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Antropoceno — A Era Humana
Antropoceno — A Era Humana

Antropoceno gera debate entre cientistas e motiva pesquisas em diversas áreas do conhecimento

Proposição voltou ao debate global por conta do trabalho de cientistas em lago do Canadá; pesquisador da PUCRS estudou o tema em São Sebastião do Caí

por Vinicius Coimbra

 

Imagens:

Lago Crawford, em Ontário, Canadá, é a prova do início do Antropoceno

 

 

No RS, pesquisador da PUCRS estudou o tema  no doutorado de História, focando em São Sebastião do Caí

 

 

A ação humana foi capaz de iniciar uma época geológica na Terra. Essa é a afirmação de estudiosos do Antropoceno, um entendimento de que, em alguns milhares de anos, os seres humanos deixaram marcas duradouras no planeta, comparáveis a períodos glaciais e a episódios de evolução e extinção de espécies. Plásticos, concreto e vestígios de explosões nucleares são alguns dos sinais da interferência da sociedade na natureza.

 

A proposição foi feita nos anos 2000, e voltou ao debate global por conta de um trabalho feito por cientistas em um lago do Canadá. Para o grupo, dejetos encontrados no local são evidências de que a intervenção dos seres humanos encerrou o Holoceno (época oficial em que vivemos) e deu início ao Antropoceno.

 

O tema ainda está em discussão entre geólogos, pois não existe consenso na afirmação e há dúvidas se as “provas” da influência no meio ambiente são conclusivas para atestar a mudança de época. Enquanto o grupo discute a definição, áreas do conhecimento fora das Ciências Naturais integram o debate ao estudar como as alterações no planeta causadas pela sociedade moderna impactam na interação humana com a Terra.

 

 

O que significa Antropoceno

Antropoceno vem do grego, da junção de "anthropo", que significa humano, e "ceno", o equivalente a novo ou recente. O termo foi criado em 2000 por Eugene Stoermer, biólogo norte-americano, e Paul Crutzen, químico holandês e vencedor do Nobel.

— A proposição deles é a de que o papel do ser humano enquanto força geológica ficou tão significativo que essas transformações poderiam durar no registro geológico, justificando uma nova época geológica — explica André Borba, doutor em Geologia e professor da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

 

Definição de época geológica

É a Geologia que estuda a origem, formação, estrutura e composição da crosta terrestre e as alterações ocorridas nela ao longo do tempo. Para compreender a evolução do planeta, os cientistas dividem os 4,5 bilhões de anos de existência da Terra em intervalos menores conhecidos como unidades cronoestratigráficas:

  • Éon: é o maior intervalo de tempo. A história do planeta está dividida em quatro éons: Hadeano, Arqueano, Proterozoico e Fanerozoico (atual)
  • Era: são divisões dos éons, caracterizadas pelo modo como os continentes e os oceanos se distribuem e como os seres vivos nela se encontravam. A que estamos é chamada de Cenozoica
  • Período: é uma divisão da era. Estamos no Quaternário
  • Época: é um intervalo menor dentro de um período. Vivemos na época do Holoceno, caracterizada pelo processo de degelo do planeta há cerca de 12 mil anos. O Holoceno seria substituído pelo Antropoceno, na proposta dos estudiosos do tema

 

 

Segundo o professor da UFSM, mudanças ambientais, climáticas e extinção de organismos podem justificar a mudança de uma época para outra. Ele cita como exemplo a transição do Pleistoceno para o Holoceno:

— No Pleistoceno, o clima era muito mais frio, com mais geleiras nos polos e em áreas adjacentes. O aquecimento e derretimento das geleiras, junto com a revolução agrícola humana e a extinção da megafauna (preguiças e tatus gigantes, por exemplo), foram alguns dos marcadores para a transição para o Holoceno.

 

Debate em andamento

O Antropoceno não é um consenso entre geólogos. Uma das principais críticas é quanto ao tempo que a época proposta teria: há pesquisadores que relacionam o início do período à Revolução Industrial (século 18), outros entendem ser na Segunda Guerra Mundial (1939-1945) o começo, com os estudos que levaram à criação da bomba atômica. No entanto, para alguns cientistas, ambos os marcadores são considerados amostras frágeis para estabelecer mudanças na história do planeta, acrescenta André Borba:

— Em uma escala de tempo humana/histórica, não há dúvidas de que o impacto dos seres humanos na Terra é estrondoso. Mas, em uma escala do tempo geológico, acho um pouco precipitado falar em uma nova época. O ser humano é muito impactante para ciclos biogeoquímicos e espécies vivas, mas se isso deixará um registro geológico substancial, vai depender de como a humanidade irá se comportar no futuro — diz o professor da UFSM.

 

A classificação do Antropoceno como um período geológico deve ter o aval da União Internacional de Ciências Geológicas (IUGS na sigla em inglês), o órgão responsável por definir a tabela cronoestratigráfica internacional - unidades de tempo geológico e respetivos limites. Há uma comissão de geólogos de todo o mundo que estuda e define essas alterações a partir de evidências científicas. A tabela completa da Terra pode ser acessada neste link. Veja abaixo um resumo da evolução da Terra:

 

ESCALA DO TEMPO GEOLÓGICO DA TERRA

Limites que marcam início e fim dos períodos são aproximados e há divergências entre os autores sobre as cifras

 

 

  

Lago no Canadá pode ajudar na classificação

Para outra parte da comunidade de geólogos, a humanidade já vive no Antropoceno, ainda que a classificação não tenha sido oficialmente definida pela União Internacional de Ciências Geológicas. Um desses estudiosos é Rualdo Menegat, doutor em Geologia e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

 

Os estudiosos do Antropoceno defendem que o resultado da ação humana continuará no planeta por milênios, alguns de forma permanente. Assim, cientistas do futuro seriam capazes de identificar "digitais" da sociedade humana de hoje caso estudassem a evolução da Terra, da mesma forma como os pesquisadores atuais encontram indícios de épocas passadas na crosta terrestre. 

 

Alumínio, concreto, plásticos, emissão de gás carbônico e elementos tóxicos e radioativos são alguns dos sinais da presença humana que devem resistir por milênios no planeta, afirma, Menegat, que usa a capital do Estado como exemplo:

 

— O plástico está presente na memória geológica de Porto Alegre. Quando estudamos os sedimentos do fundo do Guaíba, percebemos que há um estrato em que não ocorrem, por exemplo, concentrações de metais pesados, mas esses mesmos metais são encontrados em outros pontos. Essas são as marcas do Antropoceno na memória geológica do nosso território. Penso que já temos elementos suficientes para dizer que há esse tempo geológico novo.

 

Para estudiosos do Antropoceno, o Lago Crawford, em Ontário, no Canadá, é a prova do início do período: no início de julho, foi divulgado que o reservatório de água doce contém microplásticos, cinzas oriundas da queima de petróleo e carvão ao longo de décadas e até vestígios de explosões nucleares. Isso, segundo o Grupo de Trabalho sobre o Antropoceno, indica “uma clara mudança desde meados do século 20 que levou a Terra a cruzar os limites normais do Holoceno”.

— Esse trabalho revelou, com muita precisão, a “régua” do tempo geológico. Agora o problema é saber se essa régua é comparável em outros lugares, o que chamamos de correlacionável globalmente. É um trabalho que está sendo feito, mas já há hoje muito mais dados e elementos. Penso que estamos próximos de a União Internacional de Ciências Geológicas decidir que essa unidade de tempo geológico (o Antropoceno) já está gravada na memória da Terra — pontua o professor da UFRGS.

 

Antropoceno gaúcho

O debate em torno do Antropoceno não está limitado à geologia. Isso porque pensadores de outros campos do conhecimento se interessaram pela perspectiva e a utilizam como base para estudos na área de Ciências Humanas. Caio Fernando Flores Coelho estudou o tema no doutorado em História na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), na tese Apologia do fluxo, ou sobre o antropoceno no Rio Grande do Sul e a percepção da paisagem no Rio Caí. O trabalho foca no município de São Sebastião do Caí, no Vale do Caí.

 

A pesquisa dele estuda os efeitos que a presença humana causou na região. Para isso, Caio Fernando analisou relatos escritos, cartas, postais, fotografias, recortes de jornal sobre a natureza do município em um período de 200 anos. A pergunta que norteia a apuração é “quais foram as consequências de modificações na natureza geradas pelo processo de industrialização?”:

— No século 19, a natureza era percebida como algo selvagem e arredio, existia a noção de que ela precisava ser domesticada, para que se tornasse produtiva e se inserisse na economia. No caso do Rio Caí, por exemplo, eles vão fazer isso através de uma série de construções que feitas dentro do próprio rio — explica.

 

Nesse contexto, ele foca o trabalho no estudo da construção da Barragem Rio Branco (hoje no município de Capela de Santana) e no porto desativado de São Sebastião do Caí. Ambas as construções sintetizam, segundo ele, a problemática vivida pelos municípios que se desenvolveram às margens do rio: as enchentes recorrentes por conta dos períodos de chuva integram o debate em torno da nova época geológica, na percepção do historiador.

— Essa população humana vai passar a ver o rio especialmente como um estorvo, porque a cada tempo terá uma enchente, que é uma calamidade, mas uma calamidade esperada. Então o convívio da população de São Sebastião do Caí com esse meio ambiente é perpassada por uma série de visões positivas e negativas ao mesmo tempo em relação ao meio ambiente — acrescenta.

 

Para o professor, a abordagem do tema fora da Geologia visa abrir uma nova linha de debate acadêmico sobre mudanças climáticas e o impacto humano nos biomas terrestres.

— O Antropoceno diz que os seres humanos estão causando efeitos que vão modificar a forma como o ambiente se comporta: só que não tem como prevermos quais serão as respostas que esse meio ambiente vai dar às modificações. A consequência da criação da cidade à beira do rio é de uma população que ciclicamente recebe pelo menos uma enchente por ano. Estou observando isso na prática, não só como uma elaboração teórica — diz.

 

Alyne Costa, doutora em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), também se dedica à pesquisa sobre Antropoceno. Ela diz que a proposição da nova época geológica se encaixa em estudos sobre o impacto que as atividades industriais têm causado no planeta nos últimos séculos.

— A discussão sobre épocas geológicas não gera interesse fora das Ciências Naturais. Há outras épocas geológicas sendo discutidas e ninguém “está nem aí”. Desde que o termo (Antropoceno) foi proposto, algumas pessoas começaram a se interessar nas Ciências Humanas, a tentar entender o que estava acontecendo. Nenhuma área hoje, sozinha, seja Geologia, Biologia, Filosofia ou Antropologia, é capaz de oferecer conhecimento suficiente para dar conta do problema (impactos no meio ambiente) — comenta a estudiosa.

 

A professora da PUC-Rio diz que integrar outras áreas do conhecimento para a discussão de uma nova época geográfica não basta. A “aliança” entre cientistas deve incentivar mudanças na forma de interação do ser humano e o planeta, com foco na preservação do meio ambiente.

— Pensar o Antropoceno é uma oportunidade de produzir formas de convivência mais justas e plurais no mundo. Existe uma aposta nesse conceito também enquanto mobilizador de ação política. Isso é tão importante quanto uma decisão de nomenclatura científica — acrescenta Alyne.

 

 

https://gauchazh.clicrbs.com.br/ambiente/noticia/2023/08/antropoceno-gera-debate-entre-cientistas-e-motiva-pesquisas-em-diversas-areas-do-conhecimento-clkriyyro009l0154a2ltc4dg.html