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O "Novo Normal" Climático no Rio Grande do Sul
O "Novo Normal" Climático no Rio Grande do Sul

CHEIAS INDICAM QUE RS VIVE O "NOVO NORMAL" CLIMÁTICO

Aumento da temperatura dos oceanos e da atmosfera tende a agravar supertempestades e exige adaptação a risco crescente

"Todos os cenários já mostravam que os eventos severos deveriam ser mais frequentes, o que surpreende é de que isso está ocorrendo mais rapidamente do que se imaginava.  Uns 10, 15 anos adiantados." (Jefferson Cardia Simões-Pesquisador da UFRGS)

 

As chuvas torrenciais que inundaram cidades inteiras e provocaram pelo menos 57 mortes em junho e setembro no Rio Grande do Sul podem ser explicadas, em parte, por condições planetárias responsáveis por criar novo padrão climático no Estado, mais sujeito a eventos severos.

 

Isso não significa a repetição constante de dramas tão agudos como o atual, já que fatores eventuais como o fenômeno El Niño contribuíram para amplificar as enxurradas vistas neste ano.  Mas cinco pesquisadores de diferentes regiões do país ouvidos por ZH concordam que as mudanças climáticas – responsáveis pelo aquecimento da atmosfera e dos oceanos, inclusive nas proximidades da costa gaúcha, onde o mar está até 4°C além do normal – fortaleceram a intensidade da chuvarada e seguirão multiplicando o risco de tragédias naturais.

— Infelizmente, vamos ver isso cada vez mais.  Temos de pensar em termos de um novo normal climatológico – observa o glaciologista e pesquisador do Centro Polar e Climático da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Jefferson Simões.

 

É sempre arriscado atribuir a ocorrência de um episódio específico diretamente ao aquecimento global, já que normalmente há um conjunto de causas envolvidas – algumas delas temporárias, como o aquecimento do Pacífico conhecido como El Niño.  Mas há evidências que relacionam a violência dos últimos ciclones extratropicais vistos no Estado a um novo padrão pelo qual os oceanos e a atmosfera, progressivamente mais aquecidos por recordes mundiais de temperatura média, descarreguem cada vez mais umidade e energia.

— Há 40 anos, cada década é mais quente do que a anterior.  Por isso, observamos uma severidade4 cada vez maior não apenas na chuva, mas também nos períodos de seca – avalia a professora da Faculdade de Meteorologia da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) Eliana Klering.

 

Já existe uma vertente científica que procura justamente precisar o grau de responsabilidade das emissões de gases do efeito estufa em situações pontuais como estiagens ou inundações, os chamados "estudos de atribuição".  As conclusões são preocupantes.

— Já temos alguns estudos de atribuição que comprovam que, sem a mudança do clima, a intensidade dos eventos não teria a mesma magnitude.  Temos exemplos disso envolvendo situações recentes em Pernambuco, Minas Gerais e enchentes na bacia do Rio Uruguai, no Rio Grande do Sul.  Cerca de 90% das análises chegam a essa mesma conclusão – relata o climatologista e pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) Lincoln Alves, sediado em São Paulo.

 

O estudo ao qual Alves faz referência se chama Contribuição da Mudança Climática Antropogênica nas Chuvas Pesadas de Abril a Maio de 2017 sobre a Bacia do Rio Uruguai.  A conclusão do trabalho, escrito por autores brasileiros e britânicos e publicado em 2019 no Boletim da Sociedade Americana Meteorológica, é de que o efeito negativo da ação humana sobre o clima aumentou em até cinco vezes o risco de chuvas extremas naquela região.

 

TENDÊNCIA É DE QUE IMPACTO DAS CHUVAS SE TORNE MAIOR

 

No caso do Rio Grande do Sul, o aquecimento verificado nas últimas décadas em solo e, mais recentemente, nas águas do Atlântico atua como um fósforo sobre pólvora.  Um trabalho apresentado em 2019 pela geógrafa Maythe Fernanda Erns, sob orientação do climatologista da UFRGS Francisco Eliseu Aquino, revela que a temperatura média subiu 1,07°C em quatro décadas no Estado.

 

Aquino acrescenta que, neste ano, as águas do Atlântico perto da costa gaúcha chegam a estar até 4°C mais quentes do que o normal.  Isso tudo alimenta um tipo específico de supertempestade que costuma atingir os gaúchos em uma média de 13 vezes por ano: conhecido cientificamente como complexo convectivo de mesoescasla, tem abrangência média de 276 mil quilômetros quadrados (quase a área total do Rio Grande do Sul) e duração média de 16 horas – é 70% maior e 60% mais duradoura do que nos Estados Unidos, outra região do planeta onde ocorre com regularidade.

— Estamos com áreas ao largo da costa gaúcha, no Atlântico, 3°C, 4°C mais quentes, o que se torna um gigantesco fornecedor de umidade, além da Amazônia.  As temperaturas mais elevadas na América do Sul, em contraste com o ar mais frio do Mar de Weddell (nas proximidades da Antártica), induzem a formação desses complexos convectivos de mesoescala.  Foi o tipo de evento que vimos agora, mais concentrado no Noroeste e no Norte do Estado.  Esse é o nosso cenário climático atual e não creio que vá mudar logo – alerta Francisco Aquino.

 

Dúvidas

 

O climatologista da UFRGS afirma que ainda há dúvidas sobre o tamanho da contribuição do El Niño sobre os recentes desastres:

— Podemos dizer que o El Niño incentiva que tenhamos mais ciclones extratropicais, com sistemas frontais que facilitam a chuva.  Só que, como estamos com um oceano aqui perto mais quente e uma atmosfera igualmente mais aquecida, os eventos se tornam mais intensos e com mais fatalidades.

 

Como há a perspectiva de que o aquecimento do Pacífico possa se fortalecer ainda mais até meados da primavera, a meteorologista do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) Danielle Barros Ferreira, sediada em Brasília, chama a atenção para a ameaça de novas catástrofes:

— As pessoas precisarão ficar atentas aos alertas meteorológicos e às orientações da Defesa Civil.  Observamos o aumento das temperaturas em todo o planeta desde os nos 1990, mas, com o El Niño, o impacto das chuvas tende a ser ainda maior.

 

SINAIS APARECERAM HÁ MAIS DE UMA DÉCADA

 

A violência no clima testemunhada pelos gaúchos nos últimos meses não caiu do céu como a chuva torrencial que devastou cidades ao longo das margens do Rio Taquari nos últimos dias.  Há mais de uma década, já havia sinais claros de que o Rio Grande do Sul passaria a conviver com temperaturas cada vez mais altas, tempestades mais violentas e chuvas mais caudalosas.  Os alertas da meteorologia, porém, não geraram ações capazes de evitar as tragédias atuais.

 

Em 2011, de forma semelhante ao que se viu agora, uma supertempestade deixou 12 vítimas durante o feriadão de Páscoa em áreas como os vales do Taquari (também afetado desta vez), do Sinos e do Paranhana e reforçou suspeitas de que havia algo diferente nos céus do Estado.

 

Uma série de estudos disponíveis à época, compilados em uma reportagem de Zero Hora, comprovava essa impressão: até aquele momento, a média de chuva nos últimos 30 anos havia aumentado 8,4% em comparação aos 30 anos anteriores, e os termômetros estavam 0,5°C mais quentes do que meio século antes.

— Estamos vendo agora o que já vinha acontecendo naquela época – afirma o climatologista da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Francisco Eliseu Aquino.

 

Logo depois da tragédia daquele ano, Aquino, que figurava entre os autores de alguns dos trabalhos, já avisava: "Mais calor e mais umidade contribuem para um número maior de eventos severos como tempestades, já que funcionam como combustíveis para elas".  E completava: "Se a pergunta é se o clima gaúcho está mudando, a resposta é sim".

 

Também já havia indícios claros de que os temporais vinham ganhando violência em ritmo acelerado: no período de 2000 a 2009, havia sido registrada uma disparada de 71% na ocorrência de trovoadas nas regiões do aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, e da Base Aérea de Canoas, em relação aos 10 anos anteriores.

 

Ainda não havia grande certeza sobre as razões para essas mudanças de cenário, mas o aquecimento percebido em nível global já era elencado como um dos fatores mais prováveis, além de outras hipóteses como variações na circulação dos ventos próximos à Antártica.

 

Perdas

 

O resultado da combinação explosiva de mais calor e umidade sobre o Estado, pouco mais de uma década atrás, já havia provocado consternação semelhante à atual em razão da morte de 12 gaúchos em um único evento – algo, até hoje, poucas vezes visto.  Dessas vítimas, sete eram de Igrejinha, onde foram velados de forma coletiva no Parque da Oktoberfest.  A expectativa de que o trauma resultasse em ações capazes de prevenir novas catástrofes, porém, ao contrário dos prognósticos meteorológicos, não se confirmou.

 

SEIS PERGUNTAS E RESPOSTAS SOBRE AS MUDANÇAS CLIMÁTICAS

 

  1. As chuvaradas dos últimos meses no RS foram causadas especificamente pelas mudanças climáticas?

A avaliação dos especialistas consultados por GZH é de que foram amplificadas por uma combinação de elementos.  Entre eles, está o aumento na temperatura média da atmosfera e de oceanos ao longo das últimas décadas em nível global, o que causa uma situação permanente de maior risco de eventos severos como grandes tempestades e chuvaradas em níveis acima do normal.  As temperaturas mundiais bateram recordes históricos de calor no período de junho a agosto deste ano, durante o verão no Hemisfério Norte.  No Rio Grande do Sul, em 40 anos, a temperatura média aumentou pouco mais de 1°C, e o mar perto da costa gaúcha atualmente tem pontos com temperaturas até 4°C além do esperado.  Isso amplia a força das tempestades e a precipitação, além de outros fatores mais pontuais.

 

  1. Eventos tão destrutivos e mortais como os de junho e setembro vão se repetir em pouco tempo?

É difícil prever com exatidão, mas o risco existe.  Os fenômenos recentes foram amplificados por fatores circunstanciais como o El Niño – aquecimento das águas do Pacífico que não ocorre todos os anos, mas deve se manter pelos próximos meses e pode até ganhar mais força.  As tragédias foram agravadas ainda pelo cenário global de aquecimento que não deve mudar de forma significativa nos próximos anos.  Então, embora o perigo seja ainda maior durante a ocorrência do El Niño, mesmo sem ele há expectativa de médio e de longo prazo de que tempestades e chuvas torrenciais ocorram com maior frequência e intensidade no Estado – o que pode elevar as cifras de estragos e de vítimas e exige ações imediatas de mitigação e outras de mais longo prazo buscando evitar a exposição de população a riscos.

 

  1. Há ligação entre o que vem ocorrendo no RS com fenômenos em outras partes do planeta, como ondas de calor e cheias?

Na avaliação majoritária dos especialistas em clima, sim.  As mudanças climáticas tendem a intensificar todo tipo de fenômeno em nível global por duas razões principais: o aquecimento da atmosfera e dos oceanos.  Isso resulta em ondas de calor mais fortes, como as registradas recentemente na Europa e nos Estados Unidos (onde um incêndio florestal varreu o Havaí e se tornou o mais mortal em pelo menos um século), secas ou enxurradas, a exemplo do que aconteceu nas últimas semanas em países europeus como Espanha e Grécia, entre outros episódios.  O novo padrão climático mundial aumenta o risco inclusive de ondas de frio mais duras, com temperaturas mais baixas do que o normal, ainda que com durações mais curtas.  Os Estados Unidos testemunharam grandes nevascas no final de 2022.

 

  1. Adotar ações individuais sustentáveis é suficiente para reverter o cenário de crise climática?

Infelizmente, não, embora também sejam importantes e necessárias – a exemplo de descartar corretamente o lixo, economizar energia ou evitar queima de combustível fóssil reduzindo o uso do automóvel, por exemplo.  Mas, na avaliação de especialistas, a reversão do aquecimento global testemunhado nas últimas décadas exige também mudanças nas matrizes de geração energética e políticas públicas de grande alcance capazes de provocar cortes substanciais em emissões de carbono na atmosfera.  Isso exige o engajamento de grandes empresas e de governos, principalmente os de grandes economias poluidoras, como China, Estados Unidos e União Europeia.

 

  1. O que governos e organismos internacionais estão fazendo para amenizar o cenário atual?

Governos de países como Estados Unidos, China e europeus estão colocando em prática medidas para reduzir emissões de carbono, mas o ritmo de implementação e a escala das ações ainda são consideradas "insuficientes" pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). 

A Europa está colocando em prática o Pacto Verde, um conjunto de ações em setores como geração de energia, mobilidade e agropecuária que almeja transformar o continente no primeiro a alcançar a neutralidade climática (emitir gases na mesma medida em que os absorve) até o ano de 2050. 

Maior poluidor mundial, a China se comprometeu publicamente a descarbonizar sua economia – mas isso não ocorrerá tão cedo.  O país oriental ainda está investindo em centrais elétricas de carvão, prevê um pico de emissão de carbono até 2030 e estabelece o ano de 2060 como meta para chegar à neutralidade.  O IPCC destaca que seria preciso reduzir pela metade o lançamento de gases do efeito estufa até 2030 para limitar o aquecimento global a 1,5°C além dos níveis pré-industriais.

 

  1. Já existem bons exemplos de países no combate à crise climática atualmente?

O item referente a Planeta e Clima do Good Country Index (índice privado que procura avaliar o quanto cada país contribui em diferentes áreas para o mundo) destaca a Finlândia em primeiro lugar neste quesito por aspectos como baixas emissões de carbono e elevado percentual de energia renovável.

Em 2021, a cidade finlandesa de Lahti, com população de 120 mil habitantes, foi eleita "capital verde" da Europas.  Polo industrial até os anos 1970, a localidade reduziu em 70% o lançamento de gases poluentes: o carvão foi abandonado em 2019 e 99% do lixo doméstico é reciclado.  O objetivo é atingir a neutralidade climática até 2025.

Já o Reino Unido conseguiu reduzir em 45% a emissão de gases ao longo de 30 anos.  O plano para manter o ritmo inclui estímulo a veículos elétricos, embalagens ecológicas, edifícios com menor consumo de energia e reflorestamento, entre outros pontos.

O Brasil se destaca por contar com matriz energética com 83% de fontes renováveis (três vezes acima da média mundial), mas ainda luta para conter o desmatamento.

 

          

 

Fonte: Zero Hora/Marcelo Gonzatto (marcelo.gonzatto@zerohora.com.br) em 10/09/2023