Translate this Page




ONLINE
4





Partilhe esta Página

                                            

            

 

 


Cinema Brasileiro e as Premiações em Cannes 2019
Cinema Brasileiro e as Premiações em Cannes 2019

HISTÓRIAS QUE PROJETAM O BRASIL NO MUNDO

 

Karim Aïnouz comenta a importância da conquista de seu filme A VIDA INVISÍVEL DE EURÍDICE GUSMÃO, no Festival de Cannes

 

Diretor de A VIDA INVISÍVEL DE EURÍDICE GUSMÃO, filme vencedor da mostra Um Certo Olhar no Festival de Cannes 2019 – importante seção paralela do mais prestigiado certame do cinema internacional – Karim Aïnouz acredita que o reconhecimento dado a ele e aos também brasileiros Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, ganhadores do Prêmio do Júri na seleção principal, com BACURAU, é histórico.

- Está começando a cair a ficha. Nos dias seguintes à premiação você fica um pouco atordoado. É muito bom para o filme e para o cinema brasileiro – disse Karim em entrevista ao programa da Rádio Gaúcha Timeline.

 

A VIDA INVISÍVEL DE EURÍDICE GUSMÃO é uma adaptação do livro homônimo da escritora Martha Batalha e conta a história de duas irmãs que têm suas vidas marcadas por relacionamentos abusivos com homens machistas. O realizador cearense, conhecido por filmes como MADAME SATÃ (2002), O CÉU DE SUELY (2006) e PRAIA DO FUTURO (2014) destaca a relevância da premiação em Cannes:

- A mostra (Um Certo Olhar) é muito importante porque fala de um cinema em renovação. Foi nessa mostra que exibi MADAME SATÃ. Uma das coisas mais importantes desse prêmio é jogar luz no filme e torna-lo internacional. A premiação precipitou a venda do filme em vários países. Até sexta-feira, a gente tinha vendido em 10 países. Hoje deve ter 30. É importante que o cinema brasileiro seja visto não só no Brasil, mas no mundo. A premiação é um selo de qualidade, faz com que o filme tenha longa vida.

 

Karim também considerou que o prêmio é fundamental neste momento em que o setor cultural no Brasil encara questionamentos e estrangulamentos de recursos por parte do governo:

- Está havendo uma criminalização da classe artística por parte de setores do poder. Isso é muito perigoso. Esse prêmio só reforça que as políticas de incentivo à cultura dos últimos 15 anos, e estamos falando dos governos Lula e Dilma, sim, estão dando frutos. O que a gente viveu em Cannes é um fato que entra para a história do Brasil. Qualquer tipo de contestação à política audiovisual, à importância da cultura, à importância da produção artística, tem de parar. Esse reconhecimento vai estimular que uma nova geração, possa continuar a fazer cinema, a fazer cultura.

 

 

 

 

TRIBUTO ÀS LUTAS DAS MULHERES

 

O diretor comenta ainda que seu filme espelha a histórica luta das mulheres por igualdade de direitos, tema sempre atual no Brasil.

- A gente não pode subestimar o poder do cinema. É um filme que fala da década de 1950 para poder falar de hoje. Fala do conservadorismo que imperava naquela época, do patriarcado, da questão de que a família tinha de estar acima de tudo, inde3pendentemente se essa família, para existir, tivesse que destruir o outro.

 

Karim lembra que sua mãe foi uma mulher que não podia trabalhar, por ser separada, limitando-se às tarefas domésticas e ao ofício de costureira.

- Minha mãe me criou sozinho, minha avó também criou as filhas sozinha. Eram vidas muito difíceis. Queria prestar uma homenagem a essas mulheres. Não foi fácil chegar onde elas estão. Antes de qualquer coisa, é um filme antipatriarcado. O que a gente está vivendo no mundo é algo muito sério com esses governos de extrema-direita, em que a grande razão é a crise do patriarcado, que é o pânico que os homens têm de estarem perdendo poder. Inicialmente, era muito mais o retrato de uma geração, mas passou a ter uma dimensão política maior conforme os anos passaram. Não dá para esquecer que o Brasil é um dos países do mundo com maior número de feminicídios, que é um dos países com maior número de mães solteiras, que são demonizadas.

 

Fernanda Montenegro faz uma participação especial em A VIDA INVISÍVEL DE EURÍDICE GUSMÃO. Sobre ela, Karim destaca:

- É um ser humano gigante. Ela sim, representa o Brasil, antes de qualquer um de nós. É um ícone não só do cinema, mas da cultura brasileira. Quando falo que o filme é o retrato de uma geração, é o retrato da geração dela. A Fernanda nasceu no Rio, de uma família de operários, foi atriz em um momento em que o ator era superdiscriminado. Ninguém mais do que ela poderia representar essa geração.

 

UM NOVO CICLO DE RECONHECIMENTO PARA O CINEMA NACIONAL

Inácio Araujo/Folhapress

 

Quando o PAGADOR DE PROMESSAS, de Anselmo Duarte, ganhou a Palma de Ouro em Cannes, em 1962, a revista Cahiers du Cinéma observou, discretamente, que ali se podia vislumbrar o nascimento de uma nova dramaturgia. Dois anos depois, em 1964, essa nova forma aportava em Cannes com ares de revolução estética, graças a VIDAS SECAS, de Nelson Pereira dos Santos, e, sobretudo, DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL, de Glauber Rocha. Como em Cannes a reputação vale mais do que os prêmios, foram esses dois filmes que marcaram de fato o cinema mundial. O prêmio de melhor direção para O DRAGÃO DA MALDADE CONTRA O SANTO GUERREIRO, em 1969, apenas sacramentou o prestígio internacional do cinema brasileiro naquela década com Glauber à frente, sempre ele, que já levara o prêmio da crítica internacional dois anos antes por TERRA EM TRANSE.

 

Foi Glauber, sobretudo, quem modernizou as ideias um tanto arcaicas, mas muito bem acolhidas por Cannes em 1953, de O CANGACEIRO, de Lima Barreto, que ganhou então o prêmio de melhor filme de aventura e obteve enorme sucesso mundial. Houve outros prêmios naquele período, como o especial do júri de Berlim para OS FUZIS, de Ruy Guerra. Depois, foi o refluxo, quebrado, eventualmente, por um Urso de Prata para A QUEDA (1978), também de Ruy Guerra.

 

O cinema brasileiro tinha perdido o viço, admitia-se, e a importância. Algum soluço esporádico podia nos lembrar do esplendor do passado, como quando Walter Salles ganhou o Urso de Ouro de 1998, em Berlim, com CENTRAL DO BRASIL.

 

A importância das premiações europeias entre os anos 1950 e 1970 também diminuiu a partir do fim da crise dos estúdios em Hollywood e a consequente dominação plena do mercado mundial pelo cinema americano, nos anos 1980.

 

Desde então, foi para o Oscar que voltamos as atenções. Hector Babenco se destacou com O BEIJO DA MULHER ARANHA (1986) e abriu caminho para que grandes torcidas se formassem diante da TV, tipo jogos da Copa, na esperança de vitória para O QUATRILHO (1995)), de Fábio Barreto, e, depois, para CENBTRAL DO BRASIL.

 

Mesmo CENTRAL, no entanto, apontava para o passado, Walter Salles se apresentava como descendente do cinema novo. O melhor havia passado. Nossa atenção agora estava voltada para a Argentina de O PÂNTANO e NOVE RAINHAS.

 

Enquanto isso, o Brasil soube ao menos produzir uma crítica forte, via internet, que influenciaria o surgimento de uma geração bem mais sólida de cineastas, que se desenvolveria ao longo dois anos 2000.

 

Ganhar a mostra Um Certo Olhar, como fez Karim Aïnouz com seu A VIDA INVISÍVEL DE EURÍDICE GUSMÃO, é bem mais do que nada. Um prêmio do júri na mostra principal, como o recebido por BACURAU, consolida o prestígio que Kleber Mendonça Filho já tinha com seus dois filmes anteriores.

 

Esses prêmios recentes e boas críticas, assim como no começo dos anos 1960, talvez indiquem que o Brasil está próximo de um novo momento de reconhecimento de seu cinema. Para um país tão inseguro a respeito de si mesmo, o que o mundo diz a nosso respeito tem muita repercussão interna, sim.

 

Em 1964, dois filmes brasileiros fizeram a sensação e Cannes e consolidaram as promessas de O PAGADOR. Inauguraram um momento de prestígio, apesar das dificuldades políticas. Hoje, tais prêmios servem não apenas às vendas internacionais dos filmes, mas à conquista da internacionalização das produções e, com isso, à independência do Estado. A tendência já existe, mas torna-se mais decisiva num momento em que a atividade artística, a cultura e o conhecimento em geral – o cinema sempre à frente – tendem a passar algum sufoco no país que, afinal, adotou o estrambótico conceito de “marxismo cultural”.

 

 

Fonte: Zero Hora/Segundo Caderno-Cinema em 30/05/19