UM FILME PARA NOSSOS DIAS
Escritor analisa a transposição para as telas do livro GUMERCINDO, feita pelo próprio autor.
Uma obra de arte deve ser avaliada por seu conteúdo estético, discursivo, legitimando-se a si mesmo. Os referenciais externos calam-se, por inoportunos e adjetivos. Assim, pensarei no filme A CABEÇA DE GUMERCINDO SARAIVA independente do romance GUMERCINDO de Tabajara e, ainda, independente do fato histórico. Quem quiser saber História, leia-a. Um filme pode ser fonte de conhecimento, sim, mas o receptor deve saber que se trata de conhecimento transformado pela estética e a sensibilidade de quem o realiza – e é isso o que encontramos neste filme. Para já, é importante dizer: este é o melhor de Tabajara Ruas, e o adjetivo ressoaria no vazio caso fosse atribuído a um filme banal; afinal de contas, o melhor de um artista pode ser o pior da média de um conjunto de artistas. Mas digo que é o melhor de Tabajara para afirmar que a carreira de nosso cineasta – inclusive na literatura – só cresce em qualidade.
Trata-se de um filme marcado pela tragédia – a que acontece na história e a que acontece na vida real, com a morte prematura do intérprete de um dos dois protagonistas, ator Leonardo Machado, o qual não viveu o suficiente para assistir à estreia e subsequente sucesso da película, prestigiada pelo público e pela crítica além Mampituba. Assisti-lo em cena, elegante, bonito, pleno de juventude e força, é um permanente exercício de continência, que nos permite a apreciação do filme em si.
E o que a apreciação nos revela? Antes de tudo, a limpidez de sua narrativa, que conduz o espectador por uma trama compreensível do início ao fim, sem incorrer nos tentadores desvios que, tal como as sereias, queriam afastar Ulisses de sua rota. E as tentações, ali, são visíveis: o fervor da paisagem, o virtuosismo dos atores no sotaque e nos gestos, a representação dos teres e haveres gaudérios, enfim, tudo o que cerca uma produção gaúcha que se passe fora da Capital. Tabajara preencheu com cera de abelha os seus ouvidos para não escutar esses cantos e seguiu em frente com sua história, contribuindo-a com sabedoria e alma.
E o que conta essa história? Qualquer rio-grandense, ao ouvir o nome de Gumercindo Saraiva, logo evoca a sanguinária revolução de 93, a “revolução da degola”, que, por incrível que pareça, deixa suas marcas até hoje. Exemplo: logo ao sentar-me na minha poltrona do Theatro São Pedro a fim de assistir à pré-estreia, um dos assistentes me perguntou se politicamente eu era chimango ou maragato, ao que eu respondi de maneira esquizofrênica, contando meu encontro pessoal com Borges de Medeiros – um fato real. A cabeça de Gumercindo Saraiva, portanto, tem o cenário da tal revolução seminal, e sua narrativa é abençoadamente simples: em 1895 (portanto, ao final do triste episódio bélico) o líder revolucionário Gumercindo Saraiva é morto pelos legalistas, e sua cabeça é destinada a servir de troféu e dádiva para Júlio de castilhos, o então presidente do Estado. Sabedor disso, seu filho Francisco Saraiva (papel de Leonardo Machado) e mais quatro homens saem numa perseguição aos portadores da cabeça, o major Ramiro de Oliveira (papel de Murilo Rosa, em outra excelente atuação) e mais dois militares, na intenção de recuperá-la antes que cheguem à Capital e a Júlio de Castilhos. É um filme masculino nas ações e intenções, que joga com uma díade muito cara a Tabajara Ruas: a discórdia entre irmãos, a qual vem à tona num dos momentos derradeiros, e ao mesmo tempo em que acontece outro momento também por ele privilegiado: a oposição final entre duas forças embrutecidas pelas circunstâncias. Não são fórmulas, mas condutas que se constituem em marcas autorais que singularizam os grandes diretores.
Se há uma ideia central neste filme, esta também é simples, cruelmente simples: é o sentido do dever que nós, gaúchos, simbolizamos em todas nossas manifestações, quer guerreiras, quer folclóricas, quer culturais em sentido amplo. Foi o dever que gerou todas nossas revoluções e movimentações políticas até pouco tempo atrás e que significa, em última abordagem, o que nos sobra quando tudo parece perdido. Francisco Saraiva quer, por dever filial e ético, recuperar a cabeça de seu pai; Ramiro de Oliveira, por dever, precisa fazer chegá-la em mãos de Júlio de Castilhos. Já quase no final, no momento em que os dois se encontram, há uma fala exemplar de Francisco: “Ah, o dever… palavra importante. Meu pai, o general Gumercindo Saraiva, foi o primeiro que meu vô Francisco teve. Quando ele estava para nascer, na hora mesmo do parto, a parteira avisou que Dona Propícia, a mãe, minha avó, corria risco de vida. Meu avô disse para a parteira: ‘Salve o filho. A mãe que cumpra o seu dever’. O dever, major, é coisa que faz parte do nosso sangue”. Dito isso, o major responde: “Então o senhor vai me entender. Eu só vou ficar em paz com a minha consciência quando entregar esta cabeça ao doutor Júlio de Castilhos”. Fecha-se o circuito. O dever é, assim, o Leitmotiv do filme de Tabajara Ruas. Todos os personagens são homens movidos pela crença de que o dever – seu cumprimento – é a pedra de toque da honradez e da dignidade. Não querendo ir tão longe, mas considerando que o cavalo passa encilhado e não posso deixar que vá solito, digo que este filme é, também, uma chamada de atenção para os dias que correm e para as pessoas que os vivem na esfera pública. Bons entendedores entenderão. Mas isto só uma obra de arte superior como A CABEÇA DE GUMERCINDO SARAIVA é capaz de dizer. Assistam ao filme: é uma experiência que nos faz mais sábios.
TRAILER: https://www.youtube.com/watch?v=Kjg6MggKREQ
Fonte: Correio do Povo/CS/Luiz Antonio de Assis Brasil/Escritor. Autor de Inverno e Depois e Concerto Campestre. Em 24/11/2018.