Translate this Page




ONLINE
6





Partilhe esta Página

                                            

            

 

 


Big Jato: Direção de Claudio Assis
Big Jato: Direção de Claudio Assis

ENTRE A POESIA E A FOSSA

 

CLÁUDIO ASSIS DIRIGE “BIG JATO”, ADAPTAÇÃO DO ROMANCE AUTOBIOGRÁFICO EM QUE O JORNALISTA XICO SÁ REVISITA SUAS ORIGENS.

 

Conhecido por abordar de forma visceral e libertária temas que entrelaçam relações de poder, sexo e violência – e também por seu temperamento por vezes beligerante –, o cineasta pernambucano Cláudio Assis fez um filme família.  Apresenta em BIG JATO, seu quarto longa, um sutil desvio de rota.  É o primeiro que não tem como matriz um roteiro original do parceiro Hilton Lacerda e também o primeiro sem a classificação para maiores de 18 anos.  Em cartaz nos cinemas, indicado para maiores de 16 anos, BIG JATO adapta o livro homônimo autobiográfico do jornalista cearense Xico Sá.

 

No romance, Xico relembra a infância passada na região do cariri, nos anos 1970, e a influência na sua formação de duas figuras:  o pai, chamado de Velho, que sustenta a família limpando fossas, e o tio, Nelson, radialista local apaixonado pelos Beatles e que inflama no garoto a paixão pela poesia.  Quem vive os dois personagens é Matheus Nachtergaele, que Cláudio dirigiu em AMARELO MANGA (2002), BAIXIO DAS BESTAS (2006) e A FEBRE DO RATO (2012).

- O Xico é meu amigo e padrinho do meu filho (Francisco de Assis Moraes, que vive o jornalista com 10 anos).  Quando ele estava escrevendo o livro, conversávamos muito.  Tem coisa ali comum na nossa infância.  A gente tinha essa ideia de falar de merda, que é onde todo mundo é igual – diz Assis.

 

A trama foi atualizada para os dias de hoje, explica o diretor, em razão das onipresença dos Beatles no livro.  Sem ter como bancar os custos de direitos autorais, a trilha original, assinada pelo DJ Dolores, emula o clima da época com a fictícia banda Os Betos, que teria sido antecessora e inspiradora do quarteto britânico.

 

BIG JATO incorpora elementos fabulares para encenar, com graça e lirismo, o rito de passagem do garoto (na adolescência, vivido por Rafael Nicácio) que se vê dividido entre as obrigações que cumpre com o pai, tipo afetuoso com rompantes autoritários catalisados pela cachaça, e o escapismo pela arte vislumbrado com o tio “doidão”.

- É uma fábula, mas o meu DNA está ali – destaca Assis, reforçando a presença de elementos provocadores em sua filmografia, como o louco da cidade e suas poesias delirantes (papel de Jards Macalé) e frases de impacto como “Quem não reage, rasteja”.  Segundo o diretor, o dito é pertinente com os tempos que o Brasil vive:

- É um momento ímpar, de instabilidade política, de caretice, indo para a direita cada vez mais, evangélicos tomando conta.  A sociedade está fodida, o cinema está careta.  A gente tem que tentar.  Ou reage ou rasteja.  A arte é feita para provocar, pensar, contribuir para uma mudança.  Não faço cinema para ganhar dinheiro.  Não faço cinema de encomenda.  Faço cinema de ideias.

 

BIG JATO ganhou cinco prêmios no Festival de Brasília de 2015, entre eles o de melhor filme e o de melhor ator, para Matheus.

 

ENTREVISTA COM MATHEUS NACHTERGAELE / ATOR

 

 

Como foi a experiência de viver dois personagens em BIG JATO?

Foi minha primeira vez.  Sempre fiquei impressionado com que fazia isso.  Você faz o mesmo filme duas vezes sob dois prismas diferentes.  Eles são irmãos antagônicos em muitos aspectos e que vão servir de modelo de afeto e rejeição para um menino e formação.  Foi rico, intenso e feliz.  E alguns momentos, tive medo de ficar exaurido.  O personagem do Velho, talvez o mais intenso, no fundo era o mais amoroso.  O Nelson tem a alegria e também o amargo daquele que quase foi livre.  Trabalhei com  a perspectiva de que fossem o mesmo homem com destinos diferentes.  Um deles se casou, teve filhos e limpa fossas.  Sustenta a família limpando a merda dos outros.  É comovente.  E o outro não se casou, não limpa fossa.  Nesse processo de construção dos personagens, encontrei pontos de contato entre eles.  Fiz primeiro o Nelson, em uma semana.  Depois, o Velho, em duas semanas.  No último dia, diz os dois em uma sequência noturna, no prostíbulo.  O leilão da prostituta com o Nelson, e a perda da virgindade do menino com o Velho.

 

 

Esses personagens refletem a divisão daquele universo agreste entre a liberdade e a repressão, temas que são recorrentes na filmografia de Cláudio Assis, como nos três longas anteriores dele em que você atuou?

O pai e o tio são dois tipos que se complementam e se repelem.  O menino é um poeta que é amado por ambos e vai se formar entre eles.  Para amadurecer, o menino vai ter de passar por essa curra do trabalho que é limpar fossas.  Liberdade não é só fazer o que quiser, ser inconsequente.  É preciso um mix entre tradição e liberdade.  Apesar de o filme ser uma fábula sobre a formação de um menino, com tons menos naturalistas, menos crus do que nos nossos filmes anteriores, o abecedário da linguagem é o mesmo, o tema principal é o mesmo, que é o desejo profundo de libertação do homem simples.  Mas que liberdade a gente quer?  A de leiloar uma prostituta?  A de fumar maconha o tempo todo?  O que é bonito no tradicional tem que ser mantido, como o amor entre as pessoas da família.

 

 

Sua amizade e parceria com Cláudio Assis facilitam o trabalho no set?

Conhecer bem o diretor facilita muito.  A gente está sempre em um processo para desenvolver o que começamos no AMARELO MANGA (2002).  Mas o que pode parecer conforto se torna desconforto algumas vezes porque o Cláudio cobra muito mais de mim hoje em dia.  E eu também espero muito mais do Cláudio como cineasta.  Quando vamos para o set, temos a expectativa de descobrirmos coisas juntos.  Fizemos um filme de ternura, apesar de ser um filme duro.  É o nosso desenvolvimento como artistas.  Nosso grito não precisa mais apenas machucar, ferir.  A gente pode também encantar, dizer uma coisa séria encantando.  Esse é, entre aspas, o “filme infantil” do Cláudio, o filme que eu levaria meu filho para ver.  E tem um detalhe bonitinho.  O (escritor e dramaturgo) Ariano Suassuna morreu pouco antes de a gente começar a filmar.  Eu tinha uma prótese dentária que usei no João Grilo quando fiz O AUTO DA COMPADECIDA (minissérie e longa de 1999 e 2000).  Não é a original, que ficou com a produção, mas uma prova.  Resolvi usá-la no BIG JATO, e demorou para o Cláudio entender.  Ele me perguntou:  “Por que você está falando assim?  Está tão interessante”.  Foi minha homenagem oculta – agora não mais porque estou te contando – ao Amarelinho, que continua safado e sobrevivendo por aí.

 

 

Você teve uma elogiada estreia como diretor com o longa-metragem A FESTA DA MENINA MORTA (2008).  Tem planos de realizar um novo filme? 

Sim.  Tenho um roteiro original bem encaminhado, que poderia rapidamente se tornar matéria para uma produção trabalhar.  Mas vou segurar porque estou muito dedicado a meu trabalho como ator e com a minha peça que, daqui a pouco (em setembro), chega ao Porto Alegre Em Cena.  Chama-se PROCESSO DE CONSCERTO DO DESEJO, conscerto com "SC“.  É um monólogo com poemas de minha mãe, que morreu quando eu era bebê.  Eu canto, falo e danço.  Estou amando fazer teatro.  Quando um filme entra na sua vida, para você dirigi-lo consome quatro, cinco anos.  Tudo fica em segundo plano.  E não quero deixar meu trabalho como ator em segundo plano.

 

 

 

Fonte:  ZeroHora/Segundo Caderno/Marcelo Perrone (marcelo.perrone@zerohora.com.br) em 17 de junho de 2016.