economicamente recicláveis podem ser combinadas com metas para incorporar conteúdo reciclado e incentivos fiscais para usinas de reciclagem", diz o estudo.

 

No Brasil, só 4% do lixo sólido é reciclado, segundo dados da International Solid Waste Association (ISWA). Em países em desenvolvimento como Chile, Argentina, África do Sul e Turquia, a média é de 16%. Na Alemanha, é de 67%. O professor de Biologia Marinha Guilherme Nunes destaca que a Política Nacional dos Resíduos Sólidos, de 2010, precisa ser implementada na prática.

— Responsabilidade compartilhada é a pessoa separar o lixo, o caminhão da coleta seletiva passar nos dias específicos e a indústria priorizar materiais mais facilmente recicláveis. Precisamos também reduzir a utilização de plástico de uso único (como copos de água e de café ou canudinhos). Seguindo essa lei, teria que acabar com lixões e ter aterros sanitários – diz biólogo.

 

O plástico é útil e é impossível chegar a uma vida sem tal produto, mas há um exagero no uso, diz o engenheiro de produção Victor Fassina, mestre em Sustentabilidade Estratégica pelo Instituto de Tecnologia de Blekinge, na Suécia, e diretor-técnico da consultoria ambiental Mãos verdes.

— O custo para produzir resina virgem é muito mais barato. Reinserir o plástico na cadeia produtiva é mais caro porque nossa infraestrutura industrial não é desenvolvida para isso. Grandes indústrias fizeram metas globais pela redução da produção de plásticos e para que as embalagens contenham um percentual de material reciclado. A conta é simples: precisamos revisar nosso modelo de consumo. Se eu não pegar o canudinho, as coisas vão ser melhores? É importante, mas é preciso ter uma regulação dos Estados para colocar um limite nesse exagero. Além disso, uma gestão eficiente de resíduos acaba, em última instância, com a chegada de plástico e microplástico à natureza – diz o engenheiro.

 

Dois Irmãos, no Vale dos Sinos, recebeu uma série de prêmios pelas boas práticas de educação ambiental e de coleta seletiva. Houve uma mudança de mentalidade: até 1989, o lixo era incinerado em depósito a céu aberto. No início da década de 1990, a cidade começou a usar aterro sanitário, coletar lixo separado e investir em campanhas de conscientização. A indústria calçadista, carro-chefe da economia local, abraçou a ideia.

 

Todos os anos, mais de mil alunos do município visitam a Cooperativa de Recicladores de Dois Irmãos para entender que o lixo, depois de sair de casa, não desaparece. A prefeitura até criou dois mascotes que desfilam em Sete de Setembro: o Seleco e a Seleca, casal de sacolas de resíduos recicláveis.

— Foi um grande movimento do poder público e da iniciativa privada. Hoje, temos 2 toneladas de resíduos coletados todos os dias. Desse total, cerca de 20% vai para a reciclagem – diz, orgulhoso, o prefeito de Dois Irmãos, Jerri Meneghetti (Progressistas), uma vez que a média brasileira é de 4%.

 

Todos os dias, entre três e cinco caminhões de lixo seco chegam à cooperativa. O resíduo desce por uma esteira e, na sequência, é separado por material e cor por trabalhadores. Alguns tipos de plásticos são moídos e reciclados ali mesmo para serem revendidos às indústrias – que retransformam o material em mangueiras, garrafas, lonas e baldes. É a chamada "economia circular".

 

A cooperativa emprega 38 pessoas, cujos salários chegam a até 3 mil ao mês, valor alto para a função. O trabalho dos funcionários depende da consciência dos moradores ao separar o lixo em suas casas.

— O microplástico se forma a partir da decomposição do plástico, por isso a importância de uma estrutura como a da cooperativa. Todos os municípios deveriam ter coleta seletiva bem implementada. Isso facilita muito – diz o presidente da cooperativa, Fábio Bamberg.

 

Para a triadora Delci Simch, 44 anos e há 17 anos na cooperativa, é preciso aumentar a cnbscientização.

— Para os outros, é lixo. Para nós, é matéria-prima – diz.

 

A VISÃO DA INDÚSTRIA

 

A indústria do plástico vê a situação com preocupação e é a favor da utilização de mais material reciclado no processo produtivo, afirma o presidente do Sindicato das Indústrias de Material Plástico no Rio Grande do Sul (Sinplast-RS), Gerson Haas. No entanto, cita que a separação inadequada dos resíduos por parte do consumidor resulta em pouco plástico disponibilizado pelas cooperativas à indústria.

— A gente não quer plástico no rio e no mar. Mas há uma falta de consciência do consumidor. Todos temos que estar atentos: indústria, atacado e consumidor. As empresas de reciclagem têm dificuldade de conseguir material. As grandes empresas têm metas ousadas de até 2030 ou 2035 usar 50% de material reciclado, mas não há material reciclado disponível – diz Haas.

 

O presidente do Sinplast-RS cita que o Plano Nacional de Resíduos Sólidos traz uma série de ações que deveriam estar em prática – o que inclui a obrigação de prefeituras realizarem coleta seletiva e de haver mais pontos de coleta nas cidades.

— Há municípios que ainda utilizam aterros sanitários. Isso precisa entrar em ação. O Estado tem poder para exigir isso. Os grandes supermercados deveriam ter pontos de coleta de garrafas, sacolas, lâmpadas e latas para recolhimento da cooperativa mais próxima, e assim transformar tudo em novos produtos. Isso está na legislação, mas não funciona. Se funcionasse, teríamos boa parte do problema resolvido – afirma Haas.

 

Ele elogia decreto elaborado pelo governo Eduardo leite (PSDB) em janeiro, com subsídios no pagamento de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) para indústrias que utilizam 75% de plástico reciclado em suas produções (a cota, nesses casos, é de 4,25%, em vez de até 17%). Mas cita que são necessários mais subsídios – Haas traz como exemplo o baixo preço dos plásticos produzidos na Zona Franca de Manaus, que concorrem com a produção local:

— Sugerimos políticas com união de poder público, indústria, atacado, varejo e sociedade pela educação ambiental para que todos os materiais reciclados sejam destinados à produção de novos produtos, fechando a economia circular.

 

Questionado, o governo do Estado citou projetos que ainda estão em discussão, como a Logística Reversa das Embalagens em Geral (papelão, vidro, plástico), uma regulamentação segundo a qual fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes deverão estruturar suas logísticas para recolher embalagens proporcionalmente àquilo que colocam no mercado. Também há projetos de incentivo em regiões em que a reciclagem ainda precisa ser estruturada, como a Campanha e a Frontreira Oeste. A Secretaria Estadual do Meio Ambiente (Sema-RS) afirma que está em andamento uma parceria técnica para coleta de vidros por meio do Programa Vidro Vira Vidro. Nesse programa, estão disponibilizados 48 pontos de entrega em oito cidades no Litoral Norte. "Já foram coletadas mais de 43 toneladas de vidro. A intenção é expandir a rede nos próximos meses para cidades da Serra", diz a pasta.

 

A MÃO NA CONSCIÊNCIA

Como reduzir a poluição plástica

— Promover o uso de garrafas reabastecíveis, dispensadores a granel e esquemas de devolução de embalagens pode reduzir em 30% a poluição plástica até 2040;

— Reduzir em mais 20% até 2040 é possível com incentivos à reciclagem, como remover subsídios aos combustíveis fósseis e aplicar diretrizes de design para melhorar a reciclagem;

— Substituir embalagens plásticas, sachês e embalagens para viagem por produtos como papel ou materiais compostáveis pode reduzir em mais 17% a poluição plástica.

Fonte: Programa da ONU para o Meio Ambiente (Pnuma)

 

Como reduzir o uso de plástico

— Usar sacolas de pano ao supermercado. Em muitos países, o uso da sacola plástica é inclusive cobrado;

— Evitar plásticos de uso único, como guardanapos, copos de café e de água;

— Se você almoça todo dia no refeitório da empresa, a sugestão é levar uma caneca para evitar o desperdício de copos;

— Tentar sempre consertar produtos em vez de jogá-los fora para comprar um novo.

 

Como separar o lixo adequadamente em casa

— Lixo orgânico: sobras de alimentos, cascas de frutas, legumes e papel higiênico;

— Lixo seco: papel seco, plástico lavado, alumínio, papel (não amassado);

— Separação à parte: vidros, metais, remédios e seringas;

— É importante lavar embalagens do tipo longa vida, latas, garrafas e frascos de vidro e de plástico;

— Também é adequado usar recipientes de plástico para separar o óleo em vez de potes de vidro, que podem quebrar no caminhão de lixo e inviabilizar a reciclagem do que está ao redor;

— O que não vai para o lixo reciclável: papel-carbono, etiqueta adesiva, fita crepe, guardanapo, fotos, papéis sujos, copos de papel, cabos de panela, tomadas, clipes, grampos, esponjas de aço, canos, espelhos, cristais, cerâmicas, porcelana; pilhas e baterias de celular devem ser devolvidas aos fabricantes ou levadas a coletores específicos.

Fonte: Ministério do Meio Ambiente

 

 

Fonte: Jornal Zero Hora/Caderno DOC/Marcel Hartmann (marcel.hartmann@zerohora.com.br) em 02/07/2023